quarta-feira, 26 de junho de 2024

O SERTÃO É ASSIM



Por Honório de Medeiros

Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

@honoriodemedeiros


O Sertão é assim: uma secura medonha, nuvens poucas no céu, o mato ralo e seco, um sol de lascar o cocuruto, preás, mocós e cascaveis correndo nas lajes, um ou outro gavião pairando lá em cima, voando rasante,  mas quando chega o por do sol, os sabiás e cabeças-vermelhas se recolhem, o rasga-mortalha se assanha, os juritis começam seu canto e os chocalhos do gado ecoam nos currais, vai chegando a hora da coalhada,  então uma melancolia suave se espalha pela imensidão, o vivente se esquece de tudo e uma certeza chega forte: ali é seu lugar, seu chão, sua pátria...

SÃO JOÃO NA SERRA DE SANTANA, CERRO CORÁ



Por Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros 
honoriodemedeiros@gmail.com

Cerro Corá, Serra de Santana, Colina dos Flamboyants, 22 de junho de 2024. Longe, ouço a Novena de São João Batista, na voz do pároco. Logo mais, o leilão, tradição sertaneja antiga, seguido de um forró pé de serra legítimo, com sanfona, zabumba e triângulo, enquanto o Galego da Serra prepara, em sua imensa tina, para todos verem, o queijo de manteiga que lhe rendeu premiação na França. Uma mesa, imensa, comportará mugunzá, canjica, pamonha, bolo preto, bolo da moça, pé de moleque, dadinhos de tapioca com geléia de pimenta e assim por diante, tudo arte de Jane Silva, incomparável. Celebraremos a amizade, os afetos, os laços de família: é o que esperamos, tudo sob a proteção de São João, a quem invocamos a benção, proteção, e a abertura dos caminhos que queremos percorrer. Saudade de meus filhos, tão longes, e de minha irmã...

quarta-feira, 19 de junho de 2024

SEU ANTÔNIO DE LUZIA

 


Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.


Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.

A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

terça-feira, 18 de junho de 2024

ABRIL É O MAIS CRUEL DOS MESES



* Honório de Medeiros.

Dia cinzento. Prédios cinzentos. Rue de Granelle.  Paris. Sigo por Saint-Germain-des-Prés-Prés, a passos hesitantes. Abril de 2009. É o mais cruel dos meses, disse Elliot em célebre poema. Talvez seja. Nasci em abril. Vou andando entre absorto e distraído. O pensamento voa, mergulha no passado distante. Sou adolescente, e, deitado na rede, livro de Dumas pousado no peito, sonho com uma Paris medieval, onde os mosqueteiros do rei defendem a rainha das astúcias ciumentas do cardeal Richelieu. Ah, Dumas. Percebo um mendigo. Não parece, não olha os passantes, não pede, mas a tigela pousada no papelão, à sua frente, não o nega. Seus olhos não desgrudam do livro, grosso e novo. Não consigo perceber o título. Deixo-lhe algumas moedas. Agradece, sem me olhar. Sigo em frente. Paris, Paris, onde andará esse mendigo, os mosqueteiros, a bela Ana de Áustria e o cardeal Richelieu?

quinta-feira, 13 de junho de 2024

PÈRE LACHAISE



* Honório de Medeiros

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém à vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. “Não, desculpem-me, não sei”. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.

Tento decifrar o mapa do cemitério para ir em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Caminho. É um alumbramento. Em cada canto, história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento. No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.

Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um deles. 

Mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, mas me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo. 

A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho e não vejo ninguém.

Sento em um banco às margens de uma das vias principais e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do presente e do passado: é plena madrugada, estou deitado de costas olhando para a torre da igreja do cemitério e para as estrelas logo acima; agora é a Mossoró da minha adolescência e infância, a Igreja é a de São Vicente, meus amigos de então conversam ao meu lado, mas ninguém dá por mim. Sou adolescente e adulto. Angústia.

Levanto-me e vou embora. A chuva molha meu rosto. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

SEU SEBASTIÃO BENTO


* Honório de Medeiros

Enquanto a tarde se fazia noite nas quebradas da Serra Verde, pelas bandas da Serra de Santana, no Seridó, e se ouvia, longe, o canto melancólico do Juriti sob o manto cinza  de uma chuva miúda, puxávamos conversa, eu e Genilson, com Seu Sebastião Bento, noventa e nove anos nos couros, como dizemos no Sertão profundo.

Ele nos dava notícias de sua gente, espalhada pelos quatro cantos do mundo, talvez uns vinte e tantos filhos, somente três casamentos, porque não se dera ao gosto de aprender a dançar, tal qual seu filho Geraldo, vaqueiro e dançarino respeitado nas redondezas. 

O feijão branco, largado no chão e esperando debulhe, bem como a garrafa de pitu, carinhosamente guardada no canto do banco de madeira, ao alcance da mão, escutavam a história.

Nascera lá mesmo, naquele recanto, e os anos, muitos, se passaram velozes, mas ainda sobrava energia para cuidar do gado solto na revença do açude, e da roça de milho. A voz rouca, marcada pelo tempo, faz um contraponto sutil com o canto das cigarras e pássaros que saudam a noite vindoura.

Dou fé, disse a ele. Eu o vira surgir afastando o mato com sua bengala singela, enquanto tomava o rumo de casa em busca da lapada de cana que espalharia o sangue, antes da coalhada com raspa de rapadura. 

Depois, tomamos rumo em busca do por de sol ao som do canto triste do Juriti. Quanta beleza ignorada pelos homens. Quanta solidão naquele mundaréu de Deus...

Voltamos. 

Dia seis de abril, onde estivermos, vamos homenagear seus cem anos, Seu Sebastião. Ô meu filho, eu agradeço muito essa visita e consideração.

Fique com Deus, Sal da Terra, eu lhe disse enquanto apertava sua mão, dura e áspera como uma rocha, me lembrando de São Mateus. 

Voltarei.