Para entendermos o raciocínio que neste artigo é desenvolvido, precisamos esquecer as sofisticadas definições criadas por intelectuais acerca do que seja Estado. Vamos pegar a noção do senso comum, que é uma evolução do pensamento de Aristóteles acerca do que seja uma comunidade política: Estado é um território no qual vive uma população submetida a uma elite governamental supostamente representativa dos interesses da maioria.
Essa elite governamental, para aumentar ou se perpetuar seu poder, necessita de instrumentos através dos quais tal seja possível, os assim chamados “Aparelhos do Estado” - Poder Executivo, Legislativo e Judiciário – cristalizações de relações de domínio – que operam, se transformam em realidade, por intermédio dos servidores públicos. Em síntese: alguns mandando em muitos através de outros.
Não esqueçamos que o Estado é uma hipostasia, uma abstração. O que existe, realmente, são relações de domínio.
Os servidores públicos concretizam essa dominação exercida pela elite governamental, da qual eles são integrantes, sobre a maioria da população e, ao mesmo tempo, são dominados pelo topo da hierarquia do Estado ao qual pertencem. Nesse papel de “correia de transmissão” entre o Estado e a Sociedade os servidores vendem, ao primeiro, em troca de uma remuneração, sua força de trabalho física ou intelectual.
No Estado brasileiro, por força de disposição constitucional pétrea, ou seja, supostamente “imexível”, essa remuneração não pode ser reduzida.
Entretanto essa mesma remuneração, muito embora não possa ser reduzida, é alvo permanente de apropriação por parte do Estado ao qual o servidor público presta serviço. Isso ocorre indiretamente, por exemplo, quando seu poder de compra é corroído pela inflação, e o Estado paga cada dia menos pelo mesmo trabalho, ou diretamente, quando a base de cálculo sobre a qual incide a alíquota do imposto de renda permanece baixa por que o Governo não corrige seu valor erodido pelo custo de vida. Ao não corrigir mais servidores são tributados.
Outro exemplo de apropriação direta é a imposição do pagamento da contribuição previdenciária aos aposentados, somente possível vergando-se, como se vergou, via Supremo Tribunal Federal, cláusula pétrea da Constituição, qual seja a alusiva ao direito adquirido.
A lista de exemplos é interminável: não pagamento, pelo Estado, dos débitos oriundos de questões jurídicas transitadas em julgado – os precatórios – e das decisões administrativas indiscutíveis e irrecorríveis, tais como férias vencidas e não pagas, gratificações não incorporadas, adicionais não reconhecidos, e assim por diante. É, também, o caso do vindouro pagamento, pelo servidor público, de contribuição previdenciária ao regime complementar, caso queira sobreviver, na aposentadoria, com algo além do teto que lhe reservará o regime próprio de previdência. Outro, ainda, é a não implantação de Planos de Cargos e Salários, impedindo o servidor público de ascender profissionalmente seja por mérito, seja por antiguidade, e, assim, melhorar sua remuneração.
Em todos esses exemplos se configura aquilo que o próprio Poder Judiciário denomina de “enriquecimento ilícito do Estado”. Resulta da sua fome pantagruélica, da qual é vítima permanente a classe média, constituída em grande parte por servidores públicos, espremida entre os que muito têm - a quem não importa o que lhes é cobrado – e os pobres, excluídos ou miseráveis, de quem nada se pode arrancar diretamente.
Pois o servidor público não tem como fugir da voracidade do Estado: indefeso, passivo, constata, todos os meses, o imposto de renda ser cobrado na fonte, ou seja, em sua remuneração, enquanto os megacontribuintes, pagando caro a escritórios especializados, através das brechas das leis, vão driblando os fiscais e engordando seus lucros.
Matéria publicada na Revista Veja (edição 2100, ano 42, nº 7, 18 de fevereiro de 2009) aponta para 20 bilhões de reais o débito de madeireiras, siderúrgicas, bancos, financeiras, empresas telefônicas, indústrias, cartéis econômicos, distribuidoras, postos de combustíveis, fabricantes de alimentos e medicamentos, promotores de eventos, supermercados e padarias, empresas aéreas e outros, para com o Estado. Esse valor é apenas estimativo e aumentou muito ultimamente.
Tampouco consegue reagir a essa apropriação silenciosa e eficiente: vilipendiado de todas as formas, inclusive por intermédio da mídia subserviente comprada pelos governantes, a imensa maioria dos servidores públicos assistem, perplexos, a uma permanente campanha difamatória, contra si promovida quando o verdadeiro alvo deveria ser os cargos em comissão e funções de confiança ocupadas politicamente, detentores de gratificações ou vantagens espúrias ou mal atribuídas, tudo quanto corrói e solapa a administração pública.
Essa apatia, reforçada por mecanismos táticos compensatórios tais como gratificações, horas-extras, diárias, indenizações, todas elas impossíveis de serem levadas para a aposentadoria, aliena o servidor público, deteriora a prestação do serviço à Sociedade, e contribui para sua depreciação.
E não se está analisando, aqui, o mal que a ausência de uma política de qualificação contínua do servidor público pode causar. Tentativas esporádicas esbarram no óbvio: de que adianta qualificar-se se não há possibilidade de ascensão profissional, se não há promoção, se não há vantagens e regalias para quem se esforça e carrega o piano, pergunta-se o servidor público.
Do ponto de vista estratégico o aviltamento da remuneração dos servidores públicos, no Brasil, implica no comprometimento da capacidade de consumo da classe média, por eles fortemente constituída. Esse aviltamento cerceia seu poder de compra e estimula a corrupção. Por outro lado implica, também, na impossibilidade de elaboração de políticas públicas consistentes, dado sua falta de qualificação. E como não as há, usa-se um manjado meio de instaurar a corrupção: contratos milionários com a iniciativa privada para prestação de assessorias, consultorias e outros que tais, através, quase sempre, de licitações – quando as há – manipuladas.
Até quando, por intermédio dessa contínua apropriação, a classe média e segmentos dos servidores públicos permanecerão bancando, alienados, o pagamento do serviço da dívida do Estado e financiando ações sociais assistencialistas, populistas, bem como obras públicas desnecessárias, impostas à Sociedade por meio de estranhos critérios que a mídia áulica se encarrega de legitimar?
Até quando serão a classe média e os servidores públicos responsáveis pela benemerência do Estado junto aos excluídos e miseráveis para assegurar, a sua elite dominante, seu voto e lealdade política?