quinta-feira, 24 de julho de 2025

DE ESCREVER, POLÍTICA E XADREZ

 

Tigran Petrosian

* Honório de Medeiros


Cheguei em Natal para estudar, vindo de Mossoró, em fevereiro de 1974. Tinha 16anos incompletos.

Escolhi, depois de alguma hesitação, a antiga Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, e não o Marista, meu destino inicial.

Na Etfrn, dei três passos no rumo do que eu queria em minha vida, de uma forma ou outra: escrever, jogar xadrez, e a política.

Lá, eu e Rui Lopes criamos o jornal mural "A Capa", sucesso entre os alunos, que causou alguns incômodos à administração da imensa figura humana que foi o Professor Arnaldo Arsênio, seu diretor, por nossa postura, meio inconformista, digamos assim, ao ponto de sermos chamados a seu gabinete para uma "admoestação" carinhosa.

Fui, também, Presidente do Centro Cívico Escolar Nilo Peçanha, o que me introduziu na política estudantil.

Naquela época, plena ditadura, implantamos na Etfrn uma experiência inédita: debate direto entre a direção e os alunos, realizado sempre no Ginásio de Esportes, o que me levou a ser convidado pelo Padre Sabino Gentilli para dar uma palestra aos colegas do Salesiano. Foi minha primeira experiência nessa área.

Por outro lado, representei, após o maior enxadrista norte-rio-grandense de todos os tempos, Máximo Macedo, as cores da Etfrn e sua hegemonia nos disputadíssimos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, o JERNS, juntamente com Alexandre Macedo. Naquele ano, 1975, conseguimos acrescentar a décima medalha de ouro consecutiva à coleção da Escola.

Ironia: no ano seguinte quebramos, eu e Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, outro depois notável enxadrista potiguar, a hegemonia da Etfrn e conseguimos, para o Churchill, creio que sua primeira medalha de ouro no xadrez.

Gilson Ricardo, eu, Maurício Noronha, Wilson Roberto, Dilermando Jucá, João Maria "Tarrasch" e Jairo Lima constituíamos a turma mais jovem que frequentava o P4BR Clube de Xadrez, de saudosa memória, do qual cheguei, tempos depois, a ser presidente.

Funcionava no último andar do Edifício Barão do Rio Branco, lá onde Manxa, excepcional artista plástico do nosso Estado, tinha seu estúdio, e, assim como nós, invadia as madrugadas nos dias-de-semana e sábados até a hora de irmos embora a pé, sem medo de absolutamente nada, por uma Natal adormecida e tranquila. Ônibus somente até as onze da noite.

Conversávamos muito, na época, acerca do jogo de xadrez: seus jogadores do passado, os grandes feitos, a história do esporte/arte, a situação local, quais torneios participaríamos... O importante, entretanto, era discutir a grande questão: a qual estilo nós, individualmente, nos filiávamos: seríamos posicionais ou táticos? Privilegiávamos a defesa ou o ataque?

Quem defendia o estilo posicional tinha, como ídolo, Tigran Petrosian; quem assumia o tático incensava Mikhail Tahl. Ambos eram, se podemos dizer assim, os maiores representantes de cada um dos estilos, segundo o entendimento dos estudiosos do assunto.

Hoje sei que eu, mesmo mediocremente, poderia ser considerado um jogador de estilo posicional, aos moldes de Petrosian, apesar de todas as limitações que um amador ingênuo possa ter. Cheguei a essa conclusão muito mais pelas características da personalidade de Petrosian que, propriamente pelo seu belo e estranho estilo de jogar.

Esse "insight" veio quando li uma frase que ele proferiu em algum momento de sua vida: "Em meu estilo, como em um espelho, está refletido meu caráter". Caráter não somente enquanto moral, mas, sim, como forma-de-ser, muito embora Petrosian fosse muito respeitado por sua dignidade e postura.

De fato, seu xadrez era cauteloso, prudente, posicional, defensivo, mas ele não via o seu estilo como passivo. Nós dizíamos, no nosso tempo, que ele parecia uma jiboia: envolvia progressivamente seu oponente, e ia triturando-o lentamente, deixando-o sem espaço, cada vez mais sem opções de jogada, até o arremate final.

Um dos grandes feitos de Petrosian, interromper uma sequência de dezenove partidas ininterruptas de Bobby Fischer em seu auge, originou um precioso comentário do gênio americano em seu My 60 Memorable Games: "Eu estava pasmado no transcorrer do jogo. Cada vez que Petrosian conseguia uma boa posição, ele manobrava para obter uma melhor".

Petrosian dera um nó no genial Bobby Fischer!

Quando Petrosian derrotou Botvinnik, ganhando o título mundial, este comentou: "Petrosian possui um talento único em xadrez. (...) Mas enquanto Tahl tentava alcançar posições dinâmicas, Petrosian criava posições nas quais os eventos se desenvolviam em câmara lenta. É difícil atacar suas peças: as peças atacantes só avançam lentamente, atoladas no pântano que cerca o campo das peças de Petrosian".

Ou seja, para Petrossian, o primordial era primeiro defender, para depois atacar; enquanto que para Tahl, o ataque era a melhor defesa.

Pois bem, ao longo dos anos, canhestramente, passei a crer que Petrosian tinha razão quando dissera que o jogo de xadrez refletia a forma-de-ser de cada jogador. E, ousadamente, ampliei o espectro do alcance de sua teoria: estou convicto que qualquer esporte reflete as características pessoais dos jogadores quando de sua atuação, desde o xadrez até o futebol, passando pelo pôquer ou artes marciais.

Creio que hoje, no futebol, estão presentes as duas escolas tradicionais do xadrez, como reflexo da personalidade de seus protagonistas, principalmente os técnicos, quais sejam a posicional e a tática, a postura centrada na defesa, e a postura centrada no ataque. Seria o caso de Tite e Guardiola.

Com base em Anatol Rapoport, o psicólogo e matemático americano nascido russo, em seu famoso livro de 1960, Fights, Games, and Debates, defensor da tese segundo a qual os princípios que norteiam sua "teoria dos conflitos" se estendem, por exemplo, aos debates, vou ainda mais longe: podemos perceber a existência desses dois estilos até mesmo na política.

Basta nos lembrarmos de Tancredo Neves e Leonel Brizola.

Tudo isso, claro, sem abrir mão de que na realidade não há nunca somente preto e branco.

Há os infinitos matizes do cinza.

Quanto a escrever, essa é uma outra história...


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quarta-feira, 23 de julho de 2025

JOSÉ BRILHANTE (CABÉ), O PRIMEIRO CANGACEIRO NO RIO GRANDE DO NORTE E PRECURSOR DE JESUÍNO BRILHANTE



Honório de Medeiros

* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.


Em 28 de fevereiro de 1851, o jornal “A Imprensa”, do Rio de Janeiro, ao transcrever longa correspondência oriunda do Rio Grande do Norte, na qual se relatam as perseguições supostamente sofridas pelos “sulistas” no âmbito do município do Açu, dá conta de uma apreensão ilegal, feita pela polícia “nortista” da cidade, de correspondência encaminhada por líderes liberais lá residentes, ao Coronel José Fernandes de Queirós e Sá[1], líder político em Pau dos Ferros, informando-o “sobre plano de assassinato tentado contra o Dr. Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti”.

Na mesma correspondência é transcrito "Mandado" expedido pelo Juiz Municipal de Assu com o seguinte teor[2]:

“Mando a qualquer oficial de justiça a quem este for apresentado, indo por mim assinado, em seu cumprimento varegem a casa do tenente coronel Manoel Lins Caldas, e capturem os réus José Brilhante e José Calado, que segundo a notícia dada a este juízo ali se acham no intuito de assassinarem o Dr. Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti” (...).

Em 30 de janeiro de 1852 o “Correio da Tarde” transcreve, em sua “Parte Oficial”, correspondência do Presidente da Província do Rio Grande do Norte, José Joaquim da Cunha[3], ao Ministro da Justiça Eusébio de Queiróz Mattoso Câmara, informando-o acerca da prisão de José Brilhante de Alencar e “mais oito dos seus sequazes” por “Amaro Carneiro Bezerra Cavalcanti e outras autoridades combinadas” que “convocando gente armada, e reunindo-lhes as praças do destacamento de primeira linha, ali estacionado, no dia 21 de novembro[4] último” os atacaram na “Casa de Pedra” e depois de “um fogo vivo não tiveram os insurgentes outro remédio senão render-se”. A mesma notícia foi divulgada pelo “Diário do Rio de Janeiro”.

Em maio de 1852 seguiu José Brilhante no vapor “Pernambuco” para o Ceará, para ser julgado pelos crimes lá cometidos em 21 de novembro de 1851.

Em 1859 a Justiça do Ceará encaminhou “Cabé” para o Rio Grande do Norte, no vapor “Paraná”, provavelmente para responder os processos-crime que contra ele tramitavam nesse Estado[5]. O Tribunal da Relação da Província do Rio Grande do Norte abre sessão para julgamento de José Brilhante em 5 de julho de 1861[6].

Em 1862 o “Correio Mercantil” do Rio de Janeiro, edição do dia 18 de junho, informou que no dia 29 de maio José Brilhante fugiu da Cadeia Pública de Natal, sem aguardar o resultado do julgamento[7]. Passara nove anos preso.

Por essa época Jesuíno Brilhante tinha 18 anos de idade. Dos nove aos dezoito cresceu escutando as histórias que lhe eram contadas acerca do tio famoso e violento. Fez-se homem embebido no “ethos” de violência e honra próprios do Sertão daquela época.

Passou-se um hiato de dez anos, durante os quais não se teve notícias precisas de José Brilhante. Entretanto, como fugitivo que era da Justiça, com certeza continuou perambulando pelo Sertão a cometer crimes.

Outra impressão não decorre da leitura do trecho seguinte, transcrito do “Jornal do Recife”[8]:

“A 25 de dezembro último[9], no distrito de Patu, foi barbaramente assassinado com facadas em pleno dia, Honorato de Tal[10], pelo célebre facínora José Brilhante de Alencar e seus sobrinhos Jesuíno de Tal e mais dois irmãos (...). A crônica sanguinária de José Brilhante e seu séquito é mui conhecida nesta e outras províncias, sendo o terror da população pelos lugares onde anda”.

Menos de seis meses depois, José Brilhante e Jesuíno Brilhante, com outros, atacaram, no Boqueirão de Tapera, Termo de Triunfo, o Tenente Francisco Cezar de Rego Barros, que fora a Patu prendê-los e, não o conseguindo, recrutara, à força, Antônio Brilhante de Alencar e Souza, filho do primeiro, e Lucio Alves, irmão do segundo, para libertá-los[11].

Aproximadamente um ano após[12] José Brilhante, Jesuíno Brilhante e o bando assassinaram, por emboscada, o Delegado de Polícia Tenente Ricardo Antônio da Silva Barros em Pombal, Paraíba.

No jornal “A Reforma”, essa morte é atribuída a uma encomenda do Coronel João Dantas, por ter o Delegado prendido um seu correligionário, Capitão Athayde de Siqueira, acusado de passar dinheiro falso.

Pela primeira vez, até onde consta, apareceram as ligações do clã dos Brilhantes com o Coronel João Dantas, grande proprietário de terras no Rio Grande do Norte e Paraíba.

Finalmente o “Jornal do Recife”, edição do dia 28 de março de 1874, informou que foi assassinado, por dois ladrões de cavalos, José Brilhante de Alencar e Souza. 

Raimundo Nonato no seu “Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro Romântico” lembrou uma divergência quanto ao ano da morte de José Brilhante: 1873 ou 1877?

Segundo Barroso morreu em 1873, no Pão de Açúcar, Alagoas, trocando tiros com uma quadrilha de ladrões de cavalo cujo chefe oculto era o Delegado de Polícia da localidade.

Câmara Cascudo, na obra acima mencionada, disse que sua morte ocorreu em maio de 1877. Com a matéria do “Jornal do Recife” se desfez o equívoco de Cascudo.

Jesuíno Brilhante, portanto, estava com José Brilhante ao seu lado, desde seus primeiros passos no mundo do cangaço. Essa a razão pela qual Jesuíno, com a morte do tio, assume seu sobrenome.

E, ao mesmo tempo em que o homenageia assegurou, para si, ao usar seu sobrenome, a permanente lembrança aterrorizante de seus feitos, que eram notícia no Sertão e nos jornais da época.

[1] Tetravô do Autor.

[2] Com grafia atual. 

[3] Conservador. 

[4] De 1851.

[5] Jornal “Pedro II”, de 2 de fevereiro de 1859.

[6] Jornal “O Constitucional”, de 9 de julho de 1861.

[7] Jornal “Correio Mercantil”, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1862.

[8] De 24 de janeiro de 1872. 

[9] Portanto, 1871. 

[10] Honorato Limão. 

[11] “Jornal do Recife” de 11 de julho de 1872 e “Diário de Notícias”, do Rio de Janeiro, de 4 de setembro de 1872.

[12] “Diário do Rio de Janeiro”, de 5 de agosto de 1873, e “A Reforma”, de 19 de agosto de 1873.

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segunda-feira, 14 de julho de 2025

LEGALISMO, GARANTISMO, LEGITIMISMO, SOLIPSISMO JURÍDICO E COISA E TAL

 



"O Julgamento".

* Honório de Medeiros


Os juízes, procuradores, promotores e que tais brasileiros são, em sua grande maioria, com honrosas exceções, metamorfos jurídicos(1) garantistas (2), quando julgam os outros, e legalistas (3) quando se trata de defender benefícios para eles mesmos.

Os metamorfos são metamorfoses ambulantes, à Raul Seixas.

O garantismo é aquela confusa teoria que entende a norma jurídica como uma casca ou invólucro onde será introduzido o recheio ao interpretá-la, produto composto a partir da noção individual ou particular específica acerca do que seja "O Justo", "O Certo", "O Bem Social", etc., para cada juiz.

Denominamos de solipsismo jurídico a crença na onisciência do juiz enquanto alguém capaz de saber, mais que a própria Sociedade, o que é bom ou ruim, justo ou injusto, certo ou errado, para cada um dos outros, ou para todos de uma só vez; é fruto do desapreço ou descrença oblíqua na capacidade da Sociedade de regular seu próprio Destino.

O legalismo é a teoria jurídica que prega a interpretação fria ("ipsis litteris") da norma jurídica positiva, ou seja, aquela constante dos códigos e legislações; para o legalista, pau é pau, e pedra é pedra, e não existe nada entre uma coisa e outra; às vezes são denominados, pelos apedeutas, de positivistas, demonstrando, assim, que a estratégia de desconstrução do óbvio, por parte de quem o deseje, não pertence apenas à Política e sua incrível capacidade de demonizar reputações. Os legalistas idolatram Heráclito de Éfeso, um pré-socrático, por ter afirmado que "o povo deve lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade".

O "garantismo", ou seja, a "interpretação constitucional da legislação" no Brasil, é a face exposta e retórica do ativismo judicial, uma vitória do Supremo Tribunal Federal em sua queda de braço com o Poder Executivo e a Sociedade, no sentido de estabelecer quem, de fato, exerce o Poder Político no País.

Por intermédio da interpretação constitucional o STF (seus ministros), esgrimindo difusos e confusos princípios constitucionais que externam seus difusos e confusos juízos de valor (aureolados por uma retórica de "cientificidade"), atropelando o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, governam, de fato, o Brasil.

O Artigo Primeiro, Parágrafo Único da Constituição Federal Brasileira, estatui que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Acentue-se que o Poder "emana do Povo", e é exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente".

A tradicional ojeriza do Homem em assumir a responsabilidade pelos seus atos o levou a construir um "escudo ético" para oculta-lo quando interpreta, constrói e/ou aplica a norma jurídica: atribui seus atos à "ciência", quando nada mais são que juízos de valor investidos de Poder.

Houve uma melhora, ao longo do tempo: antigamente atribuíam-se esses atos à vontade de Deus, dos quais alguns poucos, dotados de astúcia e força, seriam seus intérpretes.

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quinta-feira, 10 de julho de 2025

A LEI TEM QUE SER LEGAL E LEGÍTIMA

 


* Honório de Medeiros


À Lei não basta sua legalidade: tem que ser legítima.

Quando não o é, padece do mesmo vício que arruína a conquista pela força.

Não há distinção entre a mão pesada do indivíduo arrogante e a do Estado. Assim não cabe agasalharem-se na capa covarde do estrito legalismo, os que o fazem, para justificar interpretações, produções e aplicações da norma jurídica que firam tudo quanto causa repulsa ao cidadão comum, à Sociedade, portanto.

No âmago da ação de lidar com a norma jurídica, seja no começo, quando interpreta, seja no fim, quando aplica, está o ato de criar próprio de cada ser humano, anterior ao ordenamento jurídico e estranho a qualquer lógica. 

No íntimo desse ato de criar está, e não pode ser diferente, tudo quanto constitui o caráter do ser humano. Ao concretizar a ação de sua vontade, dizendo a norma jurídica, o operador se revela ao mundo tal qual é em seu heroísmo ou vileza.


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quinta-feira, 3 de julho de 2025

O REI DOS GATOS

                     


• Honório de Medeiros

O Rei dos Gatos. Negro retinto. Imenso. Olhos cuja cor flutuam ao sabor das circunstâncias. Aparece e desaparece como em um passe de magia. Reina inconteste no Serrame de Santana. Todos os outros lhe prestam vassalagem. Poucos de nós o veem...

Andava eu esquecido de quando o tinha visto pela última vez. Agora, lá estava ele, soberbo, plena luz do dia, na trilha, parado em um lugar estratégico, olhando desdenhosamente para mim, próximo às pedras onde eu estava.

Puxei o celular para registrar o momento. Enquadrei-o torcendo para que não escapasse, mas parei assustado. Ele estava com o pelo totalmente eriçado, e seus olhos brilhavam agudamente. A atitude era típica de uma defesa em preparo.

O que era aquilo? Algo o ameaçava. Não. Não era a ele. Era a mim. Era um aviso. Instintivamente dei um forte salto para o lado, saindo da pedra e pousando na areia da trilha. Algo sibilou, eu ouvi. Estremeci.

Foi por um quase nada. No canto onde eu estava, enrodilhada, uma cascavel graúda balançava o chocalho e me encarava, lamentando o bote perdido. Quase no mesmo instante, sumiu pelo outro lado, desapontada. Um arrepio percorreu minhas costas. Ah, Deus!

Olhei para o Gato Rei. Agradeci-lhe silenciosamente, baixando a cabeça. Ronronou. Passei a saber. Ele sabia que eu sabia. A mensagem fora clara. Daquele momento em diante, eu lhe devia um grande favor. Nada mais, nada menos.

Que assim seja.

Salve, Gato Rei!

°Honório de Medeiros, Cerro, Quinta da Aroeira,  30 de junho de 2025.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

TODA ESTRADA É UM DESTINO

 


   * Honório de Medeiros              


Toda estrada é um destino.
A estrada é o destino, seja metáfora, seja realidade.
É nossa história de vida.
O começo e o fim de algo inominado.
Essência ou aparência. Ínfimo ou descomunal. Ordem ou caos individual.

Para lá onde fica a beira do abismo, limites do seu terreno pedregoso, se encaminhava Seu Petronilo, tangendo uma velha, antiquíssima bicicleta caindo aos pedaços.
Parei o carro ao seu lado. Ele me olhou, ressabiado.
Dei um bom dia caloroso e então ele respondeu no mesmo tom, com seu sotaque da Serra, tirando o velho chapéu de massa, respeitoso, condizente com seus aparentes noventa e tantos.
"O senhor vai tomar que rumo?"
"Meu senhor, vou pelas beiradas até o Cabeço, se Deus me deixar".
"Então eu tou no rumo certo, seguindo em frente".
"Tá sim senhor".
"Vou lá agora cedo, porque soube que na ponta da Serra, final do Cabeço, as pessoas têm visto umas luzes estranhas, quando chega a noite alta. Quero assuntar. É assim mesmo?"
"É sim senhor. Eu mesmo fui pastorar uma raposa, num terreninho que tenho por lá, onde crio uns porcos, coisa pouca, era noite de lua grande, e vi essas luzes coloridas rodopiando no céu, indo e voltando, para lá e para cá, bem umas cinco ou seis. Uns caçadores que tavam por perto também viram".
"O Senhor teve medo?"
"Medo mesmo não, porque se tá no mundo é porque Deus quer, até me benzi umas tantas vezes, mas achei meio fora do conforme. Durou um bom pedaço. E eu olhando pro céu, me perguntando o que danado era aquilo".
No final deu tudo certo, não foi?"
"Mais ou menos. Enquanto eu cuidava das luzes no céu, a raposa cuidou dos meus porquinhos..."
Não tive como não rir. Ele riu também, colocou o chapéu na cabeça, pediu licença e tangeu a bicicleta, tomando destino, firme e forte como as rochas que abundam no Cabeço.
"Bom dia, Seu Petronilo, fique com Deus".
O Senhor também!"

Quinta da Aroeira, Cerro, Serra de Santana, 22 de junho de 2025.

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segunda-feira, 16 de junho de 2025

CONVESCOTE DE AVES DE RAPINA

 


* Honório de Medeiros


É de se lamentar discussões entre escritores que esgrimem com argumentos pinçados das obras de colegas seus, sem que lhes seja dado o devido crédito.

Não é à toa que muitos estejam deixando de lado o afã de pesquisar e escrever.

Ficam frustados quando encontram ideias com as quais trabalharam tanto tempo em mãos estranhas, como se lhes tivessem sido furtadas...


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sexta-feira, 13 de junho de 2025

12. A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. CONCLUSÃO


 


“Não subsistiria se não a fecundasse o adubo dos interesses, que se aproveitam da armadura espiritual, conservando-a por fora e dilacerando-a por dentro.” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder)

 

Assim, a interpretação jurídica, sobremodo a constitucional, pode ser, de fato é instrumento de e do Poder Político (2000:220).

Pois esse aparato teórico proteiforme, de contornos indefinidos e conteúdo ambíguo no espaço e no tempo, essa massa moldada pela estrutura de Poder Político atuante em cada momento histórico específico sempre existiu, antes mesmo do surgimento do Estado, como o demonstra o que há de mais recente no estudo da instauração do princípio da hierarquia, a partir da Psicologia Evolutiva. 

Então a interpretação jurídica, em última instância, pode e deve ser entendida enquanto Vontade Política: os que detêm o Poder Político optam por esse ou aquele, um ou outro caminho, a partir de interesses políticos remotos ou imediatos.

Por fim, não é verdadeiro que a lei em si diga o que é certo ou errado – esta é uma armadilha que resulta do emprego político de aparatos teóricos frágeis: ela é instrumento dos seus intérpretes[2]. 

Tampouco a realidade o permite, como a ciência demonstra: ela não nos diz, nós é que lhe atribuímos a nossa Moral.

Pode-se comprovar logicamente (trata-se de uma hipótese resistente à ação do tempo) que a Vontade Política permeia o discurso interpretativo – isso é um fato de natureza sócio-política habilmente dissimulado pelos detentores do Poder Político.

É nesse sentido que é útil perceber o caráter instrumental do Direito: para, entre outras coisas, não ser refém das armadilhas retóricas produzidas a partir de aparatos teóricos frágeis rompendo, assim, com uma conquista que remonta à Grécia – o respeito à lei – e aceitando um modelo de produção, interpretação e aplicação do ordenamento jurídico por meio do qual os detentores do Poder Político tentam impor seus interesses pessoais ou de grupo. 

Esse respeito à lei pode e deve ter uma conotação moderna, do ponto de vista lógico: trata-se de não aceitar a possibilidade de raciocínios jurídicos fundados em fontes outras que não a própria Norma Jurídica, bem como não aceitar interpretações calcadas em delírios argumentativos, o mais das vezes agasalhados em normas de conteúdo difuso que, por sua amplitude de incidência, se presta a qualquer papel.

Não é possível aceitarmos teorias que defendam a possibilidade da Norma Jurídica ser extraída do meio ambiente social; tampouco podemos aceitar teorias fulcradas nos pseudoditames da Razão enquanto verdade auto-evidente. 

Devemos acatar, isso sim, o primado da Norma Jurídica enquanto premissa inicial do raciocínio jurídico, entre outros motivos, se não o for pela argumentação acima desenvolvida, pelo respeito à vontade do povo que, para construir o ordenamento jurídico que a contém, se expressou através dos seus representantes legítimos e legais. 

Possibilidade de ir além dos limites estabelecidos pela Norma infra positivada os há, contanto que se permaneça dentro das fronteiras do ordenamento jurídico estabelecidas  legalmente – como, aliás, tão elegantemente propôs Hans Kelsen. 


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 

 

BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. 1ª ed., Rio de    Janeiro:  Editora Tempo Brasileiro, 1968. 

BACHELARD, Gaston. O Racionalismo Aplicado. 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. 

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1998. 

BERGEL, Jean-Louis. Teoria Geral do Direito. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes. 

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1977. 

BLANCO, Pablo Lopez. La Ontología Jurídica de Miguel Reale. 1ª ed., São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1975. 

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. 1ª ed., São Paulo: Ícone Editora, 1995. 

________ O Positivismo Jurídico. 1ª ed. São Paulo: Editora Ícone, 1996. 

________Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed., Brasília: Editora Unb,1997. 

________Teoria Geral da Política. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000. 

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COELHO, Luis Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. 1ª ed.,Rio de Janeiro: Forense; 1979. 

CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 

DENNET, Daniel C. A Perigosa Idéia de Darwin. 1ª ed., Rio de Janeiro : Editora Rocco,  1998. 

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. 

ENGELS, Friedrich.  A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 14ª ed., Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1997. 

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 15ª ed., Rio de Janeiro:  Editora Globo,  2000, v.1. 

FEYERABEND, Paul. Contra o Método. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves,1977. 

FOUCAULT, Michel. La Verdad y las Formas Jurídicas. 1ª ed., Barcelona: Gedisa, 1980. 

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GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 1ª edi., Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 

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POPPER, Sir Karl Raymond. A Lógica da Pesquisa Científica. 2ª ed., São Paulo: Editora Cultrix. 

________Conjecturas e Refutações. 1ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1972 

________ A Sociedade Aberta e seus Inimigos. 1ª ed., Belo Horizonte/São Paulo:.

________ Conhecimento Objetivo. 1ª ed., Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975. 

________ Autobiografia Intelectual.1ªed., São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977. 

________ Lógica das Ciências Sociais. 1ª ed. Rio de Janeiro/Brasília: Editora Tempo Brasileiro/Universidade de Brasília, 1978. 

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POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 4ª ed., São Paulo: Editora Graal,. 

QUILLET, Pierre. Introdução ao Pensamento de Bachelard. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. 

RIGAUX, François. A Lei dos Juizes. 1ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000. 

ROSS, Alf. Direito e Justiça. 1ª ed., São Paulo: Edipro, 2000. 

SARAIVA, Paulo Lopo: Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial. separata da Revista Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980. 

SOUTO e FALCÃO, Cláudio e Joaquim. Sociologia e Direito. 2ª ed., São Paulo:  Editora Pioneira, 1999. 

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 1ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,  1999. 

VATTIMO, Gianni. A Tentação do Realismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lacerda Editores. 2001. 

VIEITO; Aurélio Agostinho V. Da Hermenêutica Constitucional.1ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 

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[1] “A magistratura constitui-se numa verdadeira elite, participando decisivamente do comando político nacional e exercitando um forte poder no contexto social” (SARAIVA, Paulo Lopo; “Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”; separata da Revista Vox Legis; Sugestões Literárias; Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980; p. 46

[2] Na Folha de São Paulo de 4 de Janeiro de 2002, Mouna Naim, articulista do “Le Monde”, conta-nos que três sauditas acusados de homossexualismo foram decapitados e o Ministério da Informação “disse que o País considerava a penal capital o meio mais eficaz de salvaguardar o direito humano mais elementar: o direito à vida”.

Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

quinta-feira, 12 de junho de 2025

11. SINTOMAS DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DO PODER POLÍTICO


* Honório de Medeiros


“A visão superficial sempre esconde o verdadeiro sentido da atividade jurisdicional, que é mais profunda do que se possa imaginar e que apresenta um ‘substratum’ caracterizadamente político-ideológico” (SARAIVA, Paulo Lopo, “Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”.

A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

É a partir de premissas como essas que se deve entender o fenômeno da mutação constitucional, qual seja a alteração do sentido da norma constitucional vigente, enquanto reflexo da estrutura de Poder Político, em determinada circunstância histórica. Será ela, a mutação, concorde com as aspirações populares ou os interesses da elite dependendo exclusivamente da estrutura de Poder Político vigente espaciotemporalmente.

Bugos nos diz o que seja “mutação constitucional”:

“Poderíamos citar ainda Haug, Franz Klein, Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H. Krüger, Heydte, Peter Lerche, Tomuschat, Scheuner, Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, Friedrich Müller, que, igualmente a Hans Kelsen, compreendem a mutação constitucional como a aplicação de normas que se modificam lenta e imperceptivelmente. Isso ocorre quando às palavras, que permanecem imodificadas do Texto Maior, se lhes outorga ou sentido distinto do originário, ou quando se produz uma prática em contradição com o texto, não sendo um acontecimento peculiar e único na órbita das normas constitucionais, senão um fenômeno constatado em todos os âmbitos do direito” (1997:54ss).

O mesmo autor assim se manifesta quanto à doutrina da "construction" em relação ao Supremo Tribunal Federal:

“A análise das decisões do colendo Supremo Tribunal Federal demonstra a presença do construcionismo judiciário, permitindo-lhe desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a existência de amplos debates sobre problemas constitucionais, tal a messe de decisões repetidas na aplicação de certas teses. O acórdão a seguir elucida a questão, qual seja o do pedido de Intervenção Federal n. 14, de 1951, e o da Reclamação n. 315, de 1953, de que foi Relator o Ministro Edmundo Macedo Ludolf, quando lembrou ao plenário a ‘prerrogativa que competia ao STF de construir o próprio direito, em dadas circunstâncias de premência e necessidade, em ordem a suprir as deficiências ou imperfeições da legislação’ (DJ, 28 nov. 1951, p. 4528-9). O Ministro Edgard Costa também enfatizou que ‘o STF, ao modo da Corte Suprema norte-americana, desempenha não o papel de um simples tribunal de justiça, mas o de uma constituinte permanente, porque os seus deveres são políticos, no mais alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais’”.

Teria mudado, ao longo do tempo, a posição do STF quanto ao entendimento de que seus deveres são políticos, sua competência a de construir o próprio direito para além da expressa vontade do povo, manifestada através das leis que seus representantes votaram e aprovaram?

Parece que não, haja vista, por exemplo, a manifestação em relação à “MP do Apagão”: conforme ficou claro, o STF decidiu não decidir, a pedido do Governo, para impedir a discussão jurídica, através de sua manifestação em uma Ação Direta de Declaração de Constitucionalidade[1].

Outro exemplo patente é a questão do chamado “teto dúplex” que, em 1993, foi condenado pelo Ministro Carlos Velloso, como nos lembra o artigo de Marcos Sá Corrêa, publicado na revista Época, de 20 de março de 1999: “Julgava-se o recurso de um pequeno funcionário contra a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Policial aposentado, ele voltara à folha do Estado como professor universitário. Foi demitido por acumulação indébita e levou o caso à Justiça. Vencera em várias instâncias até ser barrado por Velloso em 25 páginas de sólidos argumentos”.

Hoje, sabemos, o entendimento do STF é totalmente diferente.

Nada, porém, demonstra, com maior clareza, a possibilidade de a interpretação jurídica atender reclamos do Poder Político quanto a teoria da interpretação evolutiva.

Segundo Luis Roberto Barroso:

“A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente do constituinte".

Mais à frente:

“Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos autoritária".

Barroso lembra que essas mutações constitucionais são possíveis graças ao elevado teor de indeterminação de normas constitucionais.

A POSSIBILIDADE DA DECISÃO CONTRA A LEI

Nada caracteriza tanto a possibilidade assumida de decisão contra a lei que o chamado “Direito Alternativo”, surgido na esteira criada pela chamada “Teoria Crítica do Direito”.

Tal teoria condena a identificação entre Direito e Lei e, mais ainda, critica asperamente a concepção estatal daquele, apontando fontes outras para o fenômeno jurídico, qual seja, o dos presídios e zonas comandadas por traficantes (Colômbia).

Trata-se, conforme já mencionado em outros textos neste livro, da crença no pluralismo jurídico.

Essa possibilidade de decisão contra a lei que for considerada injusta não é moderna do ponto de vista teórico.

Quem, tendo frequentado livros de História do Direito, não se recorda do bom Juiz Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, e não se preocupava com a lei, doutrina, sequer a jurisprudência? Ou da “Escola do Direito Livre”? Ou mesmo da “lógica do razoável”, de Luis Recazéns Siches?

A fonte dessa teoria é Eugen Ehrlich e “Fundamentos da Sociologia do Direito”, de sua autoria. Nessa obra ele convoca[2]: “A Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se, primeiramente, ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto deve ser observado”.

E, assim, cai na armadilha preparada pelo empirismo empedernido, já denunciado em capítulos anteriores, quando se fez a crítica da lógica indutiva.

O que é esse “Pluralismo Jurídico”? A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da crença na existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espaciotemporal.

Assim é que, por exemplo, em sua Introdução Histórica ao Direito, Gilissen  observa:

“nos países coloniais, nos fins do século XIX e até os meados do século XX, existiam geralmente dois sistemas jurídicos, um do tipo europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direito romanista nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos, e outro do tipo arcaico para as populações autóctones (...) No fim do período colonial (1960-1975) Portugal tinha feito das suas colônias africanas províncias e tinha tentado integrar os diversos sistemas jurídicos. Mas, apesar destes esforços, o pluralismo jurídico está longe de ter desaparecido de fato”.

Coelho (1979:115), citando Goffredo Telles Jr., vai um pouco mais além: “A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica" (1988:34).

Quais as conclusões possíveis a respeito da coexistência de mais de um sistema jurídico em um mesmo ambiente espaciotemporal? Uma delas, e talvez a mais intrigante, é a conjectura elaborada pelos teóricos do denominado “movimento sociológico do Direito” quanto à possibilidade de tal fenômeno ser uma prova inconteste de que existe um direito da sociedade extra-estatal.

Decorre essa conjectura de uma adequação do pensamento de Eugen Ehrlich, principal teórico da Escola do Direito Livre, autor de “Contribuição para a Teoria das Fontes do Direito”; “Sociologia do Direito”; e “Lógica Jurídica”, aos tempos modernos.

Com efeito, dada a impossibilidade de coexistência de dois sistemas jurídicos de natureza positiva, ou seja, cujas leis sejam originadas do Estado, somente é verossímil a hipótese defendida pela Escola de Sociologia Jurídica, cuja origem remonta a Savigny e que recebeu sua primeira sistematização com Eugen Erhlich, com fulcro na idéia de pluralismo jurídico.

Embora, a respeito do pluralismo jurídico, haja quase um consenso quanto a significar ele a coexistência de sistemas jurídicos distintos em um mesmo ambiente geográfico-temporal, as divergências surgem quando se utiliza esse conceito, verossímil para expressar a apreensão fenomênica de determinadas situações específicas, como aquelas descritas por John Gilissen, para suscitar a teoria da existência de normas jurídicas não estatais.

Exemplo patente do primeiro caso é aquele vivido por países colonizadores em suas colônias, bem como outros que tenham passado por experiências revolucionárias onde a antiga ordem conviveu durante algum tempo com a nova.

Também é o caso de países como o México e a Colômbia, onde o Estado admitiu a existência de um determinado ambiente espaciotemporal em que o sistema jurídico vigente não é o por ele imposto. Países como Portugal, que teve colônias na África, Inglaterra, e a Índia, por exemplo, jamais conseguiram tornar seus sistemas jurídicos hegemônicos: os dois conviviam, de forma complexa, com os sistemas jurídicos nativos.

Quanto ao segundo caso, aceita-se que as normas de conduta estabelecidas pelos presidiários no interior dos presídios, assim como aquelas existentes nas favelas, expressões do que Eugen Ehrlich entenderia como ordenações jurídicas internas e autônomas, também seriam um sistema jurídico.

Para aqueles que defendem caracterizar esse ordenamento tácito e não escrito vigente em presídios e favelas um “Direito”, tal concepção fulcra uma perspectiva ontológica: uma vez que há diversos direitos, aquele que com eles trabalha não pode se restringir ao uso de somente um no seu mister de concretizar a Justiça.

Ou seja, seria possível uma decisão contra a lei, mas a favor do Direito.

Em síntese, esses juristas crêem haver Direito resultante de fontes distintas do Estado.

Melhor, acreditam que há, além da norma positivada ou não (modelo inglês), mas existente, vigente e eficaz em decorrência da aceitação estatal, alguma outra, pelo Estado não reconhecida, mas dotada de eficácia e validade jurídica no “habitat” onde surgiu e apta, portanto, a desempenhar o papel necessário para a concretização da idéia de Justiça que se pretenda obter.

Por outra: as normas jurídicas positivas estão sempre a reboque dos fatos originando-se, em decorrência, em situações específicas, descompasso entre a lei e a Justiça. A decisão judicial, no afã de realizar a Justiça, tanto poderia valer-se da norma estatal como daquela que é “achada nas ruas”, “alternativa”, “insurgente”, ou “conforme o espírito do povo”.

Norberto Bobbio apreendeu, com notável perspicácia, o âmago da fragilidade dessa crença (1996:177).

Com efeito, do ponto de vista epistemológico, a construção teórica da escola sociológica do Direito somente é possível se o sujeito cognoscente pudesse apreender integralmente o objeto cognoscível (a coisa-em-si) com o qual se depara em seu intuito de desvendar a realidade. 

Trata-se da crença na possibilidade de ser possível apreender a essência, o âmago da “coisa” e dele extrair normas de conduta.

Essa crença é antiga conhecida dos filósofos, oriunda de uma tradição que remonta a Platão e sua gnosiologia exposta no “Teeteto” que nos remete a uma teoria das formas e das idéias, cuja denominação, ao longo dos anos, adquiriu diversos nomes, dentre os quais, em direito, “natureza das coisas”, palavras com as quais Montesquieu inicia o seu “Espírito das Leis”.

Montesquieu:

“A nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela que, em filosofia moral, é chamada de ‘falácia naturalista’, isto é, pela convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica em um juízo de valor). O sofisma da doutrina da natureza das coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de valor de um juízo de fato.”

A filosofia de ciência, principalmente, tem se revelado bastante mais avançada em tratar essa questão da relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, que qualquer outro ramo do conhecimento.

Assim é que, por exemplo, tanto Karl Popper, quanto Gaston Bachelard, filósofos, cada um a seu tempo e a seu modo, mostraram que o vetor do conhecimento é, em última escala, dirigido do Racional para o Real. E, também, físicos, como Werner Heisenberg; (Popper, 1978:14); (Bachelard 1977:33); (Heisenberg, 1996:12).

Se assim o é, argumentos como aqueles utilizados por Michel Miaille, tais quais: “os juristas (da Escola Sociológica) quiseram encontrar o direito nos fatos sociais, como um geólogo encontra minerais na Terra” ou, mesmo por Larenz (1989:78), ao afirmar que Ehrlich se equivocou ao tratar da dogmática jurídica, corroboram, no universo do Direito, o quanto está filosoficamente equivocado, em suas premissas, esse retorno a um certo tipo de idealismo que permite, metodologicamente, ao intérprete e aplicador da norma, pautar-se por um suposto sistema jurídico extra-estatal para materializar uma sua concepção de Justiça" (1979:281).

Puro personalismo. Solipsismo jurídico.

Na realidade, a teoria que extrai do pluralismo jurídico uma comprovação da possibilidade de existência de normas jurídicas extra-estatais, e propõe a existência dessas normas jurídicas em favelas e presídios, não somente extrapola a ciência, mas presta um desserviço à democracia.

Ao atribuir à realidade imediata um papel que esta não possui, de indutora de regras universais jurídicas, o intérprete e aplicador do “Direito” se autonomeia capaz de interpretá-la subjetivamente.

Crê-se ungido em um papel de demiurgo. Mas, ao final, nada está fazendo além do que, por seu próprio intermédio, reproduzir, como aparelho do Estado, enquanto integrante da superestrutura ideológica, o capital simbólico da elite à qual pertence.

Por que, no final das contas, ao agir contra o Estado, na medida em que desrespeita o princípio da legalidade, origina uma cultura de desprezo à lei. E esse desprezo à lei, ao ordenamento jurídico, ao Estado, é um filme já conhecido desde há muito.

Observemos que um dos fulcros em defesa do argumento do Poder Político é o interesse coletivo, do qual esse Poder se diz representante, embora as normas que amparem as garantias fundamentais sejam supostamente imutáveis quanto ao seu conteúdo e forma.

Aliás, quando a elite cai na armadilha que a realidade lhe impõe e esbarra no limite estatuído de forma objetiva pela norma, recorre, sempre, a uma norma que lhe seja hierarquicamente superior e de conteúdo, portanto, muito mais indeterminado, cuja interpretação permitirá uma escapatória, vez que os limites para o subjetivismo foram notavelmente ampliados.

Chaïm Perelman denunciou essa prática em sua “Lógica Jurídica”:

“Finalmente, os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de encontro às disposições expressas de lei” (1998:67).

Enfim e ao cabo, esta prática é sempre uma possibilidade do Poder Político.

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[1] Veja-se, a respeito, artigo de Dalmo de Abreu Dallari na Folha de São Paulo de Domingo, 15 de julho de 2001, cujo título é “Suprema Indecisão”.

[2] Ver SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2ª edição; 1999; p. 113.

Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br