Juiz Henrique Baltazar
Entrevista Henrique Baltazar
Edição de domingo do Diário de Natal, 5 de fevereiro de 2012
Por Maiara Felipe
"É um sistema que não tem como funcionar"
Juiz é corregedor do presídio de Alcaçuz.
Em meio aos desdobramentos da maior fuga da história do presídio de Alcaçuz, o termo inimigo foi usado pela primeira vez pelo secretário estadual de Justiça e Cidadania, Fábio Holanda. "Inimigos foram vencidos", disse ele afirmando ter tomado as rédeas da penitenciária. A frase indireta parece ter causado um efeito direto. O ex-coordenador José Olímpio, exonerado após a fuga, tratou logo de declarar que não era inimigo do Governo. Os agentes penitenciários mostraram um vídeo à imprensa para provar que os presos poderiam fugir sem a ajuda deles. O único que não armou sua defesa foi o próprio Estado, ainda dono da razão. "O caos acabou. Nunca mais acontecerá algo assim no estado novamente", afirmou, mais uma vez, Fábio Holanda. Quinze dias depois mais seis presos fugiram e surgiu uma nova frase: "É o Estado que não está dando condições para o sistema funcionar". Dessa vez, quem fala é o juiz de Execuções Penais e corregedor de Alcaçuz, Henrique Baltazar dos Santos. Em entrevista a O Poti/Diário de Natal, ele deixou claro não só a falta de investimentos no sistema penitenciário, mas a corrupção latente por ausência de fiscalização. O juiz diz ainda que o Estado não tem o controle de quem está preso em Alcaçuz, e ainda levanta a possibilidade dos 41 presos não terem fugido no mesmo dia.
Como o senhor resumiria a situação de Alcaçuz hoje?
Um desastre. A penitenciária de Alcaçuz, além de velha e deteriorada, apresenta problemas novos. Você tem um presídio que quando foi construído já não estava correto, em cima de uma duna, onde há uma possibilidade enorme de cavar um túnel para fugir. Também ocupa uma área muito grande e não é bem separado.
A penitenciária foi mal projetada?
Eu não sei se ela é mal projeta ou o problema foi na construção. Aqueles pavilhões precisam de contenções ao redor. Uma cerca colocada ao redor e com penetração subterrânea. Não tem nada disso. Existem vários métodos de contenção de túneis. Além disso, o prédio, na parte da estrutura física, é todo velho e com problemas. Há guaritas que não são utilizadas. A principal, por exemplo, os policiais não podem subir porque levam choque. Ela fica em cima de uma caixa d'água. E o outro problema é que todos os pavilhões estão deteriorados. Hoje, os agentes não ficam nesses pavilhõessozinhos ou em grupos, com medo de serem atacados. Os presos podem sair tranquilamente de dentro das celas e percorrer os pavilhões, porque há buracos nas estruturas.
O senhor falou sobre a falta de infraestrutura de Alcaçuz. Mas nos últimos 15 dias, com essas duas fugas, o senhor acredita em problemas estruturais ou em algum tipo de sabotagem?
Não acredito, como quer crer o secretário de Justiça. Apesar de se saber que alguns servidores revoltados com alguma coisa podem estar fazendo corpo mole, e não observam certas coisas, eu não acho que tenha sido intencional. O que há realmente é um problema de gestão. A gestão anterior quis corrigir o problema da falta de agentes na estrutura de Alcaçuz, criando um outro maior: diminuindo a segurança interna do presídios. Como os agentes não se sentiam seguros dentro dos pavilhões, então tiraram todo mundo, inclusive, do Pavilhão 5. A informação que eu tenho é que a energia elétrica está com problemas e não há luminosidade no Pavilhão 5. Você tem cinco pavilhões dentro de um presídio, sem nenhum agente trabalhando durante a noite. Só durante o dia. Você tem uma falta absoluta de segurança. Essa falta de gente é que potencializa o problema estrutural. Nessa ultima fuga (fugiram seis presos na última quinta-feira), o guariteiro viu e disparou. Mas como os presos conseguiram acessar esse buraco?
Esse pavilhão não foi revistado há poucos dias?
Os pavilhões são revistados, mas isso não é feito corretamente. Foi exatamente o Pavilhão 1 que passou pela revista. Mas a revista que foi feita pela PM, que deve ter visto o túnel tapado. Só que estava tapada apenas a entrada dele.
Esse mesmo túnel foi utilizado na última fuga, antes da saída dos 41 presos?
É. O fechamento dos túneis lá é feito precariamente. Colocam alguns tijolos, que em uma noite de trabalho o preso desmancha o serviço. É necessário em Alcaçuz um serviço grande. Tem que ser desde máquinas que cavem um fosso ao redor do presídio, para poder os túneis serem descobertos e efetivamente tapados. Se isso não for feito, não via adiantar. Vai acontecer outra e outra fuga.
O senhor deve ter visto o vídeo apresentado pelos agentes que mostra como os presos teriam fugido. Como o senhor avaliou o vídeo juridicamente? Todas aquelas informações podem ser divulgadas?
O que se noticiou é que o sindicato quis mostrar que as acusações contra eles eram falsas. Isso é uma avaliação errada dos agentes penitenciários. Eles precisam pensar na segurança do sistema antes de fazer isso. Para mim, há possibilidade de ter sido praticada uma falta disciplinar, por mostrar, inclusive aos presos, como fugir. Eles podem ter quebrado uma regra de segurança. Eu não quero analisar do ponto de vista jurídico, porque eu posso julgar um processo que venha a ser aberto. Só posso analisar do ponto de vista da segurança, dizendo que isso pode ajudar em futuras fugas. Por outro lado, o vídeo mostra que houve no mínimo negligência ao se permitir um monte de pedaços de ferro dentro de uma cela. Não tem como guardar lá dentro, a construção não permite. Como esses ferros ficaram dentro da cela sem que ninguém da segurança tenha visto?
O que evoluiu nas conversas que o senhor teve ao longo desses 15 dias com o secretário de Justiça?
Falei duas vezes com Dr.Fábio (Hollanda). Ele primeiro precisa conhecer o sistema. A avaliação inicial de que existia um inimigo está incorreta. Eu não vejo nem Olímpio (ex-coordenador da Coordenadoria de Administração Penitenciária) e nem no Major Lisboa (ex-diretor de Alcaçuz) como inimigos. O que eu acompanhei durante muito anos, é uma luta intensa de quem está na Coap (Coordenadoria de Administração Penitenciária) junta a Sejuc para conseguir recursos que não vêm. Eu vi durante meses os diretores dos presídios tentando conseguir, por exemplo, cadeados. Isso é uma coisa que precisa se comprada em quantidades enormes. A Coap não tem verba, e buscava na Sejuc, mas nem sempre isso acontecia. Viaturas quebradas e não seconseguia dinheiro para consertar. Faço parte da comissão que controla o fundo penitenciário, e nós liberamos mais R$ 400 mil para o sistema adquirir armas. É uma coisa lenta. No final do ano foi feita essa liberação e até agora não foi adquirido esse material. Então, eu não via esses inimigos dentro do sistema, o que há é um sistema que não tem como funcionar.
Por que os materiais ainda não foram adquiridos?
Eu não sei. Eu comentei com Dr. Fábio que nós tínhamos aprovados a liberação do dinheiro. Ele nem sabia, disse que iria se informar. Na época da reunião foi dito que o Exército tinha autorizado comprar 100 espingardas calibre 12, 100 coletes, e uma quantidade razoável de munições. É uma coisa que ajudaria a resolver a deficiência da segurança. Os agentes reclamam que trabalham com armas próprias. O estado deveria tentar junto ao Exército e à Polícia Federal a liberação de armamentos apreendidos para usar no sistema penitenciário.
Ao que parece, o inimigo é o próprio estado?
É o que eu sinto mais. É o Estado que não está dando condições para o sistema funcionar. O secretário Thiago Cortez me reclamava sempre que dava determinações aos setores da Sejuc, como por exemplo, a engenharia, para fazer um projeto, e o sistema (servidores) não obedecia. É um problema de gestão. O Estado não consegue mandar nos seus funcionários. Alcaçuz é um exemplo. Para mim, tem um problema grave na região, alguma bactéria. Os policiais frequentemente faltam o trabalho porque estão de licença médica. Antes quando existia uma gratificação para os policiais que trabalhavam em Alcaçuz ninguém ficava doente, agora fica todo mundo. Parece que a falta desse pagamento está importando em uma bactéria qualquer que está atacando os policiais. O Estado não tem controle sobre a falta dos seus funcionários ao trabalho. Na própria Coap consta que tem agente tirando licença médica em cima de licença médica. O Estado não tem uma junta médica que avalie isso para saber se não está tendo uma fraude. A grande maioria dos agentes é bom e dedicado, mas existe uma pequena parte que não presta, que vai desde vagabundo que não quer trabalhar até corruptos que vendem fugas e possibilitam certas situações.
Independente de ser droga, celular, bebida alcóolica, o material só entra com ajuda de alguém. O problema de Alcaçuz só vai ser resolvido quando for combatida a corrupção?
Não só de Alcaçuz como de todo o sistema penitenciário. O PEP ( Presídio Estadual de Parnamirim) tem um índice enorme de drogas entrando lá. O sistema fazia uma revista aprendia e 15 dias depois tinha de novo. Como isso está entrando? Está nascendo lá dentro? Droga, arma e celulares entra direto. E porquê não é feito nada? Eu já ouvi de autoridades penitenciárias que elas, às vezes, deixam de investigar certas situações com mais cuidado porquese demitirem os agentes, não vai ter suficiente para colocar no lugar.
As autoridades deixam de investigar os servidores por não poder substituí-los?
Parece-me isso, pelas conversas que eu tenho escutado. Muitas vezes, não tira o agente que seja corrupto porque não tem quem colocar no lugar. O Estado não tem velocidade na reposição desses servidores. De toda forma, o Estado tem que trocar esses agentes. Um detalhe que eu escuto ser dito que está errado: o número de agentes foi mais do que duplicado nos últimos anos. O problema é que o número de presos, uma média de seis mil hoje, há dois anos eram 2.500, e não é porque prendeu muita gente, não. É que os presos que estavam nas delegacias foram assumidos pela Coap, que não se estruturou para isso.
O senhor acha que o principal problema do sistema penitenciário do Rio Grande do Norte hoje é a corrupção ou a falta de estrutura?
Fica difícil dizer qual o principal. Mas existem alguns grandes males que a gente poderia anotar. O primeiro é a estrutura física.Ruim e pequena. Presídios que, além de poucos, são mal localizados. Não tem dificultadores de fugas, que são frequentes. Não tem vigilância suficiente, não tem câmeras. O segundo problema é o de gestão. Alguns têm diretores muito bons. Agora está sendo testado o Coronel Mendonça, que sempre se destacou por ser um PM muito bom. Mas infelizmente alguns diretores são nomeados por indicação política. Outros estados exigem dos diretores pós-graduação em Gestão Prisional. No Rio Grande do Norte não se exige coisa nenhuma. Não temos diretores com essas formação. Há um amadorismo na administração penitenciária. O outro problema grave é o da corrupção. Existe sim, por mais que os agentes não gostem quando a gente diz isso. Nós temos maus juízes e bons juízes, temos bons PMs e outros que merecem estar na cadeia. A mesma coisa com os agentes. A Coap instalou uma espécie de corregedoria que vai começar a apurar essa situações. No governo anterior, o corregedor foi preso supostamente extorquindo os agentes. Essa nova estásendo dirigida por um tenente da PM que parece dedicado. Major Deques fez milagres na Coap, José Olímpio também e agora Coronel Reis vai ter que fazer um curso com um santo qualquer para aprender a fazer milagres. Eles ficam fazendo pequenas coisas com o pouco que eles tem. Vai chegar uma hora que não tem mais jeito.
Será que já não chegamos a essa hora?
Essa impressão eu já tenho faz tempo. Ou o Estado resolver dar ao sistema penitenciário a atenção que ele merece, ou não tem mais o que fazer.
Alcaçuz chegou a ser considerado um presídio de segurança máxima. Ainda é esse o caminho que a Justiça tem para enviar um criminoso de alta periculosidade ?
As penas são aplicadas pelos juízes e o juiz da Execução Penal tem que fazer com que essa pena seja cumprida. Ele precisa fazer cumprir essa pena dentro do estabelecimento do estado. O juiz de Execução não tem outra coisa a ser feita. A lei prevê que eu posso fechar o estabelecimento prisional que for ruim. Eu vou lá, fecho Alcaçuz. O que eu vou fazer com osquase mil presos que tem lá? Vou deixá-los aonde? Não tem onde colocar. A gente acaba aceitando a situação que existe e tentando melhorar. Você vai causar um perigo maior para sociedade deixando eles soltos. Fogem alguns, mas a maioria continua lá dentro.
Até que ponto a desorganização do sistema penitenciário interfere no trabalho executado pelo senhor?
A maior interferência é o sistema não funcionar. E o que você vai fazer com os presos? Em Natal não tem regime fechado. Você tem os presos provisórios, que ao serem condenados devem ser transferidos para uma penitenciária. Nós temos a PEP e Alcaçuz. A PEP está lotada. As outras transferências são feitas para Alcaçuz. Infelizmente muitos fogem. Alguns desses que fugiram recentemente, foram apenados que a gente transferiu de Natal. Eram os presos da delegacias dos CDPs (Centros de Detenção Provisória). Então você fica na situação: os presos piores que tem penas maiores são retirados dos CDPs, que são frágeis, mas têm menos fugas, e são levados para um presídio de segurança. Lá eles fogem com mais facilidade. O outro problema muito mais grave está relacionado aos direitos dos presos. Alguém que é levado para Alcaçuz, o Estado é responsável pela segurança dele. Pavilhões velhos, presos armados, o preso novo termina sendo extorquido pelo preso que controla o pavilhão. O estado não manda dentro de presídio.
Em relação à fuga dos 41 presos. O senhor já recebeu a relação dos fugitivos ?
A gente fica sabendo das coisas pela imprensa. Infelizmente, há em Alcaçuz uma situação que a direção nem sabe efetivamente quem está preso lá. Algumas coisas estranhas ocorreram. Existe a possibilidade de que algumas fugas não tenham acontecido naquele dia. Simplesmente, naquele dia é que foram fazer a contagem e aqueles presos não estavam. Mas pode ser que que a fuga tenha sido antes, simplesmente porque o Estado não sabe quem está preso lá.
Precisa de novos mandados de prisão para esse fugitivos?
Isso.
Enquanto não tiver esses mandados, o que ocorre?
Infere-se que a polícia não está procurando. Um policial do interior ou de outro estado para um sujeito desse e não tem como saber que tem um mandado de prisão expedido contra ele.
Em uma verificação de documentos não tem como se prender essa pessoa?
Não. Você não tem como saber que ela é foragida. E aliás é uma fantasia você dizer que a polícia está procurando os fugitivos. Onde? O policial que assumiu o serviço hoje vai procurar alguém que fugiu na semana passada de Alcaçuz? Não existe uma estrutura no sistema penitenciário ou na polícia para sair procurando. A Decap (Delegacia de Capturas) não tem nem essa estrutura. Lá tem milhares de mandados de prisão para serem cumpridos. É preciso ter um grupo de recaptura.
O cidadão pode acreditar que a polícia estaria verificando possíveis locais onde os fugitivos estão?
Eu duvido. Pode ser que um o outro mais famoso. Alguém que a polícia resolve procurar, um o outro policial, por conta própria. Nos primeiros dias a polícia se mobiliza, mas depois de alguns dias, ele ( preso) é pego quando está cometendo algum crime.
O senhor acredita que precisa ser criada uma estrutura dentro do sistema penitenciário para fazer essas recapturas ou isso deveria ser feito pela Polícia Civil?
Era da Polícia Civil, mas como ela não faz mesmo, o próprio sistema deveria ter. O sistema tem uma espécie de dossiê de cada preso. Examinando esse documento tem condições de saber detalhes daquele preso. Essa era uma reclamação de José Olimpio, que não tinha essa facilidade de contato com a Polícia Civil de forma que houvesse uma troca contínua de informações.
O senhor acha que a administração anterior de Alcaçuz era impotente ou conivente com as muitas situações do presídio?
Impotente. Eu digo porque vi várias vezes. Não quanto as notícias que foram divulgadas, que depois José Olímpio disse que não teria dito aquilo, sobre vídeos, etc. Mas informações que poderiam ter levado a prisão de mais gente, descoberto quadrilhas de tráfico e outras coisas desse tipo. Informações que existem dentro do sistema penitenciário, e que a Civil poderia ter apurado. Isso não acontece porque eles (coordenação do Coap) não sabem nem a quem levar. Se usa só a base da amizade. Eu conheço um delegado, você conhece alguém... As informações dentro do sistema penitenciário correm com muita facilidade. Os presos conversam com os agentes as coisas que sabem. E o agente recebe a informação e não sabe o que fazer com ela.
Tem alguma coisa que o senhor como cidadão pense do sistema penitenciário, que como juiz ainda não tenha falado?
Eu sou juiz de Execução Penal desde 1990, eu acompanho desde o começo o sistema, desde os governos anteriores. Acompanho esse trabalho de muito tempo. Minha esposa é agente penitenciária, eu tenho acompanhado sempre e tenho visto a vontade dos servidores do sistema de fazer funcionar. O Estado não tem interesse. Na cabeça de muitas pessoas, o preso deve ser colocar em uma ilha cercada de tubarões e ser esquecido para sempre. Na verdade, o sistema penitenciário deve mantê-los recolhidos pelo tempo que for necessário para que voltem para o seio da sociedade. A pena tem que ter a função pedagógica. O problema é que quanto o sistema não funciona, quando preso é solto antes da hora, quando ele foge, quando ele tem essa facilidade, esse efeito pedagógico desaparece. Para o resto da população é pior. A sensação que eu tenho como cidadão, que também sofro com crimes - tive um filho com revólver na cabeça durante um assalto - é de impotência. E pior, eu, como juiz de Execução, tenho feito reclamações. Há anos eu venho lutando, pedindo, brigando, falando com os secretários. Eu conheço todos eles. Conversei várias vezes com Leonardo Arruda, Dr. Thiago, e já tive alguns contatos com Fábio. Simplesmente eu não consigo fazer com que a cosia funcione. Mas a esperança a gente sempre tem.
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