terça-feira, 13 de setembro de 2022

O HOMEM E A REDE SOCIAL

 * Honório de Medeiros

* honoriodemedeiros@gmail.com


Assim é a rede social: uma praça virtual semelhante a aquelas das cidades do interior de antigamente, onde a vida de cada um era passada a limpo todos os dias. Continuo crendo que o homem não mudou nada com o tempo, apenas antes andávamos a pé ou em cima de animais, hoje viajamos de avião. O homem continua o mesmo, talvez pior: está mais fragmentado, mais cheio de rancor e ressentimento.

domingo, 7 de agosto de 2022

GOVERNO DO RIO GRANDE DO NORTE (1935-2018)

 

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018)


Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018)

Em 1939, o historiador Luís da Câmara Cascudo apareceu com “Governo do Rio Grande do Norte”, reunindo a história e a trajetória dos governantes que andaram por aqui de 1597 até 1935. O tempo foi passando e ficou uma lacuna a ser preenchida com os que vieram depois.

Foi esta a deixa que levou André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros, em 2018, a reunir uma plêiade de pesquisadores e escritores, dentre eles, historiadores, juristas, jornalistas, professores e continuar até os dias de hoje.

O resultado vem a público em e-book (Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p), apresentando a trajetória dos governantes do Rio Grande do Norte de 1935 a 2018. O livro traz, a princípio, uma listagem organizada por ordem cronológica, contemplando cada um dos governos, a que se segue os perfis dos 25 governos que administraram o Estado neste período.

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018), Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p.

Organizadores: André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros.
Autores: Adilson Gurgel de Castro; André Felipe Pignataro; Carlos Roberto de Miranda Gomes; David de Medeiros Leite; François Silvestre; Honório de Medeiros; Gustavo Sobral; Isaura Rosado; José Antônio Spinelli; Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira; Maria do Nascimento Bezerra; Ramon Ribeiro; Ricardo Sobral; Roberto Homem de Siqueira; Saul Estevam Fernandes; Sérgio Trindade; Tarcísio Gurgel; Thiago Freire Costa de Melo; Vicente Serejo; Walclei de Araújo Azevedo.

Para adquirir o livro, acesse:
https://revistagalo.com.br/selo-bo/

domingo, 24 de julho de 2022

IRRESIGNAÇÃO PERDOADA: O JÚRI DE JARARACA

 * Pinçado do www.navegos.com.br

* honorio de medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



IRRESIGNAÇÃO PERDOADA


Honório de Medeiros



No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, no Fórum Municipal de Mossoró, atuei como advogado de defesa no júri simulado sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria José Leite Santana (1901-1927), o notório cangaceiro Jararaca. Era a comemoração do aniversário da resistência de Mossoró ante o ataque do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima. Terminados os trabalhos, o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um. Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”, disse-nos Tolstoi, citando Spinoza. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e aos senhores para mergulhar nas águas do meu próprio passado, pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente. Ali ficava a casa de Rodolpho Fernandes, depois a de Alfredo Fernandes e, em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana.

Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? Porque atacaram Mossoró? Compilei quatro teorias. José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.

Mas como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época na qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?

Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver sem lei e sem rei, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em “O Leviatã”. O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.

José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.

José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos.

Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada.

Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. Herói porque ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. Santo porque intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento. Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo?

Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo, padre Cícero, Santo Agostinho, Maria Madalena, São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança? Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como padre Cícero, para o povo, ele já o é. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão.

Reconstituamos os últimos dias de José Leite de Santana: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia para o jornal “O Mossoroense”; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; e pelo motorista Homero Couto.

Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros. Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente…”.

Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.

LIVROS: A GAROTA ITALIANA, Lucinda Riley

* Pinçado do Instagram

* honoriodemedeiros@gmail.com

Recomendo:




segunda-feira, 11 de julho de 2022

VILLAÇA, O ESTILISTA

 

Antônio Carlos Villaça (1928-2005)

* Honório de Medeiros 

(honoriodemedeiros@gmail.com)



No cinza das horas, releio O Livro dos Fragmentos, de Antônio Carlos Villaça, soberbo estilista. Quem não lembraria de Novalis e Nietzche, ao lê-lo?

Foi muito amigo de Franklin Jorge, outro estilista, autor de O Spleen de Natal, um livro requintado, prêmio Câmara Cascudo por unanimidade, e de Gerardo Dantas Barreto, o filósofo, dono de uma “passionalidade desgrenhada”, ambos norte-rio-grandenses, e de Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Lacerda, não o político, o homem, e tantos outros, naqueles anos que começaram com Getúlio Vargas e se encerraram com a agonia do Movimento de 64.

Villaça ficou famoso com O Nariz do Morto, de 1970, obra de um niilismo trágico, tão elogiado. Lembra, lá para as tantas, que Gilberto Amado caracterizava Vargas muito bem: “Getúlio ou a arte de enganar. Enganava não apenas os bobos, o que é fácil e todos fazem. Enganava os sabidos.”

E também lembra, nesse livro, Raul Fernandes, não o potiguar, mas, sim, o político e diplomata carioca, que lhe dizia sempre: “ a ênfase é uma improbidade intelectual”.

Em O Livro dos Fragmentos aponta o estranho fenômeno da desaparição de alguns escritores. Cita Osvaldo Alves, Carlos David, Lia Corrêa Dutra, a quem Drummond e Gilberto Amado admiravam e que sumiu da literatura.

Villaça especula: “Era uma forma de ceticismo ou de cansaço”. Recorda Maria Teresa Abreu Coutinho, “brilhantíssima. Casou-se com um operário italiano e foi morar no subúrbio. Nunca a reencontrei.”

Nada mais Enrique Vila-Matas e seu Bartleby e Companhia, no qual rastreia "a pulsão negativa ou a pulsão pelo nada que faz com que certos criadores, mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca cheguem a escrever, ou então escrevem um ou dois livros, e depois renunciam à escrita".

As obras desses escritores que ele cita ocupam, penso eu, algum escaninho empoeirado do Cemitério dos Livros Esquecidos que Carlos Ruiz Zafón localiza na misteriosa Barcelona, em um beco ao qual me conduziu uma bela guia mineira que, ante o meu espanto com o que me deparei, pôs-se a rir, divertida.

O Cemitério não se deixava perceber assim tão fácil...

Antônio Carlos Villaça, bem como Gerardo Mello Mourão, reconheceu que o Brasil é barroco, uma eterna tensão entre o corpo e a alma.

Vivesse hoje, que diria ele?

Termina O livro dos Fragmentos citando Machado, Iaiá Garcia: “Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”.

Estaria se referindo ao que escrevera?

Tomara.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

FLANAR

 

Imagem por http://lounge.obviousmag.org/pathos/2012/02/cronica-de-um-flaneur-tropical.html

* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)

Sair por aí, qual um flâneur, em busca de arrebatar uma flor para colocar na lapela ou na casa do botão, de beber uma xícara de café ou taça de vinho, quem sabe de arrancar um sorriso de alguém que passa com um certo ar melancólico, tudo isso sem lembrar o passado e o que ele evoca e provoca, tampouco se preocupar com o futuro, embriagado de liberdade, apenas vivendo o momento presente, ou seja, uma doce mistura de esperança e ilusão, até que os dias se transformem em neblina, depois em chuva, e venha o adeus, quando não há mais o agora.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

A SEMENTE DO MAL, UMA ALEGORIA

 


* Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com) 

3,3 Mas do fruto da aárvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.

3,5 Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos aolhos, e sereis como Deus, bconhecendo o bem e o mal.



No preciso momento no qual o Homem mordeu o fruto da proibido, a semente do mal tombou na terra fértil, e começou a germinar.

A semente cresceu vertiginosamente. Hoje, é uma floresta.

Houve um momento, há muito tempo, no qual Alguém veio e alertou o Homem.

O Homem não lhe deu ouvidos, assim como, no início de Tudo, também não o fizera quando fora alertado acerca do perigo de morder o fruto proibido.

Duas vezes o Homem desprezou o que lhe disseram. Haverá uma terceira oportunidade?

As folhas, os ramos, os galhos, as árvores, ou seja, os filhos da semente do mal estão em toda parte: no coração do Homem, no seio das Famílias, entre as Nações...

Desde há muito o Homem tenta entender as razões de sua presença, mas, desde a madrugada dos tempos, por mais que estude, nada conseguiu.

Sequer arranhou a superfície do Mal, pois não percebeu e aceitou que o fundamental, o primordial, o essencial, repousa naquela semente primitiva, da qual tudo é causa e consequência.

Não percebeu o Mal, como de fato ele é, pois muitas são suas faces.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

DO QUE VOCÊ DEVE DESCONFIAR QUANTO AO DIREITO

 Do descobrimentopoetico.blogspot.com


Honório de Medeiros 
(honoriodemedeiros@gmail.com)
* Esse comentário foi anteriormente postado no dia 9 de fevereiro de 2013.
 
1) O Direito não é uma ciência.
Somente crê que o Direito é uma ciência quem não conhece filosofia da ciência ou defende sua cientificidade com propósitos indignos.
O corolário desse postulado é que cai por terra, assim, o uso do "argumento da autoridade" na defesa de interpretações cabotinas.
2) O Direito não tem qualquer relação com o Justo.
Como não se sabe o que é o Justo, ou a Justiça, não se pode afirmar, em qualquer circunstância, que o ordenamento jurídico seja um instrumento para a obtenção da justiça.
3) O ordenamento jurídico é um instrumento do Estado, não da Sociedade.
Tanto o é que pode se voltar contra a Sociedade. Quando a Sociedade dobra o Estado, como nas revoluções, cai o ordenamento jurídico.
4) O ordenamento jurídico é um instrumento de opressão.
Em todos os tempos e lugares o ordenamento jurídico é um instrumento de opressão do Estado sobre a Sociedade, entretanto vale o dito: ruim com ele, pior sem ele, havendo democracia.
5) O ordenamento jurídico reflete a estrutura de poder das elites dominantes, a correlação de forças políticas existentes em um determinado momento histórico.
Muito embora decisões esporádicas que contrariem o sistema político dominante possam surgir, elas dizem respeito a espasmos isolados que não comprometem sua lógica interna e externa de manifestação dos interesses das elites políticas dominantes.
6) A norma jurídica constitucional, ou os princípios constitucionais, por ser abstrata e difusa, quando da sua interpretação, refletirá ainda mais claramente a correlação de forças políticas existente em sua circunstância específica.
7) Não há qualquer parâmetro científico que possa nortear uma interpretação de normas ou princípios jurídicos. Os parâmetros existentes são puramente retóricos.
8) Os juízes, promotores, advogados, policias, enfim, os serventuários da Justiça são servidores do Estado, não da Sociedade e consolidam, ao agirem, enquanto correia de transmissão, sistemicamente, a repressão estatal.
9) Muito embora o Estado emerja da Sociedade, pode se voltar contra o ambiente social - e o faz - no qual foi concebido.
10) O ensino do direito positivo, com raras e honrosas exceções, ensina o manejo da norma jurídica, sem permitir o desenvolvimento das condições críticas necessárias para domina-lo, quanto aos seus fundamentos e finalidades, assegurando assim, a manutenção e reprodução do status quo 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

A NOITE, OS MOSQUITOS E A LUA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)

(honoriodemedeiros.blogspot.com)



Imagem: Honório de Medeiros
        

Fui visitar Seu Antônio de Luzia, lá no Feijão, Sítio “Canto”, Serra da Conceição, rumo quebrado para a Serra do Camará.

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: "tá falando muito pouco e escutando demais."

"Por que?"

"Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca."

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, cadeira de balanço, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

"Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?".

"Boa tarde!". Mandou, com um gesto, que eu tomasse assento na outra cadeira de balanço.

Então eu me danei a falar e ele só olhando, escutando e calando.

Lá para as tantas, me fiz de atrevido e perguntei: "o Senhor perdeu o gosto de falar?"

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: "tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas."

Parou, pigarreou de novo, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro, e rematou: "O pouco que sei é o que eu faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d'água no poço...".

Mais não disse. Mais não perguntei.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos.

A noite, os mosquitos e a lua, que já se atrevia.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

BORGES E DUMAS, PASSANDO POR CARLYLE

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Em Ficções, Borges pondera: 

“Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em "Sartor Resatus" (...) Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários." 

Borges cita Carlyle, de quem, possivelmente absorveu a técnica. 

Entretanto Dumas pai, que foi contemporâneo do célebre ensaísta inglês, também a utilizou.

Em Os Quarenta e Cinco, lá para as tantas, ao relatar uma correspondência imaginária enviada por Chicot a Henrique III, e comentar a excentricidade do seu estilo, convida: “Quem quiser ter conhecimento dela encontra-la-á nas Memórias de l’Étoile”. 

Ou, quem sabe, terão existido mesmo essas Memórias de l’Étoile e elas ocupam algum escaninho empoeirado do “Cemitério dos Livros Esquecidos” que Carlos Ruiz Zafón localizou em Barcelona, na saborosa e definitiva  tetralogia iniciada com A Sombra do Vento?

Só o vento sabe a resposta...

quarta-feira, 23 de março de 2022

ESSÊNCIA IMUTÁVEL, FORMA EVANESCENTE

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Não há nada de novo sob o sol. Seguimos aparentemente em frente para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, e os meios que são criação nossa, mas dos quais somos reféns para lidarmos conosco, os fenômenos e as coisas, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um "vir-a-ser", como diria Nietzche, de proporções incalculáveis. 

Essência imutável, forma evanescente. 

Leio em Os Crimes de Paris, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. "Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Sureté, o equivalente francês do FBI, e modelo para vários personagens da literatura", dizem-me eles. 

Fascínio antigo esse meu por Vidocq. Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o "Bureau de Reinseignements", ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome? 

Vidocq inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre “Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca”, que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró, minha Macondo particular, que não existe mais, pelo menos neste plano. 

Inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da Comédie Humaine. 

Vautrin, o mesmo que em certo momento, lá para as tantas, explica o mundo: 

"-E que lodaçal! - replicou Vautrin. - Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral... Bonito, não é?" 

Assim falava minha mãe: "vão-se os anéis, permanecem os dedos..." 

sexta-feira, 18 de março de 2022

APRENDER A APRENDER

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

1) APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele.

Como observa Karl Raimund Popper, "cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos."

a) Esse problema pode ser inesperado, e não por outra razão a sabedoria popular diz: “a necessidade é a mãe da invenção”;

b) ou esse problema pode ser provocado:

b.1) quando problematizamos as coisas e/ou os fenômenos pois, tal qual nos disse Gaston Bachelard, “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”;

b.1.1) sempre por intermédio da contra-argumentação, utilizando o contraexemplo, para testar nossas teorias que tentam solucionar o problema.

2) QUALQUER problema é, antes de tudo, algo puramente racional, uma questão intelectual, mesmo quando surge no âmbito de um trabalho puramente mecânico.

a) Se constatamos a existência de um problema, é porque temos um conhecimento anterior a ele, que nos permite essa constatação. 

3) Para tentar uma solução que resolva o problema, elaboramos teorias que são soluções provisórias a serem testadas.

a) Os testes, ou o teste, dirão se erramos ou acertamos;  

b) Até mesmo o erro nos ensina, posto que não precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado, e aprendemos o que não é certo para a solução do problema.

4) SE o conhecimento é retificável, ou seja, pode ser modificado, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo.  

5) O conhecimento pode, então, ser compreendido como um “vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. 

6) A recusa em problematizar tudo quanto percebemos como um problema, conduz a neuroses. Aqui se compreenda essa recusa como uma fuga do problema com o qual alguém se defrontou.  

7) O como dizemos algo a nós mesmos, ou aos outros, acerca do que aprendemos é papel da Retórica: podemos tentar convencer ou seduzir tanto ao outro como a nós mesmos.

8) NÃO é possível comparar INFORMAÇÃO com CONHECIMENTO: quando conheço, estou informado, mas, nem sempre, quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem compreendê-lo.

terça-feira, 8 de março de 2022

DO PERMANENTE NO IMPERMANENTE

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


No monumental Musashi, de Eijy Yoshikawa, o "santo da espada" diz: "Ao mesmo tempo, um jovem tem o péssimo hábito de achar que não pode realizar seus sonhos no lugar onde está, e de sempre buscá-los por caminhos distantes. Grande parte dos preciosos dias da juventude se perde nessa insatisfação."

Lembrei-me, então, de um trecho há muito tempo lido em Sêneca. Está no Da Tranquilidade da Alma: "Uma coisa sucede a outra, e os espetáculos se transformam em outros espetáculos. Como disse Lucrécio: 'Desse modo, cada um foge de si mesmo'. Mas em que isso é proveitoso, se, de fato, não se foge? Seguimos a nós mesmos e não conseguimos jamais nos desembaraçar de nossa própria companhia".

Ou seja, busquemos o permanente no impermanente.

Em tempos de "vida líquida", como a denomina Zygmunt Bauman, no qual o evanescente é a essência das coisas, buscar o permanente no impermanente pode parecer uma quimera arcaica.

Entretanto se não nos dedicamos a tal por intermédio da submersão em si mesmo, outra coisa não fazemos quando investimos no conhecimento que nos possa trazer o "Grande Colisor de Hádrons".

Lá os cientistas buscam exatamente essa quimera arcaica ao fragmentar a tessitura da realidade.

O que acontecerá quando tudo for compreendido?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A ÚLTIMA DAS ESTAÇÕES DA VIDA

 * Honório de Medeiros

* honoriodemedeitos@gmail.com


Estamos cansados. Encenamos uma peça que não escolhemos, no teatro da vida, com parceiros que nos impuseram ou não soubemos selecionar, e uma finalidade que não é aquela que nosso coração escolheria. A razão ansiosa, sim, o coração, não. Lutamos pela admiração alheia, deixando de lado o olhar melancólico do nosso verdadeiro eu, que nos olha do espelho com olhos surpresos pelos nossos fracassos. E, quando menos esperamos, o tempo passou, tudo aquilo pelo qual valia a pena viver se foi como uma bolha de sabão ao sabor do sol, porque chegou o inverno, a última das estações da vida...

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

SEU ANTÔNIO DE LUZIA E OS TEMPOS DE ONTEM E DE HOJE

 

Caminhando no Sítio Canto, Serra da Conceição

* Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.

Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.
A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

A VERDADE CAMBALEIA

 * Honório de Medeiros.

(honoriodemedeiros@gmail.com)



Michiko Kakutani, prêmio Pulitzer de 1998, crítica literária do The New York Times por mais de quarenta anos, em A Morte da Verdade (Notas Sobre a Mentira na Era Trump), conta que Steve Bannon, estrategista e conselheiro do ex-Presidente, certa vez descreveu a si mesmo como um “leninista”.

O mesmo Bannon, ainda segundo Kakutani, teria dito o seguinte: “Lênin queria destruir o Estado, e esse também é o meu objetivo. Quero acabar com tudo e destruir todo o establishment de hoje em dia.”

Lênin deve estar gargalhando em alguma das grelhas do inferno, apesar das dores. Ele é o patrono dessa maré de pós-verdade que se tornou praticamente hegemônica nos dias atuais, calcada no uso da retórica violenta, incendiária, em promessas simplórias e desconstrução da verdade, tudo potencializado pela internet.

O fundador da URSS explicou, certa vez, que sua retórica era calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo, não para convencer, mas para desmobilizar o adversário, não para corrigir o erro do inimigo, mas para destruí-lo.

Quem quiser ler um pouco mais, está em Report to the Fifth Congresso of the R.S.D.L.P. on the St. Petersburg Split of the Party Tribunal Ensuing Therefrom.

É bom lembrar que Pilatos inquiriu Jesus, em uma das mais célebres passagens da Bíblia: “Então, tu és rei?”, ao que Ele lhe respondeu: “Tu dizes acertadamente que sou rei. Por esta causa, Eu nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar a verdade. Todos os que pertencem à verdade ouvem a minha voz.” Pilatos, então, questionou: Quid est veritas? (“Que é a verdade”? João 18,38). E assim que disse isso, saiu de novo para onde estavam reunidos os judeus, e lhes disse: “Não encontrei qualquer falta nesse homem”.

Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, até mesmo um niilista quanto à moral, e somente acreditava no Poder pelo Poder, e como não escutou resposta, o silêncio de Jesus perturba os filósofos através do tempo.

De qualquer forma já somos todos perdedores. Em um mundo onde o princípio basilar da razão, qual seja o da Verdade Objetiva, não a de cada um, mas aquela que existe independente da vontade de quem quer que seja, desmorona lentamente, confrontada pelo relativismo das narrativas subjetivas, somente a luta, até mesmo física, nele encontra guarida.

Esquecemo-nos que onde tudo pode ser, nada é; onde nada é, tudo pode ser.

Se fôssemos minimamente sensatos, aproveitaríamos o que nos aproxima e deixaríamos de lado o que nos afasta. Esta é o ponto-de-partida para evitar o caos, a fragmentação, a insanidade.

Assim, mesmo descrente de tudo quanto estamos construindo, ainda cabe acreditarmos que é necessário sermos muito cautelosos com o que vemos, ouvimos, lemos, até mesmo tateamos.

As armas da manipulação estão cada vez mais sofisticadas. E não pode, não deve existir dúvida: o Poder somente se toma ou se mantém à custa da sedução, manipulação ou força. Dificilmente via convencimento.                

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

DE LONGE CHEGAVA A VOZ DE ALTEMAR DUTRA CANTANDO...

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


De longe chegava a voz de Altemar Dutra cantando “Tudo de Mim”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Quem estaria escutando essa música, no último dia do ano, quando já era noite fechada e faltava pouco para os fogos subirem aos céus?

Enquanto desfrutávamos da nossa solidão a dois, preparávamos, a quatro mãos, nossa ceia. Eu e ela. Os meninos, ainda os chamamos assim, já tinham partido, para muito longe. Ficamos nós, aqueles cujas raízes são fundas demais para serem arrancadas.

Eles se foram, são o futuro, e, nós, cada dia mais, o passado.

Ela nota minha melancolia. Disfarço. Brinco. Não resolve. Não consigo mais engana-la. São muito anos de cumplicidade. Falo-lhe de Altemar Dutra, de quando o conheci ainda praticamente adolescente, uma noite, no “Casarão”, e emendo com uma confissão, dizendo-lhe que minha tristeza não vem da batida do passado na porta do meu coração.

Não é isso, digo-lhe. É a tristeza de quem sente que algo precioso está se perdendo, e não voltará. Estou, agora, falando acerca da maravilhosa letra da música que Altemar Dutra canta e que ouvimos vinda de longe, de alguma das casas que cercam nosso prédio, elas mesmas, as casas, antigas, desaparecendo para cederem seus lugares a prédios modernos, repletos de vidros e ausentes de história.

Essas músicas sobrevivem como espasmos e me quedo surpreso quando as escuto em algum lugar, por insistirem em abrir espaço, vindas do passado, em um futuro tão diferente. Como quando escutei uma melodia de Chiquinha Gonzaga, em um celular portado por uma adolescente no shopping onde almoçávamos.

Altemar Dutra segue desaparecendo lentamente da nossa memória, e fatos como esse sempre me lembram amigos que se foram, ao longo do tempo, de nossas vidas. Amigos que se afastam, aqueles velhos amigos, com eles desaparecem "a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam"(*). "All those moments will be lost in time, like tears in rain"(**).

Assim, concluo, enquanto ela põe a mesa, morre aquilo que o homem constrói, apaga-se, desaparece na neblina do tempo, pois o futuro e seu filho dileto, o esquecimento, algoz de todas essas lembranças, não se compadece do quanto já foi construído em todos os lugares e tempos. É preciso que chegue o novo, que se vá o passado.

Eu me calo. Muito antes, já se calara Altemar Dutra. Decerto, quem o escutava, já se aproximando do inverno da vida, resolveu dormir. Mal sabe ele que lhe fiz um brinde, com um copo de água, quando vinha a madrugada.

Para ele, Altemar Dutra, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.


* Hereges, Leonardo Padura.

** O replicante Roy Batty, em "Blade Runner".

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

SIR KARL RAIMUND POPPER


Sir Karl Raimund Popper

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Sir Karl Raimund Popper (Viena, 28 de julho de 1902Londres, 17 de setembro de 1994) foi, na minha opinião, o maior filósofo do século XX. Levo em consideração, para pensar assim, a importância de sua obra.

Matemático, físico, lógico, filósofo da ciência e filósofo político, historiador, músico, tradutor, um polímata, enfim, provavelmente o último, dado o crescimento avassalador do conhecimento após o epifenômeno da computação, que lhe foi praticamente posterior.

É muito difícil aquilatar o tamanho de sua contribuição intelectual, construído no embate contra a metafísica, o marxismo, positivismo e a psicanálise, mas, também, no estudo da relação entre teoria da evolução e epistemologia.

Suas análises de Platão e Parmênides são, no mínimo, monumentais: para tal, dominou o grego arcaico.

De sua vasta obra, talvez os mais impactantes livros sejam The Logic of Scientific Discovery, A Sociedade Aberta e seus Inimigos, Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária, Lógica das Ciências Sociais, Conjecturas e Refutações (o progresso do conhecimento científico) e, post mortem, O Mundo de Parmênides: ensaios sobre o iluminismo pré-socrático.

Creio ter sido Sir Karl Popper o último dos grandes, e o maior de todos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

HEGEL: DE UMA LONGA E ÁSPERA CAMINHADA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


“Senti nesse texto como se estivesse testemunhando o início da sua caminhada no curso de Direito, quando você passou por um dilema que eu mesma vivi e vi muitos dos meus colegas também passarem: primeiramente, a criação de um ideal que permitiria nos enxergarmos como um verdadeiro aluno de direito, e nos fazia trabalhar em tarefas auto-impostas para alcançar esse patamar também auto-imposto, e, em segundo lugar, enxergar a situação do embate entre o que conhecemos e respeitamos e o que somos apresentados e queremos respeitar. Eu não tinha noção da importância de Hegel, e gostei de aprender sob sua influência, acerca da visão que os outros autores tinham dele e de sua obra. Também achei que o texto acabou mostrando de uma maneira muito delicada como é essa “jornada” do saber: inquietar-se, questionar-se e a presença constante da mudança de percepções”.[1]

 

No final dos anos 80, início dos 90 dediquei-me a estudar Hegel.

Peguei meu exemplar do Princípios da Filosofia do Direito, cuja primeira edição é de 1918, e me lancei na empreitada, mesmo a contragosto, ante a dificuldade de compreender o pensamento do autor, que se expressava em uma linguagem deliberadamente abstrusa.

Fichte, a quem se atribui ter sido a ponte entre Kant e Hegel, era ainda pior, mas eu acreditava que era uma espécie de dever moral um estudante de Direito e do marxismo conhecer sua obra.

A duros custos cheguei lá, dadas as dificuldades que o texto, em si, e que são grandes, propunham, e do qual o parágrafo abaixo é um bom exemplo:

            O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo.

Quanto mais lia, menos conseguia esquecer a opinião que de Hegel tinha Schopenhauer, por quem nutro grande admiração.

Para que se tenha uma ideia dessa opinião, lembro a afirmação de Schopenhauer, citando Shakespeare (Cimbelina, ato V, cena 4), em sua Vontade da Natureza, que a filosofia de Hegel era "uma conversa de loucos, vinda da língua e não do cérebro".

Em O Mundo Como Vontade e Representação, Schopenhauer não deixou por menos: 

            Hegel, imposto de cima pelos poderes vigentes, como o Grande Filósofo oficializado, era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e fornicar as mais malucas e mistificantes tolices. Essas tolices foram barulhentamente proclamadas como uma sabedoria imortal, por seguidores mercenários, e prontamente aceitas como tal por todos os tolos, que assim se juntaram num coro perfeito de admiração, como nunca antes se ouvira.

Existe muito mais de Schopenhauer em relação a Hegel, mas é o suficiente. Além dele, também da mesma época há, por exemplo, Soren Kiekergaard, autor de O livro do Juiz, crítico severo de seu historicismo, e citado por Sir Karl Raymund Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos:

            Houve - escreve Kierkegaard - filósofos que tentaram, antes de Hegel ... explicar a história. E a Providência só podia sorrir ao ver tais tentativas. Mas a Providência não se ria às escâncaras, pois havia neles sinceridade e honestidade humanas. Mas Hegel!... Aqui preciso da linguagem de Homero. Como os deuses gargalharam trovejantemente! Esse pequenino e horrendo professor compreendeu simplesmente a necessidade de cada uma e de todas as coisas que existem, e agora executa em seu hormoniozinho toda a peça: “Escutai, deuses do Olimpo!”

Sir Karl Popper comenta a citação dizendo que as expressões de Kierkegaard são quase tão fortes quanto as de Schopenhauer, quando afirma, um pouco depois, que o hegelianismo, "esse brilhante espírito de podridão, é a mais repugnante das formas de licenciosidade, mofo de pompa, e possui um infame esplendor de corrupção".

Ainda em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Sir Karl Popper, lá para as tantas, se pergunta a razão pela qual ainda precisamos nos incomodar com Hegel:

            A resposta é que a influência de Hegel permaneceu como força poderosíssima, apesar do fato de que os cientistas nunca o levaram a sério (...) A influência de Hegel e especialmente a do seu jargão, é ainda muito forte em sua filosofia moral, e social, como nas ciências sociais e políticas (com a única exceção da economia). Especialmente os filósofos da história, da política e da educação, ainda estão sob seu império, em ampla extensão. Em política isso é mais amplamente mostrado de que tanto a ala extrema marxista, assim como o centro conservador e a extrema direita fascista baseiam suas filosofias políticas em Hegel; a ala esquerda substitui a guerra de nações que aparece no esquema historicista de Hegel pela guerra de classes; a extrema direita substitui-a pela guerra de raças; mas ambos o seguem mais ou menos conscientemente (o centro conservador é, em regra, menos consciente do que deve a Hegel).

Mesmo assim li Hegel. Conclui minha tarefa autoimposta. Ter continuado a estuda-lo me permitiu, algum tempo depois, procurar entender a ligação entre a dialética de Heráclito de Éfeso, a de Hegel, com sua “Filosofia da Identidade”, e a de Marx. Fez-me capaz, certo ou errado, de conectar esse entendimento com a “Teoria da Evolução”, por intermédio da “Teoria do Meme”, exposta por Sir Richard Dawkins em O Gene Egoísta.

Permitiu-me, por fim, compreender que sem a ciência qualquer teoria acerca de fatos históricos é mera especulação. Quanto à Filosofia, é pura metafísica, delírio da Razão.



[1] Comentário de Bárbara de Medeiros.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

QUE FAZER?

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O duplo de Vila-Matas, em Perder teorias, narrando seu périplo em Bourdeaux onde proferiria uma palestra que não houve, lembrou, enquanto vagava ao léu, a "literatura da percepção", citando Kafka, que intuiu "para onde iria evoluir a distância entre Estado e indivíduo, singularidade e coletividade, massa e cidadão".

Entretanto não aceitou, o duplo, que a "literatura de percepção" fosse o mesmo que "literatura profética", a qual denominou de "nada interessante".

Citou, ainda, o hoje pouco conhecido Julien Gracq, autor de O Mar das Sirtes, fundamental antecessor da narrativa moderna que, segundo ele, faria parte da corrente de escritores que têm a capacidade de antevisão, pois aparentemente anteviram o grande problema dos dias atuais, qual seja "a situação de absoluta impossibilidade, de impotência do indivíduo frente à máquina devastadora do poder, do sistema político".

Nada mais, nada menos, que genial!

Agora nos resta debater, à exaustão, acerca da questão que não se omite: que fazer?

Cruzar os braços?

Lutar, mesmo que aparentemente em vão?

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O QUE NOS RESERVAVA CADA CAMINHO QUE NÃO PERCORREMOS?

 

Arte: adroaldo-palaoro

* Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Cada um de nós, no presente, é refém das escolhas que fez no passado. Bifurcações, encruzilhadas, caminhos com possibilidade única de retornar ou seguir em frente, veredas, qualquer opção tomada nos encaminhou a um futuro escolhido e desfez, naquele preciso instante, para sempre, a possibilidade de vivermos o que foi abandonado. Muito embora às vezes pudéssemos ter uma pálida ideia do que viria quando a opção foi feita, são tantos os desdobramentos seguintes que qualquer certeza logo se desfaz, tal sua evanescência. Angustia-nos saber que a opção foi um ponto-sem-volta, que nunca saberemos, concretamente, o que aconteceria se, no passado, tivéssemos seguido de forma diferente. Aquela rua que não foi transposta, a esquina que não foi dobrada, o adeus que foi ou não dado, o não ou o sim que dissemos, há tanto tempo, o que nos reservava cada caminho que não percorremos?

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são, dizerem suas essências. 

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos, nominamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica a partir do nosso conhecimento pré-adquirido. 

Lemos acerca disso em Kant, Gaston Bachelard, Karl Popper... 

Por outra, nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas. As coisas são processos. 

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista de Protágoras de Abdera; Antístenes versus Platão; mesmo, talvez, até Parmênides. 

O nominalismo também impede a fenomenologia de Henri Bergson e Edmund Husserl e a pretensão de uma hermenêutica cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo. 

Assim, o Justo não está fora de mim, é uma construção pessoal e tem a minha medida, e isso ocorre com tudo quanto não esteja sob o domínio da ciência. 

Thomas Nagel, em Visão a Partir de Lugar Nenhum (Martins Fontes), observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”. 

Não há essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

CETICISMO, AUTOCRÍTICA E INCONFORMISMO

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O apático moral é um cético, mas nem todo cético é um apático moral. Aquele que não o é pode abraçar o inconformismo. 

Nesse caso o ceticismo inconformista seria uma forma deliberada de interagir conosco mesmo e com tudo quanto nos envolve. Seria uma arma para se defender contra o pântano do "status quo", e ir além do que foi estabelecido ruinosamente. 

Ceticismo somente, não: conduz à apatia moral. No ceticismo inconformista, duvidamos, questionamos, e nos manifestamos. 

Mas é preciso cuidado: não é somente o Outro que não sabe; o cético inconformista também não sabe, embora saiba que não sabe. Não custa nada acendermos uma vela em homenagem a Sócrates. 

Autocrítica e ceticismo inconformista: o primeiro para nos colocar em nossos reais limites; o segundo, para colocar os outros em seus limites reais.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

CADA HOMEM HOJE É UMA ILHA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


O mundo está se fragmentando.

Cada homem, hoje, é uma ilha.

Uma ilha em permanente guerra contra as outras.

Tudo quanto formava a unidade entre as pessoas, como a crença em Deus, a fé na Razão, a vida comunitária, se desfaz lentamente.

Não nos damos mais as mãos, exceto quanto temos algum interesse a alcançar.

O altruísmo morre lentamente, prevalece o egoísmo.

Todos são, individualmente, desde algum tempo, donos de uma verdade única, e agem como se quem não concordasse consigo fosse um inimigo a ser destruído.

Breve esse individualismo exacerbado, que se firma nos nossos defeitos, e não no que nos engrandece, há de nos conduzir para uma realidade na qual cada um será por si, e ninguém por todos.

Então, será o fim.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

TODAS AS COISAS TRAZEM CANSAÇO

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Quanto menos novo fico, mais me abandono ao fascínio do Eclesiastes.

Texto poético belíssimo, denso, sapiencial, condena muitos livros à sua real e diminuta dimensão.

Incita-nos a questionarmos nossa vaidade tola de querermos saber tudo, em um universo cujos alicerces estão firmados de tal forma, que parecem inevitáveis, mas permanentemente obscuros, alheios a nossa vontade e capacidade de entendê-los.

Consolo-me com o Eclesiastes.

"Todas as coisas trazem cansaço. O homem não é capaz de descrevê-las; os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir" (Ec 1,8).