Elio Gaspari
ELIO GASPARI
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03/02/2007 13:43
Dois advogados da Universidade de São Paulo deram um tiro na testa da teoria segundo a qual o Judiciário está entre os produtores de uma "incerteza jurisdicional" que favorece o andar de baixo, inibe o crédito e o funcionamento do capitalismo em Pindorama. A trava foi apontada em 2004 num trabalho de três marqueses das ekipekonômicas: Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, todos com carreiras de sucesso na academia e na banca. A "incerteza jurisdicional" derivaria, entre outros fatores, de um viés dos juízes, que buscam promover a justiça social em litígios relacionados com o crédito e o respeito aos contratos.
A teoria se amparou numa pesquisa feita junto à elite nacional. Dirigida por Bolívar Lamounier, ela mostrou que 61% dos juízes entrevistados preferiam decidir a favor dos fracos. Outra, específica, de Armando Castellar, com um universo de 741 magistrados, confirmou o achado: a defesa da justiça social deve prevalecer na defesa do consumidor (55,4%) e nos contratos trabalhistas (45,8%).
Lamounier e Castellar retrataram o que os juízes gostariam de fazer (ou gostariam que se dissesse que fazem).
Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, da Universidade de São Paulo, testaram a premissa da tese e foram ver o que acontece na vida real. Estudaram amostras de 181 decisões judiciais de São Paulo e outras 84 de 16 estados. Lidaram com cálculos arcanos, como modelos de regressão e de análise binária, vulgo Probit. (Noves fora José Luís Bulhões Pedreira, morto em outubro, advogado que sabe matemática e raro como o selo Olho de Boi.)
As pesquisas geraram dois trabalhos, um assinado pelos dois e outro, mais extenso, de Ribeiro. Resultou que se dois litigantes buscam a proteção de uma mesma lei, aquele que está no andar de cima tem até 45% mais chances de sair vitorioso. Se o contrato favorece o forte, tende a prevalecer. Quando favorece o fraco, esgarça.
Ribeiro, que teve o seu trabalho premiado pelo IPEA, foi mais longe: quando uma das partes pertence ao andar de cima local, tem entre 26% e 38% mais chances de prevalecer do que um grande grupo nacional ou internacional. Ele chamou esse fenômeno de "subversão paroquial da justiça". Numa terceira constatação, mostrou que, quanto maior a desigualdade social numa região, maior é o conforto do poderoso. A chance de um cidadão de Santa Catarina conseguir a proteção de uma cláusula contratual num litígio com o andar de cima é três vezes maior que a de um alagoano. Em bom português: "Não existe o favorecimento da parte mais fraca, ou seja, não há nenhuma evidência da aplicabilidade da hipótese da incerteza jurisdicional de Arida".
Em São Paulo, o Código de Defesa do Consumidor não protegeu uma cidadã contra um banco no caso de um contrato de financiamento de veículo. Já no Maranhão, o mesmo Código amparou uma empresa local que não pagou uma dívida de US$ 2,3 milhões. A outra parte era forte, mas na Suíça.
Descrita desse jeito, a pesquisa pode parecer uma pretensiosa transformação do pesquisador em instância de revisão judicial. O valor do trabalho está nos cálculos nos quais se ampara, calafetando desvios da amostra, testando hipóteses e resultados.
No que se refere ao Judiciário, quem inibe o progresso econômico e social não é uma incerteza jurisdicional resultante de um favorecimento do andar de baixo. É a velha e boa "subversão paroquial" que privilegia o andar de cima do mundinho onde corre o litígio.
Serviço: os dois trabalhos estão na internet e são contra-indicados como leitura de fim de semana.
* Os juízes brasileiros favorecem a parte mais fraca? (Brisa Lopez de Mello Ferrão e Ivan César Ribeiro): http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/26
* Robin Hood versus King John: como os juízes locais decidem casos no Brasil? (Ivan César Ribeiro): http://getinternet.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006_Profissional_01lugar_tema01.pdf (A versão em inglês dá menos trabalho. Basta passar no google "Ivan Ribeiro Robin Hood")
Dois advogados da Universidade de São Paulo deram um tiro na testa da teoria segundo a qual o Judiciário está entre os produtores de uma "incerteza jurisdicional" que favorece o andar de baixo, inibe o crédito e o funcionamento do capitalismo em Pindorama. A trava foi apontada em 2004 num trabalho de três marqueses das ekipekonômicas: Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, todos com carreiras de sucesso na academia e na banca. A "incerteza jurisdicional" derivaria, entre outros fatores, de um viés dos juízes, que buscam promover a justiça social em litígios relacionados com o crédito e o respeito aos contratos.
A teoria se amparou numa pesquisa feita junto à elite nacional. Dirigida por Bolívar Lamounier, ela mostrou que 61% dos juízes entrevistados preferiam decidir a favor dos fracos. Outra, específica, de Armando Castellar, com um universo de 741 magistrados, confirmou o achado: a defesa da justiça social deve prevalecer na defesa do consumidor (55,4%) e nos contratos trabalhistas (45,8%).
Lamounier e Castellar retrataram o que os juízes gostariam de fazer (ou gostariam que se dissesse que fazem).
Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, da Universidade de São Paulo, testaram a premissa da tese e foram ver o que acontece na vida real. Estudaram amostras de 181 decisões judiciais de São Paulo e outras 84 de 16 estados. Lidaram com cálculos arcanos, como modelos de regressão e de análise binária, vulgo Probit. (Noves fora José Luís Bulhões Pedreira, morto em outubro, advogado que sabe matemática e raro como o selo Olho de Boi.)
As pesquisas geraram dois trabalhos, um assinado pelos dois e outro, mais extenso, de Ribeiro. Resultou que se dois litigantes buscam a proteção de uma mesma lei, aquele que está no andar de cima tem até 45% mais chances de sair vitorioso. Se o contrato favorece o forte, tende a prevalecer. Quando favorece o fraco, esgarça.
Ribeiro, que teve o seu trabalho premiado pelo IPEA, foi mais longe: quando uma das partes pertence ao andar de cima local, tem entre 26% e 38% mais chances de prevalecer do que um grande grupo nacional ou internacional. Ele chamou esse fenômeno de "subversão paroquial da justiça". Numa terceira constatação, mostrou que, quanto maior a desigualdade social numa região, maior é o conforto do poderoso. A chance de um cidadão de Santa Catarina conseguir a proteção de uma cláusula contratual num litígio com o andar de cima é três vezes maior que a de um alagoano. Em bom português: "Não existe o favorecimento da parte mais fraca, ou seja, não há nenhuma evidência da aplicabilidade da hipótese da incerteza jurisdicional de Arida".
Em São Paulo, o Código de Defesa do Consumidor não protegeu uma cidadã contra um banco no caso de um contrato de financiamento de veículo. Já no Maranhão, o mesmo Código amparou uma empresa local que não pagou uma dívida de US$ 2,3 milhões. A outra parte era forte, mas na Suíça.
Descrita desse jeito, a pesquisa pode parecer uma pretensiosa transformação do pesquisador em instância de revisão judicial. O valor do trabalho está nos cálculos nos quais se ampara, calafetando desvios da amostra, testando hipóteses e resultados.
No que se refere ao Judiciário, quem inibe o progresso econômico e social não é uma incerteza jurisdicional resultante de um favorecimento do andar de baixo. É a velha e boa "subversão paroquial" que privilegia o andar de cima do mundinho onde corre o litígio.
Serviço: os dois trabalhos estão na internet e são contra-indicados como leitura de fim de semana.
* Os juízes brasileiros favorecem a parte mais fraca? (Brisa Lopez de Mello Ferrão e Ivan César Ribeiro): http://repositories.cdlib.org/bple/alacde/26
* Robin Hood versus King John: como os juízes locais decidem casos no Brasil? (Ivan César Ribeiro): http://getinternet.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006_Profissional_01lugar_tema01.pdf (A versão em inglês dá menos trabalho. Basta passar no google "Ivan Ribeiro Robin Hood")
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