sábado, 22 de março de 2014

A FOLHA MORTA E O RIACHO



* Honório de Medeiros

A FOLHA MORTA DA QUIXABEIRA E O RIACHO

Às margens do pequeno riacho, sentado e com as costas repousando no espaldar inclinado de uma grande pedra, gozando a sombra de uma quixabeira, o adolescente, absorto, observava o revolutear de uma folha seca em suas águas.

A água fazia a folha ir e vir, às vezes afundar para reaparecer uma pouco mais à frente, acalmar-se e, pouco depois, irromper velozmente contra as pedras que afloravam ante seu percurso, numa sarabanda caótica de recuos e avanços que, mesmo assim, levavam-na riacho abaixo, para seu destino final.

O adolescente, esgotado por uma longa caminhada que o levou até o riacho, devaneava. No devaneio imaginou que aquela água era como a vida, e a folha, ele. Foi uma fugaz imagem, essa, instantânea. Mas ficou encravada em sua memória para sempre.

Algum tempo depois, já universitário, entre uma aula e outra se deitou com dois amigos de infância à sombra do telhado de um depósito que ficava ao lado de um dos auditórios da Universidade. Estavam começando uma nova fase da vida. Cada um dos amigos expôs o que imaginava ser seu próprio futuro, a partir do curso que estava fazendo. Cismavam, todos. Quando chegou sua vez de falar, antes mesmo de expor seu pensamento, se lembrou repentinamente daquele instante vivido alguns anos antes, às margens do riacho.

Na medida em que relembrava o episódio, contando-o, acrescentava detalhes não ao fato em si, mas à interpretação. Pensava o fato e o interpretava. Agora já não era apenas uma comparação entre sua vida e aquela folha seca que revoluteou nas águas do riacho. Era isso e algo mais: a folha seca, embora tivesse um revolutear caótico, não iria além das margens do riacho, e, caso superasse os obstáculos com os quais se deparava, desaguaria no rio que aguardava suas águas, mas, quem sabe, poderia prosseguir até cada vez mais longe, para destino ignorado.

Ao longo dos anos esse episódio passou a ser como que uma chave simbólica, cada vez mais complexa, para abrir a porta que conduzia à sua metafísica pessoal. Essa metafísica, esse discurso racional de si para si lhe permitia tentar compreender, na medida do possível, como era a realidade, tudo que o cercava e envolvia, incluindo ele mesmo.

A folha era ele; a realidade, a água...

O MESTRE E MARGARIDA

Em uma avaliação muito pessoal considero que os dois maiores romances escritos no século XX foram “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, e “O Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgakov.

Li “O Mestre e Margarida” adolescente. Estávamos em plena ditadura e Aluísio Alves, líder político norte-rio-grandense cassado pelos militares montou uma editora para sobreviver. Dentre os livros lançados por sua editora estava a grande obra de Bulgakov, que ele ofereceu a uma tia minha sua seguidora em cujo entorno se reunia a fina flor da intelectualidade oposicionista e provinciana de minha cidade natal.

A primeira leitura registrou e apreciou a insólita trama, o roteiro absurdo, a parte epidérmica da alegoria do grande escritor ucraniano. A segunda nada acrescentou, exceto mais prazer. A terceira, entretanto, deixou marcas profundas em meu espírito de leitor agora engajadamente crítico, principalmente quando as comparo com “Cem Anos de Solidão” e, em ambas, suponho encontrar o fundamento básico do que se convencionou denominar, nos círculos acadêmicos, de “realismo fantástico”.

Mas não é disso que se quer tratar aqui.

Em certo momento inicial de “O Mestre e Margarida” aquele que vai ser a chave da trama, o desconhecido que se intrometeu na conversa entre Ivan Nikolaievitch e Mikhail Alexsándrovitch Berlioz, e que se apresentou com o nome de Woland, mas que na verdade era Satanás, após ouvir de ambos que eles não acreditavam em Deus, lhes diz o seguinte:

“- Também acho uma pena – confirmou o desconhecido com um olhar cintilante, e prosseguiu: - Mas eis a questão que me preocupa: se não há Deus, então pergunta-se, quem administra a vida humana e, em geral, toda a ordem na terra?”

“- O próprio ser humano – o enfurecido Ivan apressou-se em responder essa questão admitidamente não muito clara.”

“- Perdão – replicou docilmente o desconhecido -, mas para governar, queira ou não queira, é necessário possuir um plano preciso com alguns prazos estabelecidos, nem que seja o mínimo. Permita-me perguntar: como é que pode o ser humano governar, se não apenas não tem condições de fazer qualquer plano, mesmo que seja com um prazo ridiculamente curto de, digamos, mil anos, como também é incapaz de garantir sequer seu dia de amanhã? E realmente – o desconhecido virou-se para Berlioz – imagine, por exemplo, que o senhor comece a governar, dispondo de sua vida e da vida de outras pessoas, e então passe a tomar gosto pela coisa, e de repente o senhor... hum... hum... descobre que está com câncer de pulmão... – o estrangeiro sorriu docemente, parecia que a idéia do câncer lhe dava prazer -, é, câncer – repetiu a palavra sonora e apertou os olhos feito um gato -, pronto, seu governo chegou ao fim! Não lhe interessa o destino de mais ninguém, somente o seu.”

“Os parentes começam a mentir para o senhor. Pressentindo algo errado, o senhor recorre a médicos formados, depois a charlatães e até mesmo videntes. Assim como o primeiro e o segundo, o terceiro não ajuda em nada. Tudo termina tragicamente: aquele que, ainda há pouco, acreditava administrar algo de repente se vê imóvel em um caixão de madeira, e as pessoas que o cercam, compreendendo que não mais nenhuma utilidade naquele que está deitado, o queimam no forno. E existem casos piores: o sujeito pode decidir ir a Kislovôdsk, o estrangeiro olhou para Berlioz com os olhos apertados, uma coisinha de nada, pode-se pensar, mas nem isso ele consegue realizar, assim como não sabe por que ele de repente resolve escorregar e vai parar debaixo do bonde! Será que o senhor dirá que foi ele quem planejou isso para si mesmo? Não seria mais razoável pensar que ele foi governado por alguém? E aqui o desconhecido desatou a soltar estranhas gargalhadas.”

Como sabem os que leram o romance, Berlioz, de fato, escorregou e foi parar debaixo do bonde e teve a cabeça decepada – e esse foi o ponto-de-partida de toda a confusão instalada por Satanás na Moscou da primeira metade do século XX.

Caso se leve em consideração aquilo que Satanás diz, o revolutear caótico da folha seca nas águas do riacho é resultado do planejamento de algo ou alguém que lhe é incompreensivelmente superior. Não seria estranho supor que se trata, ali, da concepção de que nossas vidas obedecem, no geral, a desígnios sobrenaturais além de nossa capacidade de compreendê-los, muito embora mantenhamos uma possibilidade de atuação livre, nos limites desse plano.

Os limites da folha seca são as margens do riacho.

Essa, a grosso modo, é a doutrina de Santo Agostinho, que com matizes diferentes em cada época, ainda constitui o cerne do pensamento oficial da Igreja Católica.

O fluxo no qual nós nos movemos, ou seja, as águas do riacho, essa teoria podemos rastrear até Heráclito de Éfeso. Podemos encontra-la no pensamento oriental – basta ler Sidarta, de Herman Hess. Mas também é, por incrível que possa parecer, guardando os limites óbvios, o núcleo da filosofia marxista, de forte influência hegeliana. Hegel, como sabemos, bebeu exageradamente na fonte heraclitiana.

Assim temos: no primeiro caso, Deus; no segundo, a eterna realidade em fluxo; no terceiro, a luta de classes como motor da história, no âmbito da qual se desenrolam nossas vãs tentativas individuais de extrapolar os limites do determinismo.

Arte: oloboeocordeiro.wordpress.com

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