terça-feira, 17 de maio de 2016

AS FASES DA VIDA

* Honório de Medeiros

Até certo momento da vida nossa luta é para ser conforme a tribo, o grupo; depois, a luta será para estabelecermos diferença entre nós e esse grupo, a tribo; um pouco mais para a frente nós nos abrimos para percebermos aquilo que, nos outros, é único, e esse único nos atrai ou  nos causa repulsa ou indiferença; se nos atrai, fomos fisgados. Se não chega esse momento no qual é preciso estabecer nossa diferença para com o grupo, a tribo, então é preciso temer: há algo de errado na nossa vida, na nossa mente, na nossa alma.

domingo, 15 de maio de 2016

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM

* Honório de Medeiros

O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (suas essências).

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Kant, Bachelard, Popper...). 

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista (Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão), mesmo até Parmênides.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Bergson e Husserl e a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo.

Não há essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (“Visão a Partir de Lugar Nenhum”; Martins Fontes; SP; 2004; 1ª edição; p. 137; nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas.

O Justo não está fora de mim, está em mim...

segunda-feira, 9 de maio de 2016

QUEM ERA O HOMEM DE OLHOS ACESOS?

* Honório de Medeiros
O pai de minha sogra tinha mais de noventa e seis anos. Andar curvado, pele curtida, mãos nodosas, cabelos finos e totalmente brancos, de uma magreza ascética, poucas palavras que um começo de senilidade acentuou ao longo dos seus últimos anos, embora não lhe fizesse perder totalmente o senso.

Homem tipicamente rural, daquela estirpe de nordestinos como já não os há, cuja palavra empenhada vale mais que qualquer cheque em branco, seu código de honra fora imutável: uma vez tomada uma posição qualquer, não havia possibilidade de mudança e seus valores eram "preto no branco". Seus avôs os tiveram iguais e também os pais e, segundo ele, deveria ser assim por que assim o era desde que o mundo é mundo.

Aconteceu que um dos seus muitos filhos, suscetível, em termos de honra, tanto quanto ele, depois de uma desavença onde não faltaram palavras ásperas de lado-a-lado, foi-se embora jurando nunca mais voltar. Ele sentiu o golpe, mas não o acusou. Ano após ano, mesmo as lágrimas de mãe que sua esposa derramava escondido e ele pressentia não lhe fez sequer murmurar o nome daquele que ousara levantar a voz e desrespeitar sua autoridade paterna. Era como se o filho não existisse, e as notícias esparsas, trazidas pelos outros até o seio da família não lhe eram comunicadas, circulando sem o seu conhecimento por entre mãe e irmãos.

Dias antes da última eleição municipal que o encontrou vivo uma ligação da desconhecida esposa do seu filho que se fora comunicou sua doença: entubado, inconsciente, comatoso, jazia na unidade de tratamento intensivo de um grande hospital em uma cidade distante, no norte do País. Criou-se uma sincronia macabra entre a expectativa do dia da eleição e o da sua morte, nessa altura, já esperada. 

Enquanto isso, embora todos, em casa, soubessem da situação, e poupassem o pai por temor de um agravamento da sua fragilidade de idoso, a ansiedade pelo desfecho, tanto da eleição, quanto da morte, esta agravada pela dificuldade de se obterem informações, aumentava cada vez mais.

No dia anterior ao da eleição, às oito horas da manhã, uma das suas filhas, como de costume, foi acordá-lo para o café e o encontrou falando como se estivesse se dirigindo a alguém. Perguntou-lhe: “com quem está falando, papai?” “Com esse homem de olhos acesos que não para de me olhar.” “Quem, papai, aqui não tem ninguém.” “Você pensa que eu sou doido; o que ele queria aqui no meu quarto?” A filha teve imediatamente um palpite, e, angustiada, sentou-se lentamente na cama. “Papai, esse homem era novo ou velho?” “Era novo, ainda.” Nesse instante, o telefone toca estridentemente lá fora. Ela corre para atender. Do outro lado da linha, a informação agora esperada: “seu irmão acabou de falecer.”

Mas ainda não acabara o inexplicável. À noite, enquanto era acomodado em sua cama, véspera tumultuada de eleição, o pai se virou para a filha e resmungou. Atenta, ela lhe pergunta: “o que é papai?” “Essas almas”, responde, “hoje está cheio delas aqui.”

domingo, 8 de maio de 2016

DIA DAS MÃES


Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros
(1926-2010)


Tão longe do meu abraço, tão perto da minha alma!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

NIILISMO


Niilismo
substantivo masculino
  1. 1.
    redução ao nada; aniquilamento; não existência;
  2. 2.
    ponto de vista que considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade na existência.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

"TODAS AS COISAS TRAZEM CANSAÇO"

* Honório de Medeiros

Quanto menos novo fico, quanto mais o tempo passa, mais me abandono ao fascínio do Eclesiastes. Texto poético belíssimo, denso, sapiencial, condena muitos livros a sua real e diminuta dimensão. Incita-nos a questionarmos nossa vaidade tola em um mundo cujos alicerces estão firmados de tal forma que parecem inexoráveis, alheios a nossa vontade e capacidade de entendê-los. "Todas as coisas trazem cansaço. O homem não é capaz de descrevê-las; os olhos nunca se saciam de ver, nem os ouvidos de ouvir" (Ec 1,8).

domingo, 17 de abril de 2016

DO CONCEITO DE CANGAÇO, CANGACEIRO, E CANGACEIRISMO

* Honório de Medeiros

É possível que o termo cangaço tenha surgido, realmente, para designar toda a parafernália (conjunto de objetos de uso pessoal; apetrechos, pertences, acessórios) que o sertanejo portava para se deslocar pelo Sertão nordestino desde o início do ciclo do couro até o começo do século XX. Por associação de idéias transplantou-se o termo “canga”, suportado pelo boi, mas constituído por apenas uma peça, para cangaço, suportado pelo homem, mas constituído por várias peças. 

O sertanejo precisava transportar consigo, em seus deslocamentos, quase sempre a pé, vez que animais de transporte eram raros e caros, privilégio de poucos, armas de fogo e armas brancas, as mezinhas, o farnel, o dinheiro, algum papel escrito, as orações, a água, bebida, alguma panela de ferro, material para fazer fogo, artigos de higiene, e por aí vai...

Em “NOTA SOBRE CANGAÇO E CANGACEIRO”[1] Luis da Câmara Cascudo lembra que “Cangaço é a reunião de objetos menores e confusos, utensílio das famílias humildes, mobília de pobre e escravo, informa Domingos Vieira (1872). Troços. Tarecos. Burundangas. Cacarecos. Cangaçada, cangaçaria. Nunca ouvi dizer cangaçais ou cangaceira. (...) Beaurepaire Rohan registra ‘o conjunto de armas que costumam conduzir os valentões (1889)’. É, para mim, a menção mais antiga. Para o sertanejo é o preparo, carrego, aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas, munições, bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, meizinhas tradicionais, uma muda de roupa, etc.” 

Verdadeira canga, verdadeiro cangaço. 

Ao longo do tempo o bandido rural nômade em grupo do Sertão nordestino do final do século XIX até meados do século XX passou a ser o maior portador dessa parafernália, exigência do seu mister, que lhe obrigava deslocamento permanente e muitas vezes abrupto, em qualquer hora do dia ou da noite.

E veio a ser conhecido como cangaceiro aquele que transporta cangaço, aquele que tem cangaço. 

Heitor Feitosa Macêdo, em “ORIGEM DA PALAVRA CANGAÇO”[2], nos diz que “Gustavo Barroso, estudioso incansável do cangaceirismo, foi responsável por arrematar a teoria mais aceita para explicar a origem da palavra cangaço. Segundo o referido autor, a terminologia ‘cangaço’ surgiu do hábito de os antigos bandoleiros se sobrecarregarem de armas, trazendo o bacamarte passado sobre os ombros, à feição de uma canga de jungir bois, por isso dizer que estes indivíduos andavam debaixo do cangaço, isto é, de uma canga metálica, feita de aço. Daí a expressão usada por Euclides, em ‘Os Sertões’, ao dizer que alguns indivíduos: ‘vinham debaixo do cangaço’”.

A hipótese de Cascudo, indiscutivelmente, em termos epistemológicos, é mais completa, verossímel. 

O transporte do cangaço, embora nomine o bandido rural nômade em grupo do sertão nordestino do final do século XIX até meados do século XX e seja uma de suas características, não é suficiente, por si só, para identifica-lo, vez que embora com outro nome os gaúchos da fronteira usavam também parafernália própria e semelhante: o peão das vacarias gaúcho usava, à cintura, faixa larga, negra, ou cinturão de bolsas, tipo guaiaca, adaptado para levar moedas, palhas e fumo e, mais tarde, cédulas, relógio e até pistola. Ainda à cintura, as inafastáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. E sempre à mão, a lança - de peleia ou de trabalho. 

Assim, também, o peão do pantanal. Ou o cawboy americano...

Outras características do cangaceiro, além dessa denominação tão peculiar, são: ser bandido rural, nômade, e viver em grupo no Sertão nordestino desde o final do século XIX até meados do século XX. Bandido, aqui, no sentido de ser inimigo do Estado, da ordem legal vigente, embora algumas vezes contasse com a simpatia de parcela da população nordestina sertaneja.

Quanto ao que seja “bandido”, não é outro o pensamento de Eric Hobsbawn logo no início de “BANDIDOS”[3]: “Assim, o banditismo desafia simultaneamente a ordem econômica, a social e a política, ao desafiar os que têm o poder, a lei e o controle dos recursos. Este é o significado histórico do banditismo nas sociedades com divisões de classe e Estados.”

O cangaceirismo aqui e de agora em diante, para distinguir a atividade cangaceira da parafernália que o cangaceiro portava, foi banditismo rural, mas nem todo banditismo rural foi cangaceirismo. Não apenas rural, termo amplo que engloba tudo quanto não litorâneo, ao qual se vinculam alguns historiadores por não conhecerem a realidade específica desta região, o Sertão, do Nordeste brasileiro. O cangaceirismo foi banditismo sertanejo de grupo.

Banditismo nordestino sertanejo de grupo – há bandidos nordestinos de grupo que não são sertanejos, e há bandidos sertanejos de grupo que não são nordestinos – o que rechaça, de pronto, todos quantos não situados naquele tempo específico que vai do final do século dezenove a meados do século vinte e todos quantos não situados naquele espaço específico do Sertão nordestino compreendido entre Bahia e Ceará, entrando pelo Piauí.

Existe, pois, um tempo específico: os bandidos de hoje não são cangaceiros por que, dentre outras, não andam com aquela parafernália já referida, típica do cangaceiro.

Lugar específico: os bandidos rurais, mesmo quando em grupo, de outras regiões não eram cangaceiros porque não atuavam no Sertão do Nordeste.

Aqui não é possível concordar com Câmara Cascudo[4]:

“O cangaceiro não é um elemento do Sertão. Não vem da seca, da justiça local, da mestiçagem, da educação, do uso das armas. Existe em todos os países e regiões mais diversas. Na inóspita Mauritânia e na alagada China, nas montanhas da Córsega e nos plainos de França, onde viveu e reinou Mandrin, em São Paulo com Dioguinho e em Portugal com o José do Telhado, nas cidades tentaculares e nas povoações minúsculas, repontam esses tipos de inadaptação, somas de todos os fatores, vértices para onde convergem as grandezas das taras, tendências, ineducações e impulsos.”

Cascudo confunde banditismo com cangaceirismo. Todo cangaceiro foi bandido, mas nem todo bandido foi cangaceiro. Toda orquídea é uma flor, mas nem toda flor é uma orquídea. Percebe-se, do texto, que Cascudo não leu seu Aristóteles...

Essa falta de precisão, muito encontrada nas ciências ditas sociais, nos leva a equívocos tais quais o de Gustavo Barroso em “À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ”[5], que parece ter inspirado o texto acima de Câmara Cascudo, tamanha sua semelhança:

“Em livro que publiquei há mais de quarenta anos disse: ‘Os bandidos não são produtos exclusivos das terras brasileiras do Nordeste. Em todos os povos, têm existido com denominações diversas. O jagunço não é criminoso por mero acidente do seu caráter; não é criminoso, as mais das vezes, por si próprio. Ele termina uma série de antecedentes os mais variados ou é um elo na seriação de causas as mais diversas.

Dentro dessas linhas gerais deve ser enquadrada historicamente a figura de um dos mais famosos cangaceiros do sertão cearense na segunda metade do Século XIX, o José Antônio do Fechado (...)”.

O título do Capítulo de Barroso é “O SENHOR FEUDAL DO FECHADO”. Não era nômade, não extorquia, não assaltava, não sequestrava... Não era cangaceiro, portanto, embora fosse bandido, andasse em grupo, e fosse sertanejo.

É algo basilar na Ciência entender que apreendemos a Realidade encontrando sua “essência”. Melhor: algo que integre a Realidade, como um epifenômeno social tal qual o Cangaceirismo, somente vai ser apreendido, conhecido, quando formos capazes de encontrar sua “essência”, ou seja, sua especificidade, sua singularidade. Sujeitamo-nos, pois, ao pleno domínio do ramo da Filosofia denominado Gnosiologia.

Para encontrarmos essa essência, característica, ou singularidade, precisamos distinguir para conhecermos. É como nos diz Pascal Ide, em seu “A ARTE DE PENSAR”[6]:

“Para definir é preciso dividir, distinguir. Com efeito, a definição é um conhecimento distinto do ser de uma coisa; ora, vimos que no ponto de partida, nosso conhecimento é confuso, e não distino. Como passar do confuso ao distinto a não ser distinguindo, ordenando esse confuso? Foi assim que Deus procedeu diante do caos primitivo (Gn 1, v. 2). Ele separa, distingue: a luz das trevas, a terra do céu, etc.”

Questões como essa me levaram a escrever o seguinte texto, que creio caber bem neste contexto:

“Em primeiro lugar tratar da questão do que seja ciência, principalmente no que diz respeito a seus enunciados, que para serem considerados verdadeiros, não podem ser refutados uma única vez;

Karl Popper afirma, em “CONJECTURAS E REFUTAÇÕES”[7], que se pode dizer, resumidamente, ser sua capacidade de ser testada que define o status científico de uma teoria.

Foi uma evolução significativa à teoria quase consensual, anterior, que a ciência se distingue da pseudociência pelo uso do método empírico, que decorre da observação ou experimentação[8].

Este não é o ambiente apropriado para uma discussão crítica acerca da posição de Popper em relação à indução. Basta recordar que ele retoma Hume[9], e sua crítica psicológica à indução, aprofunda essa crítica, em uma perspectiva lógica, e propõe o que passou a se chamar, no jargão acadêmico, de “falsificacionismo”.

Por outro lado, esses enunciados da ciência para se manterem verdadeiros, não podem ser refutados. Uma só afirmação que seja demonstrado, empírica ou matematicamente, como falsa, compromete a teoria. É o respeito à “lei das exclusões das contradições”[10].

Caso tal lei não seja seguida, chegaríamos à desarticulação completa da ciência[11].

Em segundo lugar mostrar somente há uma ciência, ou seja, a tentativa de considerar que as ciências ditas do espírito são ciências é falsa.

Em terceiro lugar mostrar que há uma ciência social que usa o método científico impropriamente dito como das ciências naturais e que parte do pressuposto de que fato social é igual a fato natural.

Iniciar, então, a partir dessas premissas e avançar afirmando que um olhar da sociologia acerca do cangaceirismo pode ser ofertado a partir de leis causais do quais ele seja conseqüência (dedução), como é o caso do marxismo ou darwinismo, aqui chamado olhar perspectivo externo, ou a partir da comparação da estrutura interna do fenômeno com outros fenômenos com os quais guarde semelhança estrutural induzindo (indução) uma lei geral.

Demonstrar que no segundo caso não há como propor uma lei geral, vez que não se conhece todos os casos e a semelhança existente é sempre forçada;

Ao contrário, ao se partir de uma lei geral é possível encontrar o que de geral há nos específico e propor que tal fenômeno irá se repetir, respeitado o específico, caso aconteçam as mesmas condições que suscitaram o seu surgimento.”

Mas prossigamos.

Outra especificidade importante para definir o cangaceirismo é sua circunstância histórica, constituída por elementos próprios do período que vai do final do século XIX para meados do século XX, quais sejam, dentre eles, mas não somente, o coronelismo, e o misticismo. 

Cangaceiros e coronéis nordestinos são indissociáveis e especificam o período no qual conviveram. Cangaceiros e Padre Cícero também o são. Mas seria bom acrescentar, aqui, também, os cantadores de viola, os repentistas, os cordelistas, enfim, os rapsodos que andavam pelas cidades, vilas, povoados, arruados, feiras, disseminando e aureolando os feitos dos cangaceiros, ajudando a construir, no imaginário do sertanejo, o paradigma dessa figura histórica.

Em relação aos Coronéis, Raymundo Faoro[12] faz uma interessante constatação que robustece a opinião antes apresentada acerca de que embora o banditismo rural não seja algo próprio do século XIX/XX, o cangaceirismo, que é um dos tipos desse fenômeno, deve ser definido a partir de suas características que o singularizam:

“O fenômeno coronelista não é novo. Nova será sua coloração estadualista e sua emancipação no agrarismo republicano, mais liberto das peias e das dependências econômicas do patrimonialismo centra do Império. O coronel recebe seu nome da Guarda Nacional[13], cujo chefe, do regimento municipal, investia-se daquele posto, devendo a nomeação recair sobre pessoa socialmente qualificada, em regra detentora de riqueza, à medida que se acentua o teor de classe da sociedade. Ao lado do coronel legalmente sagrado prosperou o ‘coronel tradicional’, também chefe político e também senhor dos meios capazes de sustentar o estilo de vida de sua posição.”

Mas precisamos estar atentos: não se pode confundir cangaceiro com jagunço nem pistoleiro.

Os cangaceiros não têm chefes que não sejam de sua própria categoria. Os jagunços subordinam-se a coronéis. O pistoleiro é solitário e trabalha eventualmente para um ou outro. É como nos assevera Frederico Pernambucano de Melo[14]:

“A segunda figura a ser estudada é a do cabra, também chamado por alguns de capanga ou jagunço, ainda que entre os três tipos haja diferenças que não devem ser ignoradas.

Cabra é o homem de armas que possui patrão ou chefe, desempenhando mandados tanto de ordem defensiva quanto ofensiva.”

Não somente banditismo brasileiro nordestino sertanejo de grupo existente entre o final do século XIX e meados do século XX cujos integrantes usam o cangaço - essa parafernália inseparável e característica, como o afirma Luís da Câmara Cascudo.

Mesmo aqui ainda é preciso distinguir para compreender: como disse Fenelon Almeida[15], “os volantes em tudo se pareciam com os cangaceiros.” Os jagunços também.

Ambos usavam a parafernália do cangaceiro. Todo cangaceiro a usava, mas nem todo aquele que a usava era cangaceiro. As volantes a usavam, eram nômades e atuavam com o aval do Estado; os jagunços a usavam, não eram nômades e submetiam-se aos coronéis.

O cangaceirismo pressupõe a perseguição pelo Governo e a insubmissão, além de outra característica: a existência do coiteiro.

Rangel Alves da Costa diz bem o que é “coiteiro”[16]:

“Coiteiro era o sertanejo que, mesmo não fazendo parte do bando cangaceiro propriamente dito, compartilhava do seu mundo e de sua existência. Exteriorizava os desejos e as ordens cangaceiras. Servia de elo entre a vida na caatinga e os seus arredores, incluindo pessoas e povoações. Sem o coiteiro, o cangaço não compartilhava do mundo exterior e ficava totalmente vulnerável aos ataques.

Coiteiro era o matuto chamado a colaborar com o cangaço. Nunca forçado, mas sempre disposto a cooperar. Era, a um só tempo, mensageiro, transportador de mantimentos, confidente, conhecedor e guardião de segredos de vida e de morte. Boca sempre fechada e ouvido sempre aberto, talvez fosse o seu lema. Mas nem todos, segundo dizem, cuidaram de seguir os ditames.

Coiteiro era aquele que, conhecedor de cada linha e cada canto da região catingueira, auxiliava nas estratégias de proteção cangaceira. Era o olho pelo arredor, era o cão farejando o inimigo. Logo dizia sobre a segurança do local escolhido para repouso ou alertava acerca dos perigos que estavam correndo.

Coiteiro era o bom amigo do bando que levava a carne fresca de bode, a linha e agulha para costura, o remédio e a porção, as armas e a munição, o dinheiro e outros objetos enviados ao bando; aquele que se esforçava ao máximo, e correndo todos os perigos, para que nada faltasse naquela estadia dos cangaceiros. E eram bem recompensados pelas providências tomadas. De vez em quando um anel dourado era colocado no dedo.

Coiteiro era aquele que servia o abrigo cangaceiro, o local de descanso e repouso, a moradia temporária do bando, o coito. Desse modo, tem-se então que coito era o local onde a cangaceirada se amoitava vindo de longe viagem e desejosa de algumas horas ou dias de descaso.

Assim, coito era o lugar escolhido pelo líder do bando para o merecido descanso, até que a necessidade fizesse levantar acampamento e seguir adiante. Tantas vezes numa correria no meio da noite ou a qualquer hora do dia que o vento inimigo soprasse pelos arredores.”

Entretanto todos os bandidos brasileiros nordestinos sertanejos nômades de grupo existentes entre o final do século XIX e meados do século XX, que usavam cangaço e coiteiros eram cangaceiros?

Sim. Tomando-se como paradigma os bandos de Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, sim. Estes no dizer de Maria Isaura Pereira de Queiroz[17] são “grupos de homens armados liderados por um chefe, que se mantinham errantes, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques, e não se ligando permanentemente a nenhum chefe político ou chefe de grande parentela.”

Ou seja: os cangaceiros viviam de assaltos e saques. Assaltos, para sintetizar, por que quem saqueia assalta. Não somente assaltos, porém. Extorsão também. E, às vezes, embora não comumente, alugando suas armas a algum Coronel. Concluindo, por fim: sobreviviam à custa do seu banditismo.

O que fizemos foi precisar essa noção acerca do cangaceiro, que também é a do senso comum.

Portanto temos: cangaceiros foram bandidos brasileiros nordestinos sertanejos nômades de grupo existentes entre o final do século XIX e meados do século XX, cujos integrantes usavam o cangaço, recebiam suporte dado por coiteiros, e viviam à custa de sua atividade criminosa.

Não podemos dizer que a estética cangaceira que surgiu com Lampião defina o cangaceiro. Antes do bando de Lampião e de sua estética já existiam bandos de cangaceiros, tais como aqueles chefiados por Sinhô Pereira e Antônio Silvino.

Assim é possível que o que realmente defina o cangaceirismo seja a presença de todos esses elementos e mais o momento histórico, o espaço de tempo que vai do final do século XIX a meados do século XX. 

Não por outra razão diz-se que com o advento do Estado Novo e a morte de Corisco extinguiu-se o cangaceirismo.

[1][1] “FLOR DE ROMANCES TRÁGICOS”; EDUFRN; Coleção Nordestina; 3ª edição; 1999; Natal. 

[2] JORNAL “ACONTECE”, Região do Cariri - De 30 de outubro a 10 de novembro de 2014, nº 53.

[3] PAZ E TERRA; 4ª edição; 2010; São Paulo. 

[4] “VIAJANDO O SERTÃO”; Global; 4ª edição; 2009; São Paulo. 

[5] ABC Editora; 3ª edição; 2004; Rio de Janeiro. 

[6] Martins Fontes; 1ª edição; 1995; São Paulo.

[7] Pg. 66. 

[8] Pg. 64. 

[9] Pg. 72.

[10] Pg. 346/347. 

[11] Pg. 348. 

[12] “OS DONOS DO PODER”; Globo; 15ª edição; v. 2; 2000; São Paulo.

[13] Fator que distingue o coronelismo. 

[14] “GUERREIROS DO SOL”; A Girafa; 5ª edição; 2011; São Paulo.

[15] “JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO”; Guararapes; 1ª edição; 1981; Recife. 

[16] http://blograngel-sertao.blogspot.com.br/2013/08/coiteiro.html 

[17] “HISTÓRIA DO CANGAÇO”; Global; 1ª edição; 1986; São Paulo.

sábado, 9 de abril de 2016

ENQUANTO ESPERO...

* Honório de Medeiros


Minha amada gosta das cidades grandes, do bulício das ruas elegantes nas manhãs de sol pálido que não lhe agridam a pele muito branca, quando, então, se dedica às compras “virtuais” e compõe mentalmente, enquanto deambula, várias toilettes com as peças à mostra; gosta da rotina dos cafés ao entardecer que são promessas de noite e despedidas do dia, e das noites suavemente embaladas por uma discreta taça de vinho, à qual seguem, como um coroamento de um dia feliz, um dessert, e um sono tranqüilo, embalado pela confortante presença próxima e imaginária do seu ateliê, onde se dedica à requintada arte do scrap, no qual obras de arte feitas à mão disputam espaço com as marcas sutis de sua presença diária.

Já lhe ponderei, diversas vezes, acerca das maravilhosas manhãs na Serra, quando a neblina propõe, aos transeuntes, um véu opaco com o qual os envolve enquanto o silêncio, companheiro de possíveis caminhadas, somente é perturbado pelo ir-e-vir dos pássaros e o balançar dos ramos e galhos das árvores tangidas pelo vento matinal, e, também, acerca das tardes pungentes tão típicas e plenas de uma profusão de cores cambiantes que esmaecem lentamente anunciando a noite; depois, o imenso céu estrelado, límpido, misterioso, inigualável, do Sertão...

Eu lhe prometi um espaço somente seu, amplo, no qual cada laivo de sua imaginação criadora tenha a condição de se transformar em realidade, separado do chalé com o qual sonho por um caminho margeado pelas flores que ela tanto gosta e pelas árvores das quais sou tão próximo, onde poderia receber as pessoas que a procurassem lhes oferecendo um café feito na hora a ser servido nas delicadas e herdadas xícaras de motivos florais finamente estampados, acompanhado de biscoitos da terra, de gosto suave, que facilmente se dissolvem na boca, ou, quem sabe, nos frios dias de julho, de uma taça de chocolate quente enquanto a conversa fluísse animada.

Receio não lhe ter convencido, posto que o prosaico da vida sempre interfere nos sonhos de cada um: é a rotina do trabalho, a rotina dos filhos, a rotina dos compromissos que exigem nossa presença diária e nos impõem atividades que não gostamos, deveres que nos assoberbam, atenções que nos impedem de nos entregarmos plenamente à vida que passa tão rápida enquanto desperdiçamos nosso tempo a ranger os dentes de raiva pelo trânsito que não flui, a nos eriçarmos para o combate com nossos estressados semelhantes, a nos debater com a melancolia que nos assoma no final-do-dia pelo muito que é perdido quando constatamos que nada mais somos que apenas outra peça da engrenagem.

Quantos de nós, envelhecidos, eu observo enquanto me desloco no tempo e espaço: são tão poucos os que sorriem! Será que neles há o fastio do acúmulo das horas inúteis, a consciência do tempo perdido com coisas vãs? Será que esse balanço de final-de-vida, quase sempre negativo, é que lhes colocou nos rostos esse olhar vazio, tão distante? Será que essa entrega derradeira, o abandono da condição de controle do próprio destino, é que constitui o caldo de suas amarguras?

Como saber? Enquanto penso dou razão à minha amada e me conformo, mas não perco a esperança. Enquanto espero, e os dias rolam na minha vida como as contas de um terço rolam nas mãos daqueles que rezam, escapo para o último andar do prédio onde moro, prédio entre prédios, subo a escada que conduz ao topo, e lá, derramo meu olhar descontente por sobre a cidade febril e gulosamente sinto, sobre mim, o infinito do céu no qual os limites terrenos existentes são o vôo dos pássaros e de um ou outro avião.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

DE UM SILÊNCIO ATORDOANTE

* Honório de Medeiros                         
Eles chegaram em silêncio, cada um trazendo uma toalha na mão, estenderam-nas próximas uma da outra, na areia da praia, e começaram a colher o sol que chegava intenso e voluptuoso, por sobre cada nesga da carne juvenil que lhe era oferecida. Pois eles eram jovens, muito jovens. E, em certo momento, como se cumprindo um ritual, ainda em silêncio, beijaram-se longamente, agressivamente, parecendo quererem ocupar o mesmo lugar no espaço através da boca, não dos lábios, pois estes desapareceram na voragem mecânica da carícia trocada. Como começaram, terminaram. Nada disseram um para o outro. Afastaram-se cada um para seu espaço pessoal e se entregaram, talvez, a um devaneio que os isolava do instante há pouco vivido.

Não sendo carinho aquele beijo trocado tão mecanicamente poderia ser chamado de carícia? Talvez não. Talvez a carícia implique em uma anterior consciência de um momento erótico a ser construído até mesmo com certo vagar, que não afastaria uma comparação audaciosa com o cuidado que se cultiva na elaboração da obra de arte. Não por outro motivo diz-se que o autor, ao examinar com o tato a obra de arte, na realidade está acariciando-a. Na carícia as mãos, o próprio corpo, constroem arabescos ou bordados sutis que prometem mais pelo que insinuam do que, propriamente, pelo contato em si. A pele, de quem recebe, retesa-se na espera de algo que talvez não venha, ou se vier, vem parca, contida, para que a sede ou a fome aumente cada vez mais em uma espiral ilimitada.

Ali, naquele momento em que os corpos dos dois adolescentes se conectaram através das bocas, seria difícil dizer o que houve. Não foi carinho – o toque amoroso despido de erotismo; não foi carícia – toque apaixonado carregado de sensualidade; que teria sido? Talvez o cumprimento de um ritual ao qual se adere por pura falta de imaginação ou desconhecimento. Como não sabem, e não sabem que não sabem, como construirão a arte da entrega física? Talvez, apenas, instintivamente, reproduzam um ancestral propósito que seus genes possuam, na ânsia de reproduzirem-se utilizando os corpos como instrumentos. Talvez, apenas, reproduzam mimeticamente uma cena vista em outros lugares, construída por atores sociais desconhecidos.

E como vieram saíram, ainda em silêncio, quando o sol os expulsou. Falaram-se, óbvio. Nada que louvasse o relacionamento que os unia. Nada que rendesse homenagens á beleza daquela luminosidade ímpar que escandia o mar e a areia. Nada que trouxesse o dia como pauta de uma conversa preguiçosa, coloquial, á toa. Tudo quanto houve, lá, entre ambos, foi um silêncio atordoante... 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O CONHECIMENTO É UMA RUPTURA

* Honório de Medeiros

 "Comunicação é algo que violenta". Deleuze. Mas a comunicação é o veículo. É preciso que haja a fragmentação do conhecido para ser superada a impassibilidade do status quo no indivíduo. Caso contrário não há comunicação possível. Antigamente diziam "desconstrução". Sem essa fragmentação, surge o campo fértil das neuroses, as condutas obsessivas. Ivan Maciel dizia, nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito: "animal tem comportamento; homens têm conduta". Certo. Ou seja, sob as ruínas do conhecimento anterior surge uma nova percepção das coisas e fenômenos. Nesse sentido o conhecimento é sempre uma ruptura. "A reforma de uma ilusão, como disse Bachelard".

segunda-feira, 28 de março de 2016

CERTO OU ERRADO, ESSE É O MEU CAMINHO

"Não tenho ideologia. Não ter ideologia não significa ter uma ideologia. Isso é lenda. Definições totalizantes são equívocos lógicos. Também não tenho credo político. Tampouco qualquer simpatia partidária. O tempo me curou de tudo isso. Entretanto sigo firmemente um princípio: sou contra o Poder Político, qualquer que seja ele. Há Poder Político? Sou contra. Pois sou irremediavelmente cético. É claro que percebo não ser possível viver sem qualquer convivência com algum tipo de Poder Político. Sei que é impossível não precisarmos fazer alianças táticas para que o ex-adverso do Poder Político, a liberdade, avance. Faço, pois, constrangido, mas faço. E, nesse percurso do embate, vou analisando ponto-a-ponto cada questão que a luta contra o Poder Político me coloca. Então decido. E ajo. Percebe-se, portanto, que não tenho líderes, gurus, muito menos simpatias individuais por quem exerce o Poder Político. A ninguém dou o direito de falar em meu nome. Eu falo por mim. Pois os homens têm pés-de-barro, inconsistentes e frágeis. Vou seguindo propostas práticas alicerçadas na história, que possam ser testadas. A prática pauta a verdade. Certo ou errado, esse é o meu caminho. E, no final, será minha anônima história" (Antônio Gomes, "Fragmentos").

domingo, 13 de março de 2016

DE UM ENCONTRO CASUAL E UM EVENTO COMUM

* Honório de Medeiros

“Um radialista”. Assim, secamente, Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse por mim não lhe dera atenção. Observava, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente, ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, pensava eu, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por pessoas diferentes, mas iguais quando em grupo. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade se arrastando em grupo, ou a sós, do nada para o nada. “De longe, todo mundo é normal”: terá sido Wilde, quem o disse? Não, foi Caetano.


Antônio Gomes, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro, mas seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. 

Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, como muitas outras, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extrai de bom, assim como não guardou o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não porque estivesse no centro da cidade, e não acompanhasse o enterro, mas, sim, porque estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão, muito embora sua roupa, dele não dissesse nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando um relógio que também era muito discreto.

“O senhor não é daqui.”

“Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” 

E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon, o cangaceiro, e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20 e da qual, com seu apoio logístico, Lampião partira para invadir Mossoró.

Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara na calçada aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral.

“Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Queria falar da viagem em si mesma. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para lhe dizer uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

“O cariri é verde, muito verde para ser Sertão”, comecei. “E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele momento.”

As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia curtíssima, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via desde há muito tempo, e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “criatura, você já está com muitos janeiros, né?”: “estou, mas você não fica atrás não, olhe as pelancas, não é, mulher?”

E depois dessa resposta, se virou para o lado e tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro, enquanto olhava aquele encontro bizarro: “vai, vai, que aqui é conversa de comadres”.

O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

Mestre Antônio riu do episódio das mulheres e depois comentou que, às vezes, dizia a seus amigos do Sul, quando se demorava a voltar, que ali, no Sertão, para quem soubesse ver, ouvir, e extrair as conclusões possíveis, não havia escola nem teatro iguais, e, finalizando, aludiu a um personagem de Agatha Christie, Miss Marple, insulada em uma pequena cidade inglesa, a resolver crimes Inglaterra afora a partir de sua peculiar psicologia aldeã, e à frase de Tolstoi “ninguém se torna universal sem escrever acerca de sua aldeia”, para encerrar nossa rápida e estranha conversa que lhe dava razão na justa medida em que, no coração de Cajazeiras, o teatro da vida nos permitira divagar, filosoficamente, acerca da condição humana, sem que fosse necessário nada mais além de um final-de-tarde, um encontro casual, e um evento comum.

sexta-feira, 11 de março de 2016

DE UMA QUIETA TENDÊNCIA A NEGAR O MUNDO

* Honório de Medeiros


Vila-Matas, em seu inigualável "Bartleby e Companhia", observou que Roberto Colasso, referindo-se a Robert Walser, o autor de "Jakob von Guntem", genial atraído pelo nada, e ao próprio Bartleby, o personagem símbolo dessa estranha pulsão, criação de Herman Melville, chama a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo."

Meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma.

Não inquieta, mas profundamente quieta era sua negação ao mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais.

Mas hoje percebo: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente placidez de sempre.

E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum. Como poderia, ele que sempre foi um sobrevivente?

Ou sabia muito e desdenhava, ou sabia muito e percebia que não valia a pena.

EU TE AMO



* Bárbara de Medeiros

Mais uma madrugada chegou e eu não consegui dormir por causa de uma velha amiga chamada ansiedade. Quando meu coração acelera a velocidades exorbitantes e minha cabeça gira, minha única escolha é me agarrar a um refúgio que guardo a sete chaves (e uma senha de dezessete dígitos) no fundo do meu computador, em que fotos, depoimentos e prints de conversas ajudam a me lembrar que, no fundo, no fundo, eu não sou odiada por todos que me conhecem.

(talvez pareça ridículo, mas quando eu não consigo dormir à noite o motivo normalmente é esse).

Hoje resolvi abrir uma conversa antiga com um dos melhores professores que já tive na vida – não citarei nomes porque ele sabe quem é. De todas as escolas em que já estudei, a dele foi a minha favorita, e o mais engraçado é que ele é a única coisa que eu sinto falta quando lembro dos momentos que passei lá. O resto, consigo reconhecer que “foi bom enquanto durou”, e a nostalgia não me consome e a saudade não me afoga quando penso.

Ele, ao contrário, é servido nas minhas lembranças numa bandeja de ouro com uma taça de melancolia, e a falta dele dói tanto que eu juro que sinto que falta um pedaço do meu coração.

Mas as lembranças escoam no tempo, e por mais que eu não duvide da importância que ele teve na minha vida (escolar e pessoal), não consigo lembrar grande parte dos momentos que compartilhamos. E é por isso que às três da manhã me encontro revirando as mensagens trocadas pelo Facebook há quase quatro anos (eu juro que parece que foi ontem).

Pra começar, ficou óbvio pra mim que grande parte do tempo eu, como a adolescente bipolar que era, perdi bastante tempo estando chateada com ele, provavelmente como uma forma de chamar atenção? Nossa turma foi a primeira que ele ensinou, e eu sei que o apego que eu tive por ele todas as outras meninas da sala também tiveram, e ele teve por todas nós. Mas seria exagero dizer que nós tinhamos uma conexão especial?

Minha mãe suspiraria e reviraria os olhos, lembrando-me que eu sempre tive um fetiche por professores. Por mais que ele tenha sido meu professor de história, pasmem! Eu nunca fui apaixonada por ele. Não era apaixonada por ele, como fui pelo seu antecessor e pelo seu sucessor e por tantos outros que me deram essa fama de platonicamente Lolita. Eu o amava.

Mas eu não o amava com suspiros apaixonados e sonhos acordados, com a ansiedade feliz e infantil de uma criança que imaginava ter encontrado seu príncipe encantado. Eu nunca pensei nele como um homem com quem eu poderia ter meu felizes-para-sempre, ou qualquer outra coisa que a gente imagine que é o amor e a base de um relacionamento quando se é adolescente.

Eu o amava com o fervor de uma menina encantada, apaixonada pela paixão com o qual ele ensinava nossa matéria favorita, com a habilidade que logo fez todas as quarenta meninas da sala amarem história. Eu o amava com uma preocupação lenta e constante: “Você está bem?”, “Você precisa de alguma coisa?”, “Posso te ajudar?”.

Eu o amava todas as vezes que pulava da cama ansiosa porque teríamos aula, todas as segundas e sextas, e era como se só nesses dias a vida fizesse sentido. Porque ele me entendia, me respeitava e me fascinava.

E eu não o amava como quem esperava algo dele ou de mim ou de nós, eu o amava pelo que ele representava pra mim, o mestre que não se achava nada, mas que dava tudo de si para que nós fossemos alguém.

Nós éramos o seu mundo e a realização de um sonho, e quando eu vi a decepção começar a corroer seu coração, tão jovem, tão cedo, foi como se estivesse me matando também.

Seria prepotência dizer que eu fui seu bote salva-vidas? Eu me senti assim. Eu fiz de tudo para que fosse assim.

E eu disse que o amava, todos os dias, com um abraço apertado, com um olhar encantado ou com as palavras mágicas, digitadas ou pronunciadas.

Por que é tão difícil dizê-las?

Por que é um tabu?

Porque esse homem foi importante para mim, e eu o amei, e não de uma forma sexual ou romântica, mas como uma evolução natural do processo de admiração que vivi.

Eu o amei como amo meu pai, minha mãe, meu irmão, a memória da minha avó e meus amigos mais queridos, e um monte de outros professores que vieram antes e depois dele.

E ele sabe disso.

Mas em algum momento, entre esses quatro anos que nos afastaram fisicamente um do outro, eu mudei.

E dizer “eu te amo” se tornou tão, tão difícil. Algo que a gente fala pros pais, pro irmão quando necessário, pros amigos após um momento de hesitação, pros avós porque eles precisam ouvir, e apenas raramente pra um interesse amoroso.

Nunca pra professores.

Mesmo que seja verdade, e que nosso coração esteja explodindo de amor por eles.

Porque não é apropriado.

E eu só tenho pena. Porque talvez se não houvesse o “o que ela quis dizer com isso?” e as pessoas dissessem tudo o que sentem e querem que seja dito, o mundo seria um lugar com mais amor e felicidade.

Esse texto é um desabafo longo demais, que talvez nunca seja a luz do dia, de uma menina que está prestes a completar dezoito anos e não sabe a última vez que falou que amava um professor.

Hoje, por escrito e sem citar nomes, eu gostaria de dizer.

Eu amo vocês. Muito obrigada por serem pessoas lindas, por dentro e por fora, que fazem acordar cedo valer a pena quando vejo aquele brilho de felicidade nos seus olhos, por estarem ensinando algo que gostam.

Eu amo você, primeiro professor de história que viu potencial em uma menina ignorada por todos ao seu redor.

Eu amo você, professor de inglês que hoje é amigo e que eu ainda estou descobrindo novos motivos para amar.

Eu amo você, professor de história-músico por quem eu nutri uma paixão platônica e que hoje é o fruto das minhas maiores risadas.

Eu amo você, professor de francês que deve ter sido minha alma gêmea em alguma vida passada.

Eu amo você, professora de matemática que sem sorrir na maior parte das aulas cavou um túnel em meu coração até encontrar seu lugar.

Eu amo você, professor de geografia que me ensinou mais do que eu posso colocar em papel. Sinto sua falta todos os dias.

Eu amo você, minha primeira professora de inglês. E sua morte não pode nunca tirar de mim a importância da sua vida na minha.

E eu amo você, meu último professor de história e minha última paixão platônica. Sua aula era uma peça de teatro da qual eu nunca conseguia tirar os olhos.

Espero um dia recuperar a coragem de dizer o que precisa ser dito, sem medo do que os outros pensam que eu quero obter com o que digo.

Nunca é nada demais, só uma consciência limpa e um coração um pouco menos pesado.

Porque sabe como é: tem horas que o amor transborda.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

HOJE ELA FAZ DEZOITO ANOS

Feliz aniversário, meu amor.
Que Deus lhe faça, sempre, a vida muito leve...




Menina e Moça

Está naquela idade inquieta e duvidosa, 
Que não é dia claro e é já o alvorecer; 
Entreaberto botão, entrefechada rosa, 
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

(...)

É que esta criatura, adorável, divina, 
Nem se pode explicar, nem se pode entender: 
Procura-se a mulher e encontra-se a menina, 
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher! 

Machado de Assis, em 'Falenas'

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

VAIDADE DAS VAIDADES, TUDO É VAIDADE

Os primeiros versos do Eclesiastes na Bíblia (Tradução Ecumênica), 1994, aprovada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, tradução do francês:

1. Palavras de Qohélet, filho de David,
rei de Jerusalém.

2. Vaidade das vaidades, diz Qohélet,
vaidade das vaidades, tudo é vaidade.

3. Que proveito tira o homem
de todos os trabalhos com que se
afadiga sob o sol?

4. Uma geração passa, outra vem,
e a terra permanece sempre.

5. O sol se levanta, o sol se põe,
procurando lugar de onde se erguerá
de novo.

6. O vento vai para o sul e vira para o norte,
gira, gira e vai embora,
sempre retoma o seu curso, o vento.

7. Os rios todos correm para o mar
e o mar nunca fica cheio;
para o lugar onde correm os rios,
para lá retornam.

8. Todas as palavras estão gastas,
não se consegue mais dizê-las;
o olho não se sacia do que vê,
o ouvido não se enche do que ouve.

9. O que foi é o que será,
o que se fez é o que se fará:
nada de novo sob o sol!

10. Se algo existe de que se possa dizer:
“Vede, isto é novo!”,
- já existe desde os séculos
que houve antes de nós (...)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O QUE FAZER DO SEU DIA?

"Recebeu como uma estocada sibilina a insidiosa sensação de derrota que o acompanhava havia muito tempo. Para que se levantar? O que podia fazer do seu dia? (...) A ausência de expectativas se tornava tão agressiva que decidiu, nesse instante, encará-la da melhor maneira que conhecia e da única forma que podia: de frente e lutando."
HEREGES, Leonardo Padura.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

COLHEITA

* François Silvestre

Colheita.
Do plantio da estrada /
Uma roupa no corpo,/ outra na mochila. /
O destino: / nenhum ou a liberdade. /
Dos melhores, a saudade./ Pois mortos.
Dos menores, / a tristeza. /
Das madrugadas, / as grades. /
E a mochila pronta / pra outra estrada. /
O colhido? / Esse tempo sujo. /
Se valeu a pena? / Pergunto ao poeta: /
Qual o tamanho da alma? / E ele responde:
Pequena.

http://blogs.portalnoar.com/francoissilvestre/

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O STF AVANÇA!

* Honório de Medeiros

A OAB criticou a decisão do STF de acabar com a farra dos recursos para manter os bandidos na rua. Sou advogado. Há tempos que a OAB não me representa. Essa posição é a defesa dos grandes escritórios de chicaneiros...

Evidentemente ao me referir em meu comentário acerca da OAB eu estava aludindo à atual, não aquela de Raymundo Faoro, por exemplo. No mais eu acredito que a repercussão da decisão do STF deixará bastante entusiasmados aqueles que, ao longo do tempo, viram a camada mais humilde da população ser levada às prisões enquanto o topo, defendido por chicaneiros que se aproveitavam dos mais de cinquenta recursos possíveis antes do trânsito em julgado, desfilava sua impunidade pelas ruas do País. Isso é o que importa.

"No tocante ao direito internacional, o ministro relator do caso, ministro Teori Zavascki, ao negar o Habeas Corpus (HC) 126292 na sessão desta quarta-feira (17), citou manifestação da ministra Ellen Gracie (aposentada) no julgamento do HC 85886, quando (esta) salientou que 'em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte'."

Ainda, como se lê em NOTICIÁRIO STF:

"O relator do caso, ministro Teori Zavascki, ressaltou em seu voto que, até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito. “Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”, afirmou.

Como exemplo, o ministro lembrou que a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória proferida por órgão colegiado. “A presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado”." 

Tamanho o descompasso do Brasil em relação ao resto do mundo, a privilegiar alguns poucos, que podem pagar excelentes advogados, em detrimento de muitos, a quem cabe ir para a cadeia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

DA DELAÇÃO PREMIADA

* Honório de Medeiros

Peço licença para discordar de quem faz críticas ao instituto da delação premiada.

E o faço afirmando, inicialmente, que assim como outros, também tenho receio do Estado.

É como se lê: do Estado. Se bem me lembro, não somente anarquistas concordam quanto a todo Estado ser de exceção, uns mais, outros menos.

Mas não sei bem como se pode afirmar que o instituto da delação premiada seja característico de Estados de exceção.

Sei ainda, por outro lado, posto que a lógica o imponha, que uma análise crítica de um instituto como esse não pode ser feita sob o prisma da reserva moral aos delatores. Não faz sentido.

Alguns afirmam que a delação deu azo a todo o tipo de barbárie na história da humanidade.

Acredito firmemente que não podemos confundir a delação privada com a delação premiada, da mesma forma que não podemos confundir assassinato com matar em estrito cumprimento do dever legal (como o fazem os soldados nas guerras).

Sabemos disso: não por outra razão muitos aceitam a delação premiada, desde que submetida ao aparato ideológico dos direitos fundamentais individuais. 

Ora, assim o é em relação a qualquer instituto do Estado. Qualquer aparato do Estado que não esteja submetido a limites é “espelho da retaliação, perseguição”, como se diz.

Parece óbvio que nada é mal em si mesmo. E qualquer instrumento, seja ideal ou concreto, pode ser manipulado de acordo com diferentes faces da Moral.

Não por outra razão, a mesma enxada que rasga a terra para a semeadura pode ser instrumento de morte.

Discordo, pois, de quem afirma ser contraditório confiar em um criminoso que se submeteu à delação premiada.

Na verdade o Estado não está aqui ou ali para confiar em quem quer que seja: seu objetivo é trabalhar as declarações do delator confrontando-as com informações das quais disponha, para alcançar o objetivo almejado.

Crer que o Estado aja a partir de filtros morais é puro romantismo, e à pergunta que alguns fazem, acerca de ser ou não plenamente aceitável uma pessoa sob juramento denunciar seus cúmplices, apresentar um relato verdadeiro e ser perdoado por seus delitos eu respondo: claro que o é!

Assim aconteceu na história recente da Itália, para combater a Máfia. Lá, o instituto da delação premiada impediu, até onde sabemos, que aquela organização criminosa assumisse, de vez, o controle do Estado.

Não aconteceu o mesmo na Colômbia, em relação às FARC?

Não é isso que pretende fazer a Polícia do Rio de Janeiro para erradicar os soldados que o tráfico infiltrou e infiltra em suas fileiras?

Em relação ao suposto delator sociopata, hipótese com a qual alguns lidam para condenar o instituto, não posso concordar com sua plausibilidade.

Ora, os depoimentos dos delatores não são verdades com as quais irão lidar ingênuos, inocentes policiais ou promotores, em somente uma etapa de um processo criminal.

Qualquer declaração de alguém em uma investigação é avaliada a partir de tudo quanto compõe o problema com o qual a Polícia e o MP estão lidando. Chamam a isso de “contexto”. Isso é óbvio.

Quanto ao mais, principalmente no que diz respeito aos comentários críticos feitos pelos que afirmam que nos faltam “freios morais”, lamento, mas também vou discordar.

Como não sei quem há de me impor “freios morais”, e não nasci com eles, assim como ninguém nasceu, prefiro os “freios legais”.

Nunca é demais lembrar que os Estados nos quais há um melhor índice de desenvolvimento humano, nos moldes pensados por Amartya Sen, são aqueles em que as leis são, tanto quanto possível, respeitadas.

Assim e correndo o agradável risco de me ter colocado enquanto contraponto a amigos queridos deixo claro que sou a favor do instituto da delação premiada.

E torço para que esse instituto possa ajudar no combate à corrupção metastática que infesta o Estado brasileiro, seja no Executivo, seja no Legislativo, seja no Judiciário.