quarta-feira, 26 de junho de 2024

O SERTÃO É ASSIM



Por Honório de Medeiros

Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

@honoriodemedeiros


O Sertão é assim: uma secura medonha, nuvens poucas no céu, o mato ralo e seco, um sol de lascar o cocuruto, preás, mocós e cascaveis correndo nas lajes, um ou outro gavião pairando lá em cima, voando rasante,  mas quando chega o por do sol, os sabiás e cabeças-vermelhas se recolhem, o rasga-mortalha se assanha, os juritis começam seu canto e os chocalhos do gado ecoam nos currais, vai chegando a hora da coalhada,  então uma melancolia suave se espalha pela imensidão, o vivente se esquece de tudo e uma certeza chega forte: ali é seu lugar, seu chão, sua pátria...

SÃO JOÃO NA SERRA DE SANTANA, CERRO CORÁ



Por Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros 
honoriodemedeiros@gmail.com

Cerro Corá, Serra de Santana, Colina dos Flamboyants, 22 de junho de 2024. Longe, ouço a Novena de São João Batista, na voz do pároco. Logo mais, o leilão, tradição sertaneja antiga, seguido de um forró pé de serra legítimo, com sanfona, zabumba e triângulo, enquanto o Galego da Serra prepara, em sua imensa tina, para todos verem, o queijo de manteiga que lhe rendeu premiação na França. Uma mesa, imensa, comportará mugunzá, canjica, pamonha, bolo preto, bolo da moça, pé de moleque, dadinhos de tapioca com geléia de pimenta e assim por diante, tudo arte de Jane Silva, incomparável. Celebraremos a amizade, os afetos, os laços de família: é o que esperamos, tudo sob a proteção de São João, a quem invocamos a benção, proteção, e a abertura dos caminhos que queremos percorrer. Saudade de meus filhos, tão longes, e de minha irmã...

quarta-feira, 19 de junho de 2024

SEU ANTÔNIO DE LUZIA

 


Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.


Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.

A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

terça-feira, 18 de junho de 2024

ABRIL É O MAIS CRUEL DOS MESES



* Honório de Medeiros.

Dia cinzento. Prédios cinzentos. Rue de Granelle.  Paris. Sigo por Saint-Germain-des-Prés-Prés, a passos hesitantes. Abril de 2009. É o mais cruel dos meses, disse Elliot em célebre poema. Talvez seja. Nasci em abril. Vou andando entre absorto e distraído. O pensamento voa, mergulha no passado distante. Sou adolescente, e, deitado na rede, livro de Dumas pousado no peito, sonho com uma Paris medieval, onde os mosqueteiros do rei defendem a rainha das astúcias ciumentas do cardeal Richelieu. Ah, Dumas. Percebo um mendigo. Não parece, não olha os passantes, não pede, mas a tigela pousada no papelão, à sua frente, não o nega. Seus olhos não desgrudam do livro, grosso e novo. Não consigo perceber o título. Deixo-lhe algumas moedas. Agradece, sem me olhar. Sigo em frente. Paris, Paris, onde andará esse mendigo, os mosqueteiros, a bela Ana de Áustria e o cardeal Richelieu?

quinta-feira, 13 de junho de 2024

PÈRE LACHAISE



* Honório de Medeiros

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém à vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. “Não, desculpem-me, não sei”. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.

Tento decifrar o mapa do cemitério para ir em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Caminho. É um alumbramento. Em cada canto, história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento. No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.

Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um deles. 

Mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, mas me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo. 

A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho e não vejo ninguém.

Sento em um banco às margens de uma das vias principais e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do presente e do passado: é plena madrugada, estou deitado de costas olhando para a torre da igreja do cemitério e para as estrelas logo acima; agora é a Mossoró da minha adolescência e infância, a Igreja é a de São Vicente, meus amigos de então conversam ao meu lado, mas ninguém dá por mim. Sou adolescente e adulto. Angústia.

Levanto-me e vou embora. A chuva molha meu rosto. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

SEU SEBASTIÃO BENTO


* Honório de Medeiros

Enquanto a tarde se fazia noite nas quebradas da Serra Verde, pelas bandas da Serra de Santana, no Seridó, e se ouvia, longe, o canto melancólico do Juriti sob o manto cinza  de uma chuva miúda, puxávamos conversa, eu e Genilson, com Seu Sebastião Bento, noventa e nove anos nos couros, como dizemos no Sertão profundo.

Ele nos dava notícias de sua gente, espalhada pelos quatro cantos do mundo, talvez uns vinte e tantos filhos, somente três casamentos, porque não se dera ao gosto de aprender a dançar, tal qual seu filho Geraldo, vaqueiro e dançarino respeitado nas redondezas. 

O feijão branco, largado no chão e esperando debulhe, bem como a garrafa de pitu, carinhosamente guardada no canto do banco de madeira, ao alcance da mão, escutavam a história.

Nascera lá mesmo, naquele recanto, e os anos, muitos, se passaram velozes, mas ainda sobrava energia para cuidar do gado solto na revença do açude, e da roça de milho. A voz rouca, marcada pelo tempo, faz um contraponto sutil com o canto das cigarras e pássaros que saudam a noite vindoura.

Dou fé, disse a ele. Eu o vira surgir afastando o mato com sua bengala singela, enquanto tomava o rumo de casa em busca da lapada de cana que espalharia o sangue, antes da coalhada com raspa de rapadura. 

Depois, tomamos rumo em busca do por de sol ao som do canto triste do Juriti. Quanta beleza ignorada pelos homens. Quanta solidão naquele mundaréu de Deus...

Voltamos. 

Dia seis de abril, onde estivermos, vamos homenagear seus cem anos, Seu Sebastião. Ô meu filho, eu agradeço muito essa visita e consideração.

Fique com Deus, Sal da Terra, eu lhe disse enquanto apertava sua mão, dura e áspera como uma rocha, me lembrando de São Mateus. 

Voltarei.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

LONGE, AS SERRAS...

 

Imagem: Honório de Medeiros


Longe, as serras. Acima, nuvens carregadas de chuva. O verde da mata. A estradinha de terra vermelha rasgando o chão. A água do açude. A árvore onde araras fizeram pouso. O perfume do ar carregado de umidade. Vou amarrar minha burra choteira aí, nesse presente de Deus. Eu e minha amada. Numa casinha simples, alpendrada, onde a passarinhada faça pouso, e, de noite, um ou outro saci venha pitar, quando for lua cheia...

terça-feira, 28 de novembro de 2023

ADEUS, SÁTIRO

 

Imagem: Carlos Duarte

Tão antiga era a relação de Padre Sátiro com meus pais, comigo, e minha irmã Emília, que começou antes que eu nascesse.

Sátiro assumiu a capela de São Vicente em 1956. Eu nasci bem dizer ao lado da igreja, em 1958. 

Minha mãe foi diretora da Escola 13 de Junho - criada por ele - ali na esquina da Rua Dr. Francisco Ramalho, a partir de sua instalação até quando adoeceu. Administrou a capela e integrou eu coro anos a fio; meu pai foi seu financeiro e lá serviu como Ministro da Eucaristia.

Até vir para Natal, em 1974, e desde o primeiro ano primário, tive Sátiro como Diretor e várias vezes professor.

Menino, junto com meus amigo de infância, brincamos todos os dias, chovesse ou fizesse sinal, no patamar da capela, destruindo os jardins que ele mandara plantar , o que nos custava infindáveis "carões" memoráveis quando éramos encontrados no Diocesano.

Não brincávamos, apenas. Lembro bem de Marcos Porto e eu, meninos, balançando o turíbulo sob nuvens de incenso, nas anuais noites da novena de Santo Antônio que ele oficiava, cujo hino ainda sei de cor.

Bem depois, em um gesto de grande carinho e delicadeza, abriu a capelinha do Colégio Diocesano para celebrar meu casamento.

Por fim, estava presente, solidário na dor, encomendando os corpos de Seu Chico Honório e Dona Aldeiza Sena, quando de suas mortes.

Mas a lembrança que sempre permanecerá comigo, foi a imagem dele rezando um terço, de cabeça baixa, sentado próximo ao altar da capela, em frente ao caixão no qual meu pai recebia as despedidas definitivas.

No final, fui cumprimentá-lo. Ele olhou para mim e disse: "você perdeu o pai; eu, um grande amigo".

Adeus, Sátiro. Ou até algum dia.

sábado, 25 de novembro de 2023

SAUDAÇÃO AOS PARTICIPANTES DO EVENTO EM HOMENAGEM A CÂMARA CASCUDO

 



Boa noite! Saúdo os integrantes do Instituto Cariri Cangaço, Instituto Câmara Cascudo, UNI-RN e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, assim como todos os outros participantes deste evento.

Historiador, jurista, antropólogo, etnólogo, folclorista, sociólogo, memorialista, crítico literário, biógrafo, filósofo, cronista, romancista, poeta, ensaísta, bastaria “Civilização e Cultura”, que completou 50 anos em 2023, para colocar Câmara Cascudo entre os grandes pensadores nordestinos.

É pouco, porém, para tão grande obra, ampla, profunda e complexa. Ele congrega tudo isso e muito mais. Pela intensidade, quantidade e qualidade de sua produção intelectual, ele é, sem sobra de dúvidas, um dos maiores pensadores brasileiros.

Cascudo é um oceano.

Considero singular e apropriada esta homenagem, hoje, a Câmara Cascudo, vez que, pela primeira vez presencialmente, até onde sei, conecta-se o descortínio do pensador potiguar, com o fenômeno do cangaceirismo.

Cascudo, permitam-me chama-lo assim, como o fazemos desde sempre, carinhosamente, foi o primeiro norte-riograndense a escrever acerca desse tema, em Viajando o Sertão, sua sexta obra, cuja primeira edição é de 1934.

Nela tratou, pela primeira vez, do tema “cangaceirismo”[1], e escreveu não somente acerca de Jesuíno Brilhante, mas, também, de Virgolino Lampião, em dois capítulos distintos[2].

Em Vaqueiros e Cantadores, cuja primeira edição é de 1939, Câmara Cascudo avançou um pouco mais no tema, tentando resolver a dicotomia entre o modo-de-vida de Jesuíno Brilhante e o de Lampião. Tentou, pelo menos.

É quando introduz a hipótese do “fator moral” como elemento significativo e diferenciador entre os tipos de cangaceiros, "insight" anterior de Felipe Guerra, mais tarde brilhantemente desenvolvido por Frederico Pernambucano de Mello em sua obra canônica acerca do cangaço, Guerreiros do Sol, na qual o denomina de “escudo ético”.[3]

Câmara Cascudo voltou ao cangaceirismo em duas Actas Diurnas, escritas para o Jornal A República de 31 de maio de 1942 e 7 de junho do mesmo ano, escrevendo acerca de Jesuíno Brilhante.

Curiosamente, em 1944, citou Jesuíno em um verbete, na primeira edição do Dicionário do Folclore Brasileiro, quando, em rápidas pinceladas, expôs o perfil do cangaceiro, tratou um pouco de sua história, e elencou quais as fontes de sua pesquisa, sem acrescentar nada de novo ao que já havia escrito anteriormente.[4]

Vinte e dois anos depois, em Flor de Romances Trágicos, cuja primeira edição é de 1966, Cascudo inovou e apresentou "Nota" contendo a definição, digamos assim, positivista, diferente acerca do que seria "Cangaceiro" e "Cangaceirismo".[5] 

Os tempos eram outros e ele, sempre atento, não ficou fora das novas correntes filosóficas que grassavam na Europa.

Obra notável, sob todos os aspectos, seja como historia, seja como estilo literário, apresenta aos seus leitores Liberato, Antônio Silvino, Jararaca, Adolfo Rosa Meia-Noite, Jesuíno Brilhante, Lucas da Feira, Cabeleira, dentre outros valentões, cabras, jagunços e cangaceiros.

Ainda encontra tempo e lugar para introduzir, até onde sei, pela primeira vez no Brasil, intuitivamente, dois exemplos de feminicídios que foram desdobramentos perversos do exercício do Poder privado, através da morte de Ana Freire de Brito e Dona Ana de Faria Souza.

Registre-se, no livro, a notável informação, típica de Câmara Cascudo, na qual aponta a definição mais antiga acerca do que seria “Cangaço” (cangaceirismo): a do Tenente-General Visconde Henrique de Beaurepaire-Rohan, explorador, geógrafo, soldado e político brasileiro, nascido em 1812 e falecido em 1894, autor do Diccionario de Vocabulos Brazileiros, publicado em 1889 pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro, conjecturando que cangaço é "o conjunto de armas que costumam conduzir os valentões".

Antes, em 1955, Raimundo Nonato tinha visitado Cascudo para lhe entregar, sem que houvesse entrado em circulação, seu Lampião em Mossoró, que foi o primeiro livro escrito por um potiguar acerca do cangaço.

                   Nonato conta, na parte que denominou de “Breve Notícia Antes do Livro”, que Câmara Cascudo, ao receber o presente, o convocou para escrever “a gesta do cangaço no Nordeste Brasileiro”. Cascudo lhe dissera, na ocasião:

                   No itinerário a percorrer, varando caatingas e estradas iluminadas pelos clarões dos tiros dos velhos bacamartes de pederneira, falará, de começo, sobre Jesuíno Brilhante, o cangaceiro romântico, caudilho de batalhas incontáveis, que respeitava as famílias e defendia os oprimidos.

Tempos depois, precisamente quinze anos (1970), no que foi o primeiro livro dedicado exclusivamente a Jesuíno Brilhante, Raimundo Nonato da Silva lançou Jesuíno Brilhante, O Cangaceiro Romântico, sob instigação de Cascudo.[6]           

                   O livro repetiu a fórmula que Raimundo Nonato usara em Lampião em Mossoró, de 1955.[7]

                   Por fim, na trajetória tangencial, embora relevante, de Câmara Cascudo no estudo do cangaceirismo, alguns temas são instigantes:

1)    suas definições e hipóteses acerca do cangaceirismo;

2)    sua teoria do “fator moral”;

3)    os perfis de Jesuíno Brilhante e Lampião, antagônicos entre si, segundo sua perspectiva;

4)    os perfis de cangaceiros menores, tais quais Jararaca e Moita Brava;

5)    a hipótese do paralelismo entre coronelismo e feudalismo, nunca desenvolvida, mas insinuada;

6)    o esboço acerca de uma taxonomia dos cangaceiros, precursora da tipologia de Frederico Pernambucano de Mello;

7)    o esboço da presença do fator genético, assim como do social na gênese do cangaceirismo.

8)    o esboço histórico de casos de feminicídio.

O cangaço é um fato social relevante, sob qualquer aspecto: basta que o examinemos sob a ótica da nossa cultura popular nordestina sertaneja ou do banditismo rural, fenômeno internacional.

Os problemas para estuda-los são complexos, Cascudo percebeu isso quando escreveu acerca de Lampião, Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e outros cangaceiros.

Precisamos ir além da crença injustificadas de que o cangaço é produto mecânico do meio, ou um movimento de resistência popular, narrativas inócuas. Quem assim pensa conduz os verdadeiros resistentes, aqueles que não se entregaram ao crime, ao limbo da história.

Por que não há um estudo acerca desses homens comuns, os verdadeiros heróis, o caudaloso rio da vida?

Ressalte-se, por fim, que tudo isso é apenas o começo. O desafio, em estuda-lo, está lançado.

Uma vez dito isso, nós, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, saudamos todos os presentes e lhes damos as boas-vindas, colocando-nos à disposição.

Muito obrigado.



[1] Uso o termo “cangaceirismo”, mais preciso, no lugar de “cangaço”, para designar a conduta ou modo de viver do cangaceiro.

[2] CÂMARA CASCUDO, Luís da. Viajando o Sertão. São Paulo: Global Editora. 4 ed. 2009.

[3] PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa. 5 ed. 2011.

[4] CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário de Folclore. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura (MEC). 2 ed. 1962.

[5] O.a.c.

[6] SILVA, Raimundo Nonato da. O.a.c. Ver se houve prefácio de Cascudo.

[7] SILVA, Raimundo Nonato da. LAMPIÃO EM MOSSORÓ. Mossoró: Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005. 

domingo, 6 de agosto de 2023

ANDRÉ PIGNATARO: Comitiva do IHGRN - Nos Passos de Leão Veloso

 


Imagem: Bárbara Lima


DIÁRIO DE VIAGEM – NÚMERO 1


Macau, 27 de julho de 2023.

Após quase 3 horas de viagem, com uma rápida parada em João Câmara, a Comitiva do IHGRN chegou em Macau. Passava pouco das 11 horas da manhã, quando eu, Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e sua esposa Michaella Lima (nossa fotógrafa), subimos a escadaria da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição para encontrarmos nossos anfitriões, o poeta Horácio de Paiva Oliveira, presidente da Academia Macauense de Letras e Artes (AMLA) e sua esposa Rosália.

A calorosa recepção foi feita pela Orquestra Filarmônica Monsenhor Honório, formada por talentosos jovens macauenses. Também estavam presentes Sebastião Alves Maia, acadêmico da AMLA, e Max Kennedy, secretário adjunto da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Macau.

Conhecemos a aconchegante igreja e vimos a antiga cruz trazida da Ilha de Manoel Gonçalves, em 1825, antes que a ilha fosse engolida pela força da natureza.

Pausa para almoço no restaurante M Marias. Em seguida, visitamos o antigo porto de embarque e desembarque das barcaças que traziam passageiros e mercadorias dos navios maiores, como explicou Horácio, e fomos à belíssima e abandonada Ponta de Camapum.

Por volta das 15h, despedimo-nos de Horácio, dona Rosália e Tião. Cruzamos a estreita e mal-cuidada Macau, avistando a Praça da Conceição e seu obelisco. Antes de sairmos da histórica cidade, cruzamos a ponte que leva para a Ilha de Santana, apenas para contemplarmos o Rio Piranhas/Assu, já próximo de fazer barra com o mar.

Uma rápida parada no moinho de vento e despedimo-nos de Macau, para seguirmos no rumo do Assu.


DIÁRIO DE VIAGEM – NÚMERO 2


Vale do Assu, 27 de julho de 2023.

Saindo de Macau, seguimos para Pendências. O objetivo era alcançar o Distrito de Pedrinhas, local atual da Fazenda Morros, por onde a Comitiva de Leão Veloso fez pouso. No entanto, não achamos seguro seguir pela estrada de terra. Recuamos. Fomos, então, conhecer aquela modesta cidade. Era, aproximadamente, 15:30h, e poucas pessoas se aventuravam a andar pelas ruas.

Descemos na Praça Levani de Freitas e caminhamos no sentido da praça da igreja de São João Batista, onde quatro estátuas de cimento, muito bem feitas, repousavam sob o forte sol da tarde. Três delas, ficavam logo no início da praça: Jesus Cristo, ao centro, Pôncio Pilatos, à direita, e um soldado romano, à esquerda. Todas elas estavam sem as mãos, provavelmente por algum ato de vandalismo. Mais próximo da igreja, fica a estátua do padroeiro de Pendências. A igreja estava fechada. Abastecemos 
o carro e seguimos viagem.

Na entrada de Alto do Rodrigues, devido a um erro de navegação, deixamos de cruzar o Rio Assu e seguir pelas RN 404 e RN 016, que nos levaria a Assu, passando por Carnaubais e pela Fazenda Poço Verde. Desse modo, continuamos seguindo pela RN 118, passando por toda a extensão da próspera Alto do Rodrigues e por Ipanguaçu, até chegarmos na BR 304, para tomarmos o rumo do Assu.

Esse erro de navegação em Alto do Rodrigues terminou sendo providencial, pois o que seria uma rápida passagem por algum lugar aproximado da Fazenda Poço Verde, e com uma fotografia sem qualquer exatidão registrando nossa presença, deu lugar a uma visita, no dia seguinte, ao local específico da Fazenda Poço Verde, o que será tratado no próximo relato da viagem.

Chegamos ao Hotel União às 17h. Passava das 19:30h quando fomos ao restaurante Coité, nas cercanias do centro histórico de Assu, onde nos aguardava o nosso anfitrião Ivan Pinheiro, sócio da Academia Assuense de Letras (AAL), e sua esposa Ceiça, além de Francisco de Assis Medeiros e Fernanda da Sá Leitão, também integrantes da AAL.

Após o jantar, combinamos de nos encontrar às 08h, na igreja matriz, para darmos seguimento aos trabalhos da Comitiva do IHGRN.


André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes

GUSTAVO SOBRAL: Caderno de Viagem

 


Imagens: Gustavo Sobral

Caderno de Viagem

O escritor Gustavo Sobral embarcou numa aventura. Juntamente com Honório de Medeiros e André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes, acompanhados por Bárbara Michaela Ferreira Lima, seguiu numa comitiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte para refazer, em três etapas, o trajeto pelo sertão do Rio Grande do Norte que a comitiva do presidente da província Pedro Leão Veloso percorreu em 1861. Já foi à primeira das etapas, acabou de voltar e já publica, em primeira mão, este pequeno caderno preparado no calor da viagem, em versão digital, editado pelo Sertão, e disponível para download gratuito no site pessoal do autor gustavosobral.com.br

Caderno de Viagem. Sertão, 2023. 24p.

domingo, 23 de julho de 2023

LEÃO VELOSO

  


Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

 

Leão Veloso (Pedro Gomes Leão Veloso) nasceu em Itapicurú, Bahia, no dia 1º de janeiro de 1828. Formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. Filiou-se ao Partido Conservador e foi várias vezes Deputado Provincial pela Bahia. Presidiu a Província do Espírito Santo, Alagoas, Maranhão e, então, de 1861 a 1863, o Rio Grande do Norte.

Depois, ainda administrou o Piauí, o Pará e, por duas vezes, o Ceará. 

Em 1878, foi escolhido Senador do Império pela Bahia. Ministro do Império em 1882 chegou, finalmente, a Conselheiro de Estado em 1889.

O melhor relato acerca de Leão Veloso no Rio Grande do Norte é de Câmara Cascudo, em seu Governo do Rio Grande do Norte[1], no qual consta que ele visitou o interior da província, indo a Mossoró e, em julho de 1862, a Caicó.

É uma informação extremamente suscinta acerca da viagem que a Comitiva Governamental empreendeu ao interior do Rio Grande do Norte, chegando a entrar na Paraíba, visitando Macau, Açu, Acari, Jardim do Seridó, Caicó, Martins, Portalegre, Patu, Pau dos Ferros, e Mossoró.

Nessa viagem, que durou 44 dias, e que começou no dia 16 de julho de 1861, às 8 horas da manhã, no vapor Jaguaribe, fez-se acompanhar por João Carlos Wanderley, inspetor da tesouraria provincial; Ernesto Augusto Amorim do Vale, engenheiro; Manoel Ferreira Nobre, ajudante de Ordens; e Francisco Othilio Álvares da Silva, jornalista, que registrou tudo, em deliciosas crônicas, para o jornal O Recreio[2].

162 anos depois, neste ano da graça de 2023, Honório de Medeiros, André Felipe Pignataro e Gustavo Sobral, em uma comitiva do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), vão refazer o mesmo percurso e, ao final, da mesma forma que a viagem anterior de Leão Veloso originou um relatório governamental, desta vez um outro será apresentado formalmente, por eles, ao Instituto[3].

Cascudo lembra que durante a administração de Leão Veloso, a Província atravessava um período de grande depressão econômica e isso o levou a comprimir as despesas por todos os lados:

Diminuiu até a iluminação pública, cortou três cadeiras do Atheneu, demitiu dezenas de funcionários. Seu “Relatorio” (16-2-1862) é um dos documentos mais completos, elevados e nítidos que possuímos da administração Imperial. Nada conheço superior. A situação financeira era terrível. O funcionalismo estava morrendo de fome, (mas) Leão Veloso, energicamente, enfrentou o problema, atacando despesas inúteis e suprimindo tudo quanto lhe parecia adiável.

Por fim, arremata Cascudo: “Veloso tem (teve) ideias originais e justas”.

                 Difícil é tirar Leão Veloso do limbo da história. Entretanto, não é possível esquecermos a ousadia de sua viagem, a primeira do gênero no Rio Grande do Norte, que seria repetida no período de 16 a 29 de maio de 1934, pelo Interventor Federal Mário Câmara, em cuja comitiva oficial constavam Anfilóquio Câmara (Diretor geral do departamento de Educação); Antônio Soares Júnior (Prefeito de Mossoró); Alcides Franco (Chefe da segunda seção técnica do Serviço de Plantas Têxteis); e Oscar Guedes (inspetor do mesmo Serviço), e Luís da Câmara Cascudo.

                  Dessa viagem, surgiu Viajando o Sertão, publicado em 1934 no formato de livro e também como uma série de crônicas no jornal "A República" de 31/05 a 22/07 de 1934.

Pedro Gomes Leão Veloso faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de março de 1902.


[1] CASCUDO, Luís da Câmara. Governo do Rio Grande do Norte. Mossoró, Coleção Mossoroense, série “C”, volume DXXXI: 1989. 

[2] Com informações do jornalista e escritor Gustavo Sobral (gustavosobral.com.br).

[3] As peripécias da viagem estão em @comitiva1861


domingo, 16 de julho de 2023

SÉRGIO DANTAS

 


Imagem: lampiaoaceso.blogspot.com


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros.blogspot.com) 

 

Sérgio Dantas é, desde algum tempo, o principal pesquisador e escritor acerca do cangaceirismo no Rio Grande do Norte, graças à seriedade e talento com o qual trata do assunto.

                   Autor cuidadoso, seus livros se tornaram referências em razão do zelo que é sua marca registrada, e, aos poucos, sua obra, ou seja, o conjunto dos seus estudos publicados ao longo do tempo, o creditam, pela relevância, como um nome de expressão nacional.

                   Não há um livro “menor” dentre os que escreveu, seja Lampião no Rio Grande do Norte; ou Lampião na Paraíba – Notas para a História; passando por Lampião, o Processo de Martins; Antônio Silvino, o Cangaceiro, o Homem, o Mito; Lampião entre a Espada e a Lei; até Corisco, A Sombra de Lampião. Todos merecem ser presença certa na biblioteca de qualquer estudioso do cangaceirismo.

Lampião no Rio Grande do Norte, cujo subtítulo é “A história da grande jornada”, livro de estreia de Sérgio Augusto de Souza Dantas, é uma obra seminal, cujo tema central, o ataque a Mossoró em junho de 1927 liderado por Lampião, é analisado minuciosamente a partir de informações colhidas durante quatro anos de pesquisa, perambulações, visitas, entrevistas, cruzamento de informações, consulta à literatura hoje vastíssima acerca do cangaceirismo. Para coroar, um valioso acervo fotográfico é colocado à disposição do leitor.

Em relação a Massilon, cangaceiro cuja importância no ataque é muito relevante, Sérgio Dantas agregou informações valiosíssimas, dentre elas o “raid” que esse personagem singular empreendeu nos costados do Jaguaribe e Cariri logo após o episódio de Mossoró.

Isso significa dizer que a lenda segundo a qual Massilon, antes da célebre foto de Limoeiro, Ceará, já se separara de Lampião e teria ido embora para o Norte, não é verdadeira.

Detalhada, a história da “jornada” espanta pela riqueza de detalhes. Não por outra razão ficamos sabendo de cada passo do grupo cangaceiro por todo o território do Rio Grande do Norte, cidade por cidade, povoado por povoado, sítio por sítio, fazenda por fazenda.

Os acontecimentos nas cercanias de Martins e Umarizal, antiga “Gavião”, são relatados com precisão. E tudo quanto aconteceu em Apodi, antes da chegada de Lampião, protagonizado por Massilon, recebe tratamento de pesquisador sério e interessado.

A descrição geográfica e sociológica dos lugares pelos quais passou o bando de cangaceiros merece respeito. Através dela é possível perceber o dia-a-dia daquelas comunidades existentes no início do século XX. Os relatos dos mal tratos, arruaças, bebedeiras, torturas físicas e psicológicas nos comove e revela a sensibilidade do Autor.

                   Quanto a Antônio Silvino, o Cangaceiro, o Homem, o Mito, somos apresentados a um cangaceiro cru, recortado do contexto mítico inserido em sua dimensão humana, sem que restasse perdido tudo quanto o tornou um dos mais interessantes personagens da trindade básica que forjou a alma sertaneja – o cangaço, o misticismo, o coronelismo.

Louve-se a felicidade na escolha do “nome” de cada capítulo bem como o excerto que o acompanha, próprio para chamar a atenção do comprador desatento, em uma homenagem ao estilo jornalístico de outrora, e a indicar um texto enxuto, leve, de parágrafos curtos e bem encadeados.

Chamam a atenção episódios, trazidos a lume, que por si somente têm dimensão histórica, como a convivência entre Antônio Silvino e Gregório Bezerra, lendário líder comunista pernambucano, sua entrevista com Graciliano Ramos, e o assalto à Usina Santa Filonila na qual morreu Feliciana na flor da idade – crime do qual o cangaceiro jamais deixou de se arrepender.

O Antônio Silvino que emerge do ótimo texto de Sérgio Dantas é um personagem emblemático: é o retrato nítido de uma saga que nos permite identificar e compreender os nexos causais que originam certa circunstância histórica – o período do cangaceirismo – e até mesmo ir além, na medida em que também permite identificar o viés comum a entrelaçá-los, ou seja, a questão do Poder Político.

Basta colocar esses retratos sobre a mesa e examiná-los com olhar crítico: Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião; Coronel Zé Pereira, Coronel Isaías Arruda, Coronel Floro Bartolomeu; Pe. Cícero, Beato Zé Lourenço, Antônio Conselheiro, tomando distância de qualquer tentativa de tentar a lógica do fenômeno a partir de uma explicação oriunda exclusivamente a fatos alusivos à posse da terra ou luta de classe.

                   Afinal, a ideia antecede a ação. E a ação, antes de tudo, é sempre algo individual.

É difícil conjecturar se Sérgio Dantas vai se aventurar em novos resgates históricos ou cuidará de desbravar outras fronteiras. Sua obra tem estado, até agora, entre um ciclo e outro: a mera narrativa e a pura interpretação, no que diz respeito à literatura acerca do cangaceirismo.

Talento, não lhe falta.

A mera narrativa provavelmente está perto do fim: já não é mais possível, até onde sabemos, ressalvada a possibilidade de documentos desconhecidos surgirem inesperadamente, prosseguir com a literatura elaborada a partir de relatos, fotos, testemunhos ou escritos, ou seja, fontes primárias.

Dos sobreviventes daquelas “eras” já se extraiu mais do que tudo. Os papéis estão virando pó, vítimas da ação inclemente do tempo e da incúria das nossas elites.

Um outro ciclo está surgindo: a interpretação de todos esses dados, ou seja, uma literatura de tese, iniciado por Frederico Pernambucano de Mello com Guerreiros do Sol, onde se aliou pesquisa de ponta e interpretação dos fatos.

Esperemos, então. E que sua obra, importante como é, além dos merecidos elogios semeie críticas e informações outras, alguma correção de rumo – se for o caso – retornando ainda mais rica para o acervo dos historiadores e sociólogos do Brasil.

É assim que ocorre quando uma obra deixa de pertencer ao Autor, por sua importância, e passa a fazer parte do referencial bibliográfico ao qual pertence.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

NÉVOA DE NADAS

 


Imagem: Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Quanto menos novo fico, quanto mais o tempo passa, aumenta o meu fascínio pelo Eclesiastes. Texto poético belíssimo, sapiencial, denso, condena muitos livros a sua real e diminuta dimensão. Incita-nos a questionarmos nossa vaidade tola em um mundo cujos alicerces estão firmados de tal forma, que parecem inexoráveis e eternamente incompreensíveis, alheios à nossa vontade e capacidade de entende-los.

 

1. Palavras § de Qohélet filho de Davi rei § em Jerusalém

2. Névoas de nadas § disse O-que-Sabe

névoa de nadas § tudo névoa-nada

3. Que proveito § para o homem

De todo o seu afã §§

fadiga de afazeres § sob o sol

(...)

7. Todos os rios § correm para o mar §§

e o mar § não replena §§§

Ao lugar § onde os rios § acorrem §§

para lá § de novo § correm

(...)

9. Aquilo que já foi § é aquilo que será §§

e aquilo que foi feito §§ aquilo § se fará

E não há nada de novo § sob o sol

10. Vê-se algo § se diz eis § o novo §§§

Já foi § era outrora §§

fora antes de nós § noutras eras

(...)

QOHÉLET/O QUE SABE

ECLESIASTES

Transcriado por Haroldo de Campos

 


segunda-feira, 10 de julho de 2023

DE "LIVES"

 


Imagem: Honório de Medeiros. Paris: Boulevard Saint Michel, abril de 2018

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

A pandemia impulsionou as "lives". São de todo o tipo e modelo. Abordam desde culinária a física quântica. Acrescentou a possibilidade de visualizar os participantes, e isso é significativo. Tornou o debate mais fragmentado, curto (tempo), democrático e raso. Bastante raso. Golpeou fundo esse velho companheiro, o livro, principalmente aquele que expressa o pensamento vertical, difícil de ser horizontalizado, próprio dos livros canônicos.

C'est la vie, c'est la belle vie, c'est la vraie vie, c'est ça la vie...


domingo, 9 de julho de 2023

FRANKLIN JORGE

 




* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


A obra literária de Franklin Jorge não permite uma leitura rápida.

No sentido absolutamente estético, convida a uma reflexão, suscitada pelo rigor da forma e profundidade de conteúdo que revela, ao leitor, o paradoxo do máximo, no mínimo.                               

                   Como um jogo de sombras e luz, metáfora da estratégia que o autor usa para nos apresentar uma realidade constituída de delicados, embora marcantes textos, através de uma escrita contida, elegante, ele proporciona, ao crítico literário, um ambiente de análise acerca do artista envolto no ato de criar.

                   A análise será refém dos conceitos de exclusão, contenção, reserva. Algo minimalista. Permite supor que Franklin Jorge constrói, deliberadamente ou não, uma misteriosa fronteira entre o trivial e o necessário, na qual se exclui o óbvio e se expõe uma espécie de ascese intelectual.

                   Assim, e por esse intermédio, através da leitura de seus textos, é possível resgatar-se o “modus operandi” da criação estética literária que parece perdido nos dias de hoje: teremos não mais a trama banal que consiste na utilização de ícones simplórios, mas, sim, um projeto de arte construído a partir da negação do superficial, para atingir a essência das coisas.

                   O texto de Franklin – seja Ficções, Fricções, Africções – ou qualquer outro, tem essa alquimia, revela um pouco daquilo que, na arte, é o belo, o simples, o harmonioso. Nada além, nada aquém. Nem a exuberância da sofisticação, tampouco o irracionalismo da ausência. Apenas um verdadeiro impulso de criação.

                   Mencionei Ficções, Fricções, Africções, a quem Ascendino Leite designou como inteligente e personalíssimo, e o comparou aos textos de Camilo José Cela, mas poderia ser o belo O Spleen de Natal (Romance de uma Cidade), onde Carlos Peixoto percebeu a cidade invisível da qual nos falou Ítalo Calvino em sua obra.

                   Ou, quem sabe, possa ser O Ouro de Goiás, onde Ubirajara Galli, entusiasmado com sua leitura, cognominou Franklin Jorge de “O Anhanguera Cultural”, lembrando, no dizer típico de um goiano, que “da sua colheita, nada se perdeu”. Bem como o Jornal de Bolso, apresentado por Jaime Hipólito Dantas:

                   Depois comecei a ler Franklin Jorge em livros, que ele passou a publicar, aqui e lá fora. Surgiu-me o poeta e surgiu igualmente o crítico exigentíssimo de artes plásticas. Enfim, o escritor Franklin Jorge. Com um detalhe, um escritor que principalmente sabe praticar a arte da boa escrita. Um artesão da prosa, como pouquíssimos, por cá. Um artista da palavra, sério, sem desleixos visíveis.

                   Há outros, tal qual O |Livro dos Afiguraves; Isso é Que é; Fantasmas Cotidianos, com prefácio do magnífico Antônio Carlos Villaça, o estilista:

                   Franklin escritor, Franklin poeta, Franklin puro artista transcende a circunstância e vê o abismo, convive com o abismo. Vai ao fundo e enxerga longe. Argúcia muita. Um senhor analista, um mestre da instrospecção. Um ser proustiano.

Todos eles, assim como outras mais, formando uma unidade formal estilística, muito embora com conteúdo diverso, posto que constituído por ensaios, poemas, crítica literária, e assim por diante. 

E há, não poderia ser diferente, o meu predileto: O Verniz dos Mestres (Anotações e pastiches de um leitor de Marcel Proust) onde, em sua orelha, Franklin logo revela que suas páginas são egressas de O Escrivão de Chatam, seleção de ensaios curtos produzidos em mais de cinquenta anos de leitura, que infelizmente ainda não foi publicado.

Nesse pequeno e denso livro, contendo dez primorosos capítulos, Franklin Jorge aborda a música, arte e memória, crítica, imortalidade, comédia humana e escritura em Marcel Proust. Também escreve acerca do verniz dos mestres, título do livro, ao perscrutar o estilo do grande escritor francês, comparando-o a John Ruskin, o crítico de arte, ensaísta, desenhista e aquarelista britânico.

Saliente-se que os ensaios de Ruskin sobre arte e arquitetura foram extremamente influentes na era Vitoriana.

Lá para as tantas, Franklin observa, em O Verniz dos Mestres:

Em seus últimos sete anos, tentando amortecer os ruídos, Proust viveu enfurnado num quarto forrado de cortiça. Resignado à solidão, queria viver tão somente para ter valor e mérito. Acreditava que a imortalidade era possível, sim, mas somente através da criação de uma obra. Concordava com a ideia de Boudelaire de que a vida verdadeira está alhures, não dentro da vida, nem após, mas fora dela. Nos domínios da arte.

Sua obra, laboriosamente fictícia, transcria a realidade que seria pobre sem o recurso da imaginação. Suas notas lançadas sobre o papel, no curso de sua vida, dão suporte e carnação ao que escreve; compõe-se de brevíssimos insights; a princípio lançado sobre a página em branco, e, depois, obstinadamente em períodos mais longos, agoniantes em seu fluxo, até soar a hora final; em busca da vida verdadeira que só pode ser resgatada e interpretada pela arte. Proust cria um novo realismo, polifônico e impressionista.

                   Como descrever melhor a saga proustiana?

                   Mais além:

                   Olhando a sua volta, Proust viu o que ninguém antes vira. E o viu de maneira crítica, aprofundando-se e “indo mais além”, numa superação das “coisas usuais” que desmerecem o temperamento individualizador do artista de talento capaz de criar um mundo a partir da observação de um grão de areia.

Em outro momento, Franklin amplia sua reflexão e introduz o que seria uma observação plenamente filosófica, de caráter gnosiológico, acerca do alcance da obra de Marcel Proust:

Proust nos ensina que um livro nunca pode nos contar aquilo que desejamos saber, mas tão somente despertar em nós o desejo de saber, pois não é possível a nenhum indivíduo receber a sabedoria de outrem. É preciso cria-la por nós mesmos. E foi o que ele fez, escrevendo os sete volumes do seu “roman-fleuve” “Em Busca do Tempo Perdido”.

                   Perfeito. Conhecer é criar; o apreender é uma criação. Cada objeto apreendido é único e é tudo em sua singularidade.

                   Não se poderia esperar menos de Franklin Jorge do Nascimento Roque, um escritor para escritores: nada além, nada aquém da justa medida.

Natal, 5 de julho de 2023, no outono, quase inverno, da esperança.