Mercado Público de Mossoró, poucos anos após o ataque de Lampião
Em
1926, com mandato previsto até 1928, era Presidente da Intendência[1]
de Mossoró, Rodolpho Fernandes de Oliveira Martins, tendo como Vice seu parente
próximo Hemetério Fernandes de Queiroz. Os outros intendentes eram Luís Colombo
Ferreira Pinto, Francisco Clemente Freire, Antonio Teodoro Soares Frota, Manuel
Amâncio Leite e Francisco Borges de Andrade.
Mossoró,
segundo Raul Fernandes[2],
em 1927 competia com Natal, a capital do Estado. Enquanto esta tinha 30.600
habitantes, aquela possuía 20.300.
A
denominada “Capital do Oeste” era ligada ao litoral por uma estrada de ferro
que se estendia até o povoado de São Sebastião, atual Dix-Sept Rosado, na
direção Oeste, percorrendo quarenta e dois quilômetros, enquanto, por ela, estradas
de rodagem convergiam de vários recantos, percorridas por caminhões que, aos
poucos, substituíam o transporte animal.
Possuía
a cidade o maior parque salineiro do país. Três empresas descaroçavam e
prensavam algodão, produto denominado, na época, e por muito tempo ainda, de
“ouro branco[3]”.
Centro comercial importante,
em Mossoró se comprava peles, algodão e cera de carnaúba. Exportava-se, pelo
porto de Areia Branca, tudo quanto era trazido pelos longos comboios de
mercadorias chegados do interior da Paraíba e do Ceará, que voltavam levando
sal e produtos oriundos de centros mais avançados.
Havia
energia elétrica, que alimentava várias indústrias nascentes, assim como repartições
públicas federais e estaduais, além da agência do Banco do Brasil, que era o
único estabelecimento de crédito da região.
Na
cidade circulavam três jornais: ‘O Correio do Povo’, o ‘Nordeste’, e ‘O
Mossoroense’, este o mais antigo do Município, e um dos mais antigos do Brasil,
fundado em 1872. O ensino era ministrado por intermédio de estabelecimentos
para ensino secundário – a Escola Normal e a de Comércio, e em dois colégios
com internato – o Diocesano Santa Luzia para rapazes, e o Sagrado Coração de
Maria, dirigido por religiosas franciscanas, portuguesas, para moças.
PERFIS
Dona
Bernadete – Maria Bernadete Leite Duarte – guardava, aos oitenta e cinco anos,
a beleza dos traços que a fotografia – tirada no verdor de sua mocidade –
pousada em cima da cristaleira antiga, muito bem conservada, revelava.
Ela
nos recebeu a mim, Carlos Duarte e Cleilma Fernandes, estes do jornal
mossoroense “Página Certa”, e Paulo Gastão, fundador da Sociedade Brasileira de
Estudo do Cangaço – SBEC, em sua residência, no dia 18 de dezembro de 2006, em
um final de tarde tipicamente sertanejo, tornado mais fresco pela presença do
vento Nordeste e mais agradável pelo lanche com o qual nos brindou após a entrevista.
Dona
Bernadete é filha de Manoel Duarte, um dos heróis da resistência a Lampião em
Mossoró.
“Nasci em Mossoró”,
diz-nos ela, “em 1921, e aqui morei até
1950.
Quando completei quinze anos fui
estudar na Escola Doméstica em Natal. Minha mais antiga lembrança de Mossoró é
dos meus pais. Minha infância foi igual à de todas as crianças daquela época:
pulei corda, brinquei de roda, de boneca, gostava de bonecas de pano, fazia
teatrinhos, aperreava o pavão de Dona Filomena de Seu João Carrilho...
Dormíamos cedo, às 19h00min.
Tomávamos café da manhã às 07h00min, almoçávamos às 11h00min e jantávamos às
17h00min. Comíamos pão, biscoito, leite de vaca, ovos, cuscuz, coalhada no café
da manhã; feijão de arranque temperado com carne, cebola, alho, coentro,
cominho, arroz, farofa no almoço; mugunzá, cuscuz, coalhada no jantar. Comíamos
frutas e bolachas pretas.
Já mocinha, escutávamos, enquanto
arrodeávamos a Praça do Pax, a banda no coreto. Os rapazes ficavam em pé, de
frente para a parte interior da praça. Às 21h00min todo mundo ia embora.
Freqüentávamos o Clube Ipiranga e
íamos ao cinema diariamente com meu pai, Manoel Duarte. Eu adorava os musicais.
Gostava também muito de ler historinhas, o "Tesouro da Juventude".
Quando eu estudei em Natal, na
Escola Doméstica, saia nos finais-de-semana para a casa da esposa de Rodolpho
Fernandes. Lembro-me da passagem do Zeppelin e do Hindenburgo por Natal. O
Hindenburgo, que era mais grosso, ficava parado, suspenso no ar e soltava malas
para o pessoal da terra.
Quando da invasão de Mossoró
papai levou a família para Tibau e voltou para participar da resistência.
Rodolpho Fernandes era compadre de papai, padrinho de meu irmão Antônio Leite
Duarte.
Nunca ouvi falar na história de
Massilon ser apaixonado por Julieta, filha de Rodolpho.
Papai ficou na casa de Rodolpho, na parte de
cá (que dava para a Igreja de São Vicente) e havia outros na Igreja. Estes não
alcançavam os cangaceiros postados na parede lateral da casa de Alfredo
Fernandes, esquina com a Avenida Alberto Maranhão, mas apontaram Colchete que
já estava com uma garrafa de querosene na mão para jogar nos fardos de algodão.
Papai atirou em Colchete e Jararaca. Muita gente correu da luta.”
Dona
Iracema – Iracema de Assis Duarte – com seus oitenta e poucos anos, magra,
espigada, alerta, faz coro ao depoimento de Dona Bernadete.
Estamos
na calçada em frente à casa na qual ela mora sozinha. Não quer sair de lá, em
hipótese alguma, e se render ao chamado dos filhos.
É
o dia 19 de dezembro de 2006 e estamos quase ao lado da histórica sede da
Prefeitura Municipal de Mossoró, antiga residência de Rodolpho Fernandes, na
Avenida Alberto Maranhão, cujo tráfego, mesmo àquela hora crepuscular, não
esmorece. Passantes vão e vêm. Não se dão conta de que há setenta e nove anos
atrás o movimento, naquela avenida, se deu por motivos bem diferentes dos
habituais.
“A casa em frente à de Alfredo
Fernandes era de João Hollanda”, lembra Dona Iracema. “Os fundos davam para a casa de João
Marcelino – o médico que cuidou de Jararaca.
Naquele tempo, no entorno
da Igreja de São Vicente havia a casa da esquina da Rua Francisco Ramalho com a
Alberto Maranhão do lado de cá (no alinhamento da Igreja); havia a minha casa
(várias geminadas vizinhas ao palacete de Rodolpho), a de seu Artur Paula
(palacete cuja frente dava para a lateral da casa em frente aos fundos da
Igreja)[1], a casa onde hoje funciona a
Escola 13 de Junho, outra de umas catequistas...
Não havia pudim, bolo, doces na
minha infância. Era rapadura, cocada, pão doce, bolacha preta. Galinha aos
domingos. Coalhada de manhã para o pai. Não havia o hábito da verdura. A hora
das refeições era essa mesma que Bernadete falou. E as brincadeiras também.
Meninos não participavam. As brincadeiras: escravos de Jó, tique, esconde-esconde,
teatro infantil (representavam contos de fadas).
O cinema era o Almeida Castro, no
Grande Hotel. Esse Grande Hotel concentrava a nata da sociedade nos grandes
eventos. Os filmes eram mudos.
Manoel Duarte, um homem muito
sério, achava graça com os retratos dos heróis nas trincheiras. Dizia que a
máquina fotográfica era muito boa, pegava fulano e sicrano em Areia Branca...
Zé Otávio – o que fotografou as trincheiras – era o fotógrafo da época. Os
Fernandes[2] eram os ricos de Mossoró.
Dizia-se que Tertuliano era o mais rico.”
É
dezembro de 2006. Irmã Aparecida nos recebe, a mim e a Carlos Duarte, em seu
gabinete no Colégio Sagrado Coração de Maria – o Colégio das Freiras, onde estudaram
e estudam as filhas das elites de Mossoró, geração após geração.
Irmã
Aparecida tem o mesmo tipo físico de Dona Bernadete e Dona Iracema. Nela,
entretanto, o hábito de comandar se deixa perceber através das frases pontuadas
de forma mais incisiva, como a evitar contestações. Irmã Aparecida, apesar da
idade, ainda comanda o Colégio. Nada leva a crer, observando-se sua agilidade
física e mental, que a aposentadoria esteja próxima.
“Merendávamos às 09h00min:
coalhada, copo de leite, ovos batidos, fubá de milho com mel, ou gema de ovo
com mel de abelha. Almoçávamos às 11h00min. Não se conhecia feijão preto e não
se comia bode porque fedia. Comia-se melhor no campo que na cidade. Nas
refeições, silêncio: era preciso manter-se o respeito.
À mãe competia a educação. O pai
quase nunca se metia. Os castigos: ficar atrás do guarda-roupa e a palmatória.
A educação era feita através da tradição oral: não mentir, por exemplo.
Rezava-se o ofício, particularmente, todos os sábados. Mas não se misturava
moral com religião.
A diversão dos homens era jogar
sueca. A dos meninos irem para o terreiro. Líamos, quando muito, os livros
didáticos. Assistíamos filmes mudos pelo menos duas vezes por semana.
As grandes famílias de Mossoró
eram os Fernandes, os Leite, os Duarte. Ainda não havia Rosado. Não se sabia
quem eles eram. Os ricos eram Costinha Fernandes, João Marcelino, Miguel
Faustino, Tertuliano Fernandes...
Entretanto
tão instigante quanto essas entrevistas a respeito da Mossoró da década de
20 do século passado é a leitura das “Memórias” de Sebastião Gurgel[3].
Em
seu diário, no qual começa, no ano da invasão de Mossoró, portanto escrevendo
em março de 1927, alude, desde logo, à inauguração, em 1º de novembro de 1926,
do serviço da estrada de ferro Mossoró/São Sebastião (atual Governador Dix-Sept
Rosado).
Informa
que o inverno está sendo bom e que a estrada de ferro progride até Caraúbas.
Em
julho noticia a invasão de Apodi por Massilon, a 10 de maio, e a de Mossoró, a
13 de junho, por Lampião e seu bando.
É
avaro nas informações e mais ainda na análise do fato.
“Convém”,
escreve ele em seu diário, “consignar um
voto de louvor aos Srs. Cel. Rodolfo
Fernandes, prefeito da cidade, Julio Maia, que melhor que outro qualquer
dirigiu a defesa, Mirabeau Melo[4] que como encarregado do
telégrafo, prestou enormíssimo serviço, Dr. Gilberto Studard Gurgel, tenente
Abdon Nunes, Cornélio Mendes, João Fernandes, etc.”
E
acrescenta, irônico: “Eu, já se sabe,
nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada”.
Ainda
em julho relata um acontecimento “sensacional
– o casamento de Monsenhor Almeida Barreto com a senhorita Maria Nazareth de
Oliveira.”
Imaginemos o impacto que tal acontecimento
deve ter suscitado na provinciana Mossoró do início do século XX!
Somente
em outubro de 1927 Tião Fernandes volta a escrever em seu diário. Critica o
governo do Ceará por não tomar providências contra o cangaço. Registra ter
deixado suas duas filhas em Natal, para estudarem na Escola Doméstica. Em
dezembro, no dia 4, lembra que
“Em virtude de uma lei séria que
garante o voto à mulher, nesta semana (passada) requereu o título de eleitora
do município, a professora dona Celina Viana, sendo ela a primeira eleitora do
Brasil.”
E, também, que
“Em substituição do presidente da intendência Rodolfo Fernandes que
morreu no dia 10 de setembro, foi eleito para o mesmo lugar Luiz Colombo
Ferreira Pinto.”
[1] A casa onde residia Joaquim Perdigão, casado com
Julieta Fernandes, filha de Rodolpho Fernandes.
[2] Em curiosa crônica escrita para “O Mossoroense”, em
12 de março de 1950, assim se refere aos Fernandes, ao aludir a Mossoró e seus
capitalistas, Djalma Maranhão: “Fortunas imensas cimentadas no comércio do
algodão e na indústria do sal. Vicente
Fernandes e Alfredo Fernandes,
capitães de indústria, legando aos seus descendentes Paulo, Pedro, Ezequiel,
Xavier, Ademir e mais uma dúzia de jovens milionários, uma organização que é um
verdadeiro estado dentro do Estado do Rio Grande do Norte;” (“NOVAS IMAGENS DE MOSSORÓ”; MAIA, Jerônimo
Vingt-um Rosado; Coleção Mossoroense; Volume CVIII;
1980; Mossoró, Rn).
[3] “MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO (DIÁRIO)”; GURGEL, Sebastião; Coleção Mossoroense; Série “C”; volume 1293; novembro de 2002; livro III; Mossoró, Rn.
[4] A quem se refere Paulo Fernandes, filho de Rodolpho
Fernandes e ex-Prefeito de Mossoró, de forma acrimoniosa, em carta transcrita
neste livro endereçada a Nertan Macedo.
[1] Prefeito, à época.
[3] “No Rio Grande do Norte, a produção algodoeira do
século XX refletiu todos os momentos de favorabilidade ou não das conjunturas.
Confiantes na
crescente demanda do produto e na consequente elevação dos preços, os grandes e
pequenos proprietários do Seridó, Oeste e Trairi encheram suas terras com a
lucrativa malvácea. Por causa dos seu alto valor, o algodão passou a ser
chamado de ‘ouro branco’. Um município seridoense recebeu essa denominação, em
1918, para homenagear a planta tão valorosa (SOUZA, Itamar de; “A REPÚBLICA VELHA NO RIO GRANDE DO NORTE”; EDUFURN – Editora da UFRN; 1ª edição; Natal;
2008).
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