quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

DESTINO: APENAS FAGULHAS NA NEBLINA

 

Barreira de Névoa | Ilustração: Tianhua X

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade" (A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi).

Esse pequeno trecho de uma das mais expressivas novelas do grande escritor russo nos mostra como o homem e suas relações são os mesmos, malgrado o tempo e a distância.

Aqueles momentos nos quais o homem parece romper com seu destino comum são fagulhas, e elas logo desaparecem na névoa da rotina.

Como se fôssemos livres para nadar no rio, desde que dele não saíssemos, e sempre terminássemos no mar.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JUSTIÇA E DIREITO: JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.” 

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.” 

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.” 

“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas”. 

“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens.” 

“Qual a decisão de vocês?” 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em Subliminar, Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.” 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de Retórica, aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em A Nova Retórica. 

A partir do que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela Sociologia e Antropologia a partir da Teoria da Seleção Natural: 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.” 

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.” 

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.” 

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, a "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, autor de The Ruling Class, a Teoria da Classe Política, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

CANGAÇO: A HISTÓRIA DO CANGAÇO, SUAS VERDADES E MITOS

 


Com a mediação do Professor Gilberto Cardoso, e para minha alegria, ao lado de Epitácio de Andrade Filho e Kydelmir Dantas, o que muito me honra, estaremos debatendo, a partir das 19 horas, a história do cangaço, suas verdades e mitos, no canal facebook.com/gcarsantos.

Aguardo vocês.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: PAU DOS FERROS ONTEM E HOJE

 

Fonte: Wikipedia

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com). Originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte de nº 97.

Quando os europeus chegaram ao Rio Grande do Norte, lá por 1500, encontraram a grande nação tupi-guarani no litoral, representada pelos Potiguares, e, no Sertão, os Cariris, que significa “os tristonhos, calados, silenciosos”[1], ramo do povo Tapuia. 

Diz uma lenda recolhida por missionários, conta-nos Tarcísio Medeiros, terem os Tapuias vindos de um lago encantado do setentrião continental, como sugeriu Capistrano de Abreu, descendo a costa e fixando-se no interior depois de acossados pelos tupis. 

Os Tapuia/Cariris estiveram em evidência durante a “guerra dos bárbaros”, iniciada com a resistência à penetração da pecuária que se adensara nas ribeiras dos rios, áreas essenciais à sobrevivência dos animais, mas também à dos índios, durou sessenta e cinco anos (1685-1750), terminando com a completa vitória do homem branco, que os extinguiu[2]

No Sertão nordestino, especificamente no Sertão potiguar, existiram vários ramos dos Cariris, dentre eles os Pacajus ou Paiacus, que habitaram Portalegre, Francisco Dantas, Viçosa, Riacho da Cruz e Encanto, assim como os Panatis, habitantes de Pau dos Ferros, Encanto, Dr. Severiano, São Miguel e Rafael Fernandes[3]

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas, missionários, senhores de engenho de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio Grande, além de oficiais de alta patente que combateram os indígenas passaram a disputar as terras do Sertão norte-rio-grandense. Denise Matos Monteiro[4] nos relata uma dessas disputas entre grandes senhores de terras e escravos de Pernambuco e Bahia e colonos potiguares: 

“Dentre os sesmeiros de outras capitanias interessados nas terras do Rio Grande, estava, por exemplo, Antônio da Rocha Pita, da Bahia, que através de quarenta dos seus vaqueiros tentou expulsar da ribeira do Assú colonos que lá procuravam estabelecer fazendas de gado. Objetivando atender às reclamações desses colonos, o rei de Portugal mandou demarcar e medir as terras desses sesmeiros em 1701. Anos mais tarde, em 1733, seus descendentes receberam uma larga faixa de terra que se estendia, dessa vez, entre os atuais municípios de Pau dos Ferros e São Miguel, na ribeira do Apodi[5]”. 

É certo que a primeira sesmaria que se tem conhecimento, alusiva à região, foi requerida por Manoel Negrão em 1717, e dizia respeito ao lugar denominado “Podi dos Encantos”, presumindo-se que se trate da Data da Conceição[6]. Negrão declarava ser morador da ribeira do Apodi e ter descoberto o terreno em companhia de Domingos Borges de Abreu. 

Mas foi somente em 1733 que a Data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi concedida a Luiz da Rocha Pita Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita, Dona Maria Joana Pita, todos filhos e herdeiros do Coronel Antônio da Rocha Pita. Como lembra Câmara Cascudo, os “Rocha Pita” eram baianos e foram grandes latifundiários no Rio Grande do Norte. 

Manoel Jácome de Lima observa: Diz Ferreira Nobre que em 1733 Francisco Marçal fundou uma fazenda de gado no local em que se achava a vila. Em 1738, afirma o Monsenhor Francisco Severiano no seu livro 'A Diocese na Paraíba', foi iniciada a construção de uma capela que em 1756 foi elevada à categoria de matriz com a criação da freguesia, a 19 de dezembro daquele ano.” Começava Pau dos Ferros. 

A paróquia de Pau dos Ferros é a mais antiga da zona Oeste do Estado e, na época, abrangia quase todo o território da atual Diocese de Mossoró. 

O nome da cidade surgiu quando do início do seu povoamento. José Edmilson de Holanda[7] assevera ter o nome da Fazenda de Francisco Marçal, fundada próxima a uma pequena lagoa, onde existia uma frondosa oiticica, passado ao povoado: 

“O nome inicial da fazenda passou ao povoado, pois desde a sua fundação era conhecida por Pau dos Ferros, em face dos vaqueiros gravarem, à ponta da faca, no tronco de frondosa oiticica existente à margem da lagoa, os ferros das reses tresmalhadas que por lá apareciam, com a finalidade de identificar o proprietário e a origem das mesmas. A oiticica servia de pouso para os comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas que por lá passavam.” 

Em 1761 o município de Portalegre foi criado englobando o povoado de Pau dos Ferros. Entretanto já no fim do século XVIII a povoação era maior que sua sede e a cidade de Apodi. 

Em julho de 1841 os pau-ferrenses fizeram uma representação à Assembleia Provincial, assinada por 492 pessoas de todas as classes sociais, pedindo a criação do município. A Comissão de Estatística e Justiça, em parecer assinado por João Valentim Dantas Pinagé e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque, foi favorável ao pleito, mas na sessão do dia 4 de novembro de 1841, o requerimento não foi aprovado. 

Em 1847 o deputado provincial João Inácio de Loiola Barros apresentou um projeto transferindo a sede da Vila de Portalegre para a povoação de Pau dos Ferros, pedido também rejeitado. 

Seis anos depois, em 12 de abril de 1853, os deputados Luiz Gonzaga de Brito Guerra, futuro Barão de Assú, e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque (novamente), apresentaram um projeto para elevar a povoação de Pau dos Ferros ao status de Vila, com a denominação de Vila Cristina, mas não lograram êxito. 

Finalmente em 23 de agosto de 1856 projeto apresentado pelo Deputado Benvenuto Vicente Fialho, criando o município de Pau dos Ferros, foi aprovado. E em 4 de setembro de 1856 o Presidente da Província, Dr. Antônio Bernardo Passos, sancionou a Lei nº 344, elevando à categoria de Vila o povoado de Pau dos Ferros, e determinando os limites do novo município. 

Hoje Pau dos Ferros, com 259,959 km², limitando-se ao Norte com São Francisco do Oeste e Francisco Dantas, ao Sul, com Rafael Fernandes e Marcelino Vieira, ao Leste, com Serrinha dos Pintos, Antônio Martins e Francisco Dantas, e ao Oeste com Encanto e Ereré (CE), é uma cidade com mais de 30.000 habitantes fixos, segundo dados do IBGE/2017, muito embora nela circulem, em decorrência de sua posição de polo regional, cerca de cinquenta mil pessoas por dia. 

Cidade pujante, centro comercial e administrativo da região, centraliza a prestação dos serviços estaduais e federais, e sedia a Escola de Enfermagem Catarina de Siena, a Faculdade do Oeste do Rio Grande do Norte, a Faculdade Evolução do Alto Oeste Potiguar, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Anhanguera Educacional, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 

Ressalte-se, do ponto de vista cultural, a importância de sua Feira Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar (FINECAP), realizada anualmente e congregando toda a região. 

Não por outra razão, a cidade também é conhecida como “Capital do Alto Oeste” e “Princesinha do Oeste”, embora muitos a chamem de “Terra dos Vaqueiros”, ou, ainda, “Terra da Imaculada Conceição”, em homenagem a sua santa padroeira. 

Em 12 de abril de 2018.

[1] MEDEIROS, Tarcísio; “Proto-História do Rio Grande do Norte”; Rio de Janeiro: Presença Edições; Fundação José Augusto; 1985.

[2] LOPES, Fátima Martins: “Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte"; Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; 2003. 

[3] MEDEIROS FILHO, Olavo; “Índios do Açu e Seridó”; Natal: Sebo Vermelho; 2011. 

[4] MONTEIRO, Denise Mattos; “Introdução à História do Rio Grande do Norte”; Natal: Flor do Sal; 4ª edição; 2015. 

[5] Pág. 59.

[6] LIMA, Manoel Jácome de; in “Revista Comemorativa do Bicentenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros (1756-1856-1956)"; Natal: Sebo Vermelho; Edição Fac-similar; 2015. 

[7] HOLANDA, José Edmilson de; “Pau dos Ferros: Crônicas, Fatos e Pessoas”; Natal: Gráfica Vital; 2011.

domingo, 13 de dezembro de 2020

SOLIDÃO: UMA SOLIDÃO CERCADA DE AMIGOS

 

Imagem: Honório de Medeiros ("Pássaro solitário sobre o Tejo")

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Ariclê suicidou-se, tempos atrás. Mas quem foi Ariclê? 

Uma atriz global. Suave, delicada, simpática. E solitária. 

Antes de morrer estava fazendo o papel de mãe de JK, no seriado homônimo. Terminou sua participação e saltou do décimo andar do prédio onde morava, mergulhando para a morte. 

Não é somente por ter sido atriz que sua morte chamou a minha atenção. Nada disso. 

O que chamou a atenção é que todos quantos foram a seu sepultamento eram seus amigos, muito embora ela fosse uma pessoa solitária. Morava sozinha, e segundo o relato do porteiro do prédio – ah, os porteiros de nossos prédios, testemunhas silenciosas e onipresentes das nossas vidas – quase não recebia visitas. 

Todos os amigos cobriram Ariclê de elogios. Não podia ser diferente. É da nossa tradição elogiar os mortos. E todos realçavam os laços de amizade existentes entre eles e até contavam, aqui e ali, algum fato vivido juntos. 

Nada diferente de velórios em outros mundos afora. Mas não frequentavam o seu apartamento, esses amigos. Não invadiam sua cozinha, bisbilhotavam sua biblioteca, usavam seu banheiro, deitavam-se em seu sofá. 

Ali estava um ambiente íntimo cheio de ausências. 

Ariclê era uma pessoa solitária... Quase posso imaginar sua solidão tão comum em cidade grande. Conhece ela muitas pessoas, é conhecida e respeitada por muitas outras, trata-as por amigo, ou amiga, recebe o mesmo tratamento, mas com certeza não telefona para qualquer um deles para convidá-los a partilhar uma taça de vinho e um pouco de dor nas madrugadas melancólicas. 

Não é possível fazer isso porque o incômodo causado é muito grande. Transtorna a vida das pessoas. Atrapalha suas rotinas. E elas também têm lá seus problemas, não estão dispostas a emprestarem seus ouvidos para ouvirem o que não conseguem resolver em si mesmas. 

Antigamente as pessoas colocavam as cadeiras nas calçadas e contavam estórias, relatavam histórias, riam, faziam rir, e se solidarizavam umas com as outras. Mas isso faz muito tempo. Hoje não é mais possível, há a violência urbana, a televisão manieta, o celular aprisiona, as portas e janelas estão todas fechadas. 

Enclausurando-nos, estamos nos fechando para o mundo e para os outros. Nossa convivência passa a ser virtual. Podemos até almoçar juntos com um grande amigo, vez ou outra, mas quando a noite chega, no cotidiano, é cada um por si e Deus por todos. 

Não por outra razão estamos cada vez mais sozinhos. Embora possamos até mesmo estar acompanhados. Porque não nos dispomos a ser solidários, a estabelecermos pontes sólidas em direção ao outro. Pontes construídas com o cimento do sacrifício, da empatia, da história comum. 

Não por outra razão, quem sabe, Ariclê morreu. Para quem ela ligaria, no final de uma noite qualquer, de um dia qualquer, para dizer “venha, estou triste, preciso de você?”

Ariclê Perez


sábado, 12 de dezembro de 2020

MONTAIGNE E A POLÍTICA

By Gary Brown, in fineartamerica.com

* Franklin Jorge

Pensador e humanista, Michel de Montaigne escreve para o bem público. Fundador de uma tradição, concebe, exemplarmente, o ato de escrever como uma magistratura.

leitor@navegos.com.br

É possível que, quatro séculos depois, ao afirmar que um grande escritor é como um príncipe, Thomas Mann estivesse pensando no autor dos Ensaios. Levam ambos – o francês clássico e o moderno clássico de língua alemã – uma existência representativa, à maneira dos príncipes, e, como escritores, seus eventuais erros e equívocos teriam mais consequências negativas do que aqueles cometidos pelos políticos.

Poucos escritores, antes ou depois, encarnaram tão perfeitamente esse conceito manniano, que exalta e resume toda uma concepção ontológica do exercício intelectual.

Magistrado cioso do seu dever, assessor dignissumus do rei –sempre moderado e dependente da razão – alerta-o Montaigne, sem temer cair no desagrado real, quanto convém a um governante visitar e acatar os cidadãos em proveito dos negócios do Estado. É Montaigne, neste sentido, o anti-Maquiavel.

Conselheiro de Estado e, por algum tempo, prefeito de Bordeaux, a política, como um serviço prestado à Nação, mereceu dele, Montaigne, a mais alta e sensata consideração baseada no bom senso e na observação dos costumes.

Ao contrário de Maquiavel, valoriza e defende os direitos individuais, movido por uma surpreendente mistura de tato e convicção, pois crê, sobretudo, que um homem que leu e assimilou experiência e reflexão é mais capaz de grandes feitos do que os outros…

Em um ponto, porém, concorda, ao menos, com Maquiavel, ao afirmar que o interesse público, às vezes, exige do governante que traia e mate e até massacre no interesse público -frise-se- não para a satisfação do interesse individual do governante, como Maquiavel aconselharia ao Príncipe.

Precursor e patrono oficioso do Iluminismo, parece dizer-nos Montaigne que os erros dos políticos sejam frutos não dos interesses, mas das convicções.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

MERITOCRACIA E PACTO SOCIAL: QUANDO TUDO VALE, NADA VALE.

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

O combate à meritocracia é uma das pontas-de-lança do relativismo moral.

O relativismo moral apregoa que os valores são relativos, ou seja, o que é certo para mim, pode não ser certo para você, o que é justo para você, pode não o ser para mim, e não há nada, absolutamente nada, que a ciência possa dizer quanto a isso que possa erradicar nossas diferenças.

Tirando a ciência, que descreve o que algo é, e quando o faz, revela algo que é uma verdade em si mesma, independe da opinião de cada um, tal como a lei da gravidade, ou a lei da entropia, sobra a religião, ou até mesmo a arte, e assim segue, quanto a tentativas de explicar a realidade que nos envolve. 

Mas, quanto ao que não é ciência, cada um tem a sua explicação, e acredita, é uma questão de crença, no que lhe der na telha, portanto a conclusão possível, segundo tais parâmetros, é que a moral é relativa, e, se assim o é, não existiriam valores aos quais devamos reverências definitivas. 

Se não existem valores, então não podemos falar em mérito, pois este pressupõe que sejamos capazes de avaliar os outros e reconhecer, neles, qualidades que mereçam respeito, elogio, e, claro, confiança, para lhes entregar, por exemplo, responsabilidades que não estão ao alcance dos que não foram avaliados com o mesmo reconhecimento. 

Se não é possível reconhecer o mérito, então todos estamos no mesmo barco, ninguém pode avaliar quem quer que seja, e, dessa forma, a conclusão óbvia é que desapareceria a civilização como a conhecemos. 

Uma outra possibilidade é a de que os valores existem sim, e estão por aí, no espaço e no tempo, e o certo, o errado, o bem, o mal, o justo, e o injusto, existem por si mesmos, como entidades fora-de-nós, bastando que as encontremos onde estiverem e os colhamos, qual frutas maduras, e os utilizemos. 

É essa hipótese derivada da filosofia de Platão, melhor dizendo, de sua “Teoria das Formas e das Ideias”, que os relativistas morais criticam, de forma oblíqua, e com razão, a grande maioria das vezes sem conhecerem seu fundamento, seus pressupostos teóricos. 

Isso porque os valores, tais quais imaginados por Platão, não são essências aguardando algum iluminado que os apreenda e os coloque a serviço da humanidade, a despeito de todos quantos se julgaram intermediários entre o céu e a terra. 

Não por outra razão Jesus calou quando Pilatos lhe perguntou: "o que é a verdade?". Pilatos lhe fizera uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, quanto à moral, somente acreditava no Poder pelo Poder. Se sua pergunta dissesse respeito à fé, Jesus teria lhe respondido: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", e o seu silêncio não perturbaria tanto os filósofos através do tempo. 

Se, entretanto, compreendermos que os valores são construções do homem ao longo do seu processo civilizatório, estratagemas adaptativos, estratégias de sobrevivência, a questão muda completamente de perspectiva. 

E a ciência nos dá razão por que, aqui, vamos estudar não o valor em si mesmo, mas as condutas que os criaram, sua finalidade, sua natureza. É o mundo da Sociologia, da Antropologia, uma ciência.

É científico conceber que em algum momento da história o Homem, a nossa espécie, teve um "insight" que lhe permitiu dar um passo à frente no processo evolutivo: descobriu a cooperação. Percebeu que podia até mesmo enfrentar seus predadores naturais, e os vencer, caso cooperassem entre si. Percebeu, trocando em miúdos, que a união faz a força. Naquele momento nasceu o que hoje chamamos de ““pacto social””. 

O “pacto social” constrói e impõe direitos e deveres, ou seja, valores, para que o grupo social, a Sociedade, possa sobreviver, avançar. Tal ideia foi um "meme", uma invenção do processo evolutivo, ou seja, uma construção humana, uma elaboração social, claro que sempre dependente de sua circunstância histórica.

Muito embora possamos rastrear a ideia de “pacto social” até Protágoras de Abdera, bastando, para tanto, ler o diálogo platônico homônimo, é de se considerar que sua melhor descrição, de forma alegórica, está em Leviatã, de Hobbes. 

“Homo homini lupus”, escreveu Thomas Hobbes, o primeiro dos grandes contratualistas. O homem é o lobo do homem, frase de Plauto, em Asinaria, textualmente: “Lupus est homo homini non homo”, que expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo “pacto social”. Em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie. 

Caso não aconteça o “pacto social”, “bellum omnium contra omnes”, guerra de todos contra todos, até a auto aniquilação no “Estado de Natureza”, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, disse-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de “contrato social” exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão. 

Essa noção, de “pacto” ou “contrato social”, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na Política, de Aristóteles (cap. III): “De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, ‘uma garantia mútua de direitos’, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer. 

E muito embora um estudioso “outsider” do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas, relatada no Críton, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker. 

Tudo isso significa que o conteúdo dos direitos e deveres pode variar no tempo e espaço, mas a noção da "forma", do "ambiente", do “continente” que os contém, não. Ou seja, a ideia de “pacto social” é onipresente, muito embora seu conteúdo possa mudar ao sabor das circunstâncias históricas.

É por essa razão que certas condutas anteriores ao tempo atual eram consideradas erradas, e hoje já não o são. Quanto à regulação, à existência de normas, do ambiente que as contém, de tal não se cogita: sempre existiram normas que regulassem a conduta humana. Repetindo: mudou o conteúdo, mas não mudou a forma.

Ainda: o que é certo e errado pode mudar no tempo e no espaço, ao sabor da volubilidade humana, mas a compreensão de que deve existir um conjunto de regras, que mesmo de forma difusa, que diga o que é certo e errado, em cada época, isso nunca mudou, por uma razão muito simples, tão bem apontada por Hobbes, qual seja a de que sem esse conjunto de regras, a civilização deixa de existir. 

Quando não temos um "norte" moral, jurídico, tudo vale, e se tudo vale, nada vale. 

Então, embora seja relativo o conteúdo da norma moral, a necessidade da existência de regras de conduta e jurídicas é uma verdade científica, um fenômeno sociológico, pelo menos no que diz respeito à realidade social conforme a conhecemos. 

É preciso que entendamos que a construção do conteúdo da norma moral é sempre resultante do entrechoque de ideias, interesses, crenças, poder etc., entre aqueles que integram a Sociedade. Mas ao contrário do que se supõe, o conflito social é fundamental para a elaboração da "Constituição" à qual nos apegamos para podermos sobreviver em Sociedade. 

Por fim, o discurso do relativismo moral é sabidamente ilógico. Argumentar contra os valores também é uma postura moral. Não há alternativa à existência dos valores. O que há, é a possibilidade de aperfeiçoamento desse instrumento social. É isso que estamos tentando fazer desde aquele remoto momento no qual o Homem se deu conta de que a cooperação permite sua sobrevivência. 

No final das contas, ninguém foge dos valores, seja contra ou a favor. Quem os critica, duvidando de sua existência, questionando sua eficácia, quer apenas mudar as regras do jogo para se beneficiar, ou favorecer aquilo que defende. 

Nada mais. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

AINDA HÁ BURACOS DE BALAS EM BARCELONA

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Nas madrugadas de Barcelona, as largas calçadas acomodam, em dezembro, o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados, bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impedem a passagem dos pedestres. 

Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses meios de transporte quando chega a noite, deixados ao léu. Ele ri e me fala de uma cadeira em ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, em Mossoró, nossa terra natal, condenada à prisão para não ser furtada tão logo o dono lhe dê as costas.

"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a polícia em Barcelona.

O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me desculpe, eu não assisto, não quero assistir".

"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um homem muito ruim, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. Stálin era muito ruim, repete, very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe, fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito vinho, falo muito minha língua, e durmo bastante". 

Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo em frente ao "Palau de la Musica Catalana", onde tantos famosos se apresentaram, e de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro com a história da Catalunha em espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em Catalão", e eu lhe disse que infelizmente não lia Catalão, mas acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história da Catalunha escrito em espanhol, acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.

É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo, fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela qual me apaixonei sem resistência. Foi uma verdadeira entrega, eu queria parar em cada obra de arte encontrada por seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que executava uma sonata barroca de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas que lhe cercava, até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e da igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos terríveis da guerra civil. Que diria François se estivesse ali? 

"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, está vendo as marcas das balas nas paredes, "claro", digo eu, "pois perceba, alguns buracos são muito altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos eram amigos ou parentes das vítimas". "Meu Deus", penso eu. 

Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso Conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em Montserrat", "é, eu sei", diz ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por Himmler, mas eles não encontraram nada".

"Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse isso muito tempo atrás". 

"Do que você gostou?", ela me perguntou, com aquele sotaque do interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos, pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição, nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da Catalunha com a Provença francesa..." 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

UMA CONVERSA SOBRE "CENAS NATALENSES"

 

Uma obra de arte!

Uma conversa sobre Cenas Natalenses

Gustavo Sobral é jornalista e escritor. Nasceu em Natal, onde vive e espia o mundo. Autor, dentre outros, de “História da Cidade do Natal”, agora aparece com “Cenas Natalenses” (Natal: 8 Editora/ Offset, 2020, 60p., R$ 25,00), seu novo livro, a venda na livraria Cooperativa Cultura (UFRN) e na Flora Cafeteria.

História, memória, literatura, jornalismo, crônica são os caminhos da sua escrita, em qual destas facetas se encontra o seu novo livro? Cenas Natalenses considero, como todos os meus trabalhos anteriores, um livro inclassificável, mas mesmo assim posso dizer que é um livro que, no mundo em que vivemos, o mundo imperativo da imagem, pretende ser uma coleção de pequenos e breves retratos da cidade em palavra e desenho. Um breve exercício de jornalismo visual, de ver e ouvir a cidade em movimento.

Qual o papel da ilustração neste seu novo trabalho? É uma forma de expressão. Para que descrever um edifício se posso rabisca-lo? Mas faço um traço apressado, sem retoques, e trago o desenho também a uma condição de protagonismo.

E como, quando e onde, e porque nasceu esta ideia de “rabiscar”? Sempre gostei dessa coisa de ilustração para livros e queria ilustrações para um livro meu, “Petrópolis”, mas não tinha quem fizesse, eu mesmo arrisquei e saiu. Ai, não deixei mais.

E porque estes lugares (a Fortaleza, o Farol, o Parque das Dunas, etc) e não outros? A sentença de Cascudo, que usei na epígrafe, me concedeu uma liberdade de escolha: “a cidade do Natal é uma perspectiva indefinida”. Fechei os olhos e pensei: que lugares da cidade caberiam numa cena? Procurei os cartões postais: Ponta Negra, a Fortaleza e o Farol; sai em busca do cotidiano, feira livre e o movimento na Praça do Relógio, a maternidade e o cemitério; e não podia deixar de falar da natureza, e fui em busca da flora do Parque das Dunas.

E que texto é este que você faz para o livro? Sempre procurei e busco uma escrita em voz alta, ou seja, aquela que preserve um tom de oralidade e um ritmo. Gosto quando as pessoas dizem: é como ouvir você falando! A forma é tão importante quanto é o conteúdo. É tudo uma parte do todo.

Um todo? O todo que nasce na proposta do livro passa pelo apelo visual e se transforma na junção de tudo isso em um projeto gráfico. Propus o desenho de todo livro, inclusive, a montagem, procurando uma fluidez na expressão do conteúdo e que o resultado fosse simples como aí está.

E por que escrever sobre Natal? Porque não sei ser de outro lugar. O escritor tem sempre uma forte ligação com a sua cidade, portanto, me volto para Natal nesta perspectiva meio quixotesca que Cascudo tratava por um provincianismo incurável.

Uma espécie de Dom Quixote tropical? Quem sabe?! (risos). A afirmação de Lygia Fagundes Teles para mim ainda é válida: há três espécies em extinção no Brasil: a árvore, o índio e o escritor.

E o que resta ao escritor, esta espécie em extinção, fazer? Escrever! Já dizia o poeta Ferreira Gullar a arte, a literatura, a poesia, tudo isso existe, porque a vida não basta. Escrever é a forma certa de não deixar tudo passar e basta.

VENDA

Flora Cafeteria, na Floricultura Flor de Algodão.

Av. Rodrigues Alves, 443 - A - Petrópolis.

Horário de funcionamento: segunda a sexta, 12h às 19h;

sábados 9h às 15h.

Telefone para contato (84) 2030-4090

Livraria Cooperativa Cultura, UFRN.

Horário de funcionamento: segunda a sexta, 9h às 16h.

Entrega pelo Delivery, telefone para contato e pedidos (84) 3211-9230

ou pelo WhatsApp (84)99864-1991.

Valor do livro R$ 25,00

Para ler este e outros inscritos, acesse: gustavosobral.com.br

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

LIVROS: OS LIVROS NOS ESCOLHEM

 

Jean Jacques Rousseau

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muito poucas foram as vezes em que entrei em uma livraria sabendo o que buscava. 

Ao contrário. A grande maioria delas entrei somente pelo prazer de entrar, de ver, de sentir o cheiro dos livros, de ouvir o murmúrio de outros apaixonados como eu, para quem eles foram, desde sempre, um grande amor. 

Difícil sair sem nada nas mãos. Invariavelmente – e isso é o que importa neste relato – fui buscado por algum ou alguns livros. 

Sim, porque são eles que nos escolhem. Eles amam quem os ama. Como poderia ser diferente se outra explicação não há para esse amor que surgiu quando minha mãe me colocava para dormir lendo estórias em quadrinhos do Pato Donald, enquanto nos balançava na rede, e, um dia, para sua surpresa, me pegou soletrando as sílabas? 

Os livros dos meus vizinhos, abandonados, valeram-se de mim para saírem de sua solidão – em minha casa sequer Bíblia existia. 

Os livros, eles nos escolhem, e da minha infância para a meninice, lá estavam: “O Mundo da Criança”; “O Tesouro da Juventude”; e, depois, logo depois, Julio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Edgar Rice Burroughs, Karl May... 

Pois bem, é como digo, os livros nos escolhem. Chegam a nós das mais estranhas maneiras, desde o presente de um amigo que pensa ter acertado na escolha por um motivo qualquer, muito embora tenha acertado por outro totalmente diferente, a aquele decorrente do inexplicável oferecimento visual ocorrido quando, cansados de perambular pela livraria, nos sentamos em uma poltrona, a única vaga, e – como se fosse algo inesperado – aquele livro que nos escolheu aparece imediatamente no nosso campo visual. 

Não há como resistir. Ele estava nos esperando. Agradecidos pela escolha pegamo-lo carinhosamente, e o folheamos, sentimos seu cheiro inigualável, sua textura, passamos uma vista d’olhos por suas páginas e o levamos conosco, ambos muito felizes. 

Assim aconteceu certa noite quando, em um aeroporto qualquer, aguardando a hora de embarcar e vagando pela livraria, já imaginando que daquela vez eu teria que me contentar com as revistas, meus olhos foram atraídos por “Os Devaneios do Caminhante Solitário”, de Rousseau. 

Quantas e quantas vezes não falara acerca do “Contrato Social” para meus alunos de Filosofia do Direito, ao lhes explicar em que crença se fundava nossa fé no Ordenamento Jurídico enquanto expressão da Vontade Geral da Sociedade. Antes Rousseau, que dera um lavor inigualável à genial intuição de Protágoras de Abdera... 

Agora, ali, outra vertente desse mal-amado e original filósofo francês, me convidava a travar conhecimento mútuo. Abri o livro ao acaso. Li o que se me ofereceu aos olhos: “É dessa época que posso datar minha total renúncia ao mundo e esse gosto vivo pela solidão que não me abandonou desde então.” 

“Como?”, me indaguei, “Vila-Matas escreve toda uma obra, Doutor Pasavento”, em homenagem à arte de desaparecer, que é a face mais exposta da renúncia, usando como pano-de-fundo a história de Robert Walser, e não cita Rousseau?” 

Segurando firmemente o livro de Rousseau tomei o caminho que me conduzia ao caixa para comprá-lo e, em seguida, feliz por ter sido escolhido, entrar no avião onde me esperavam algumas horas de voo e de leitura. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: A CASA GRANDE DA FAZENDA JOÃO GOMES, EM MARCELINO VEIRA

 

Cônego Bernardino José de Queirós e Sá (1820-1884)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muitos anos depois ao recordar, com a leitura de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, o relato do desaparecimento lento e inexorável da cultura celta na Bretanha do ciclo Arturiano, substituída pela opressiva aliança entre o cristianismo, tal qual o entendia a Igreja católica, e o poderio do Estado romano, associei o sentimento quanto a essa perda à minha própria amargura com a extinção, também impossível de ser detida, da antiga cultura sertaneja nordestina, iniciada no ciclo do gado. 

E recordei quando caminhava, garoto, pelas ruas da minha infância, tangido suavemente por meu pai, a cumprimentar, tímido, os vizinhos, dentre eles um seu colega de trabalho, Francisco Alves Cabral (Seu Chico Cabral), a quem eu conectava imediatamente, por ser filho de Pedro Alves Cabral, com a Casa Grande da Fazenda São João, uma das três ou quatro construídas no “início das eras” naquela Região, o Alto Oeste Potiguar, de onde os Fernandes, todos descendentes do casamento de Mathias Fernandes Ribeiro, filho de portugueses, com a filha de Francisco Martins Roriz, também oriundo da Pátria-Mãe e fundador da cidade de Martins, se espalharam pelo Brasil. 

Pedro Alves Cabral nascera lá, naquela lendária Casa Grande que Lampião recusou atacar, por artes de Massilon, quando invadiu o Rio Grande do Norte se dirigindo a Mossoró, escutara suas histórias e estórias nos serões familiares, testemunhara algumas e era, ele mesmo, o epicentro de uma história contada aos sussurros, entre os adultos Fernandes, mas escutados por meninos de ouvidos ávidos, que atribuía seu nascimento em 1879, no dia de São Pedro, às infidelidades do Capitão Childerico José Fernandes de Queirós e Sá, então proprietário do solar senhorial por casamento com Maria Amélia Fernandes, a Dona Marica do João Gomes, única herdeira de todo o patrimônio do Tenente Coronel Epiphanio José Fernandes de Queirós, conhecido como Major Epiphanio, falecido em 1884, e seu construtor. 

A história de Dona Marica é por si mesma uma lenda na família Fernandes. Consta que Antônio Fernandes da Silveira Queirós (o Major do Exu) teve vários filhos, dentre eles o Major Epiphanio e o Cônego Bernardino José de Queirós e Sá, que foi vigário de Pau dos Ferros de 1849 a 1884. O Major Epiphanio não teve filhos; o Padre, dez a doze, segundo alguns, dezesseis, dizem outros, de várias mulheres, dentre eles Dona Marica, a primogênita, adotada por seu irmão e dele futura e única herdeira. 

Ao assumir João Gomes o Capitão Childerico, ao que consta, segundo as lendas, manteve a tradição inaugurada pelo Cônego Bernardino de povoar os oitões, sótãos e porões da Casa Grande da Fazenda João Gomes, e dele nasceu Pedro Alves Cabral, pai de Seu Chico Cabral, a quem eu sempre associei ao lendário Solar da família e a proteção que recebeu, ao longo da vida, dos Fernandes descendentes do seu avô, bem como lembro, imediatamente, de outras tantas e preciosas histórias/estórias que o pó do tempo insiste em sepultar, e lentamente encaminhar toda uma cultura da qual, hoje, quase não há mais testemunhas vivas, para o desaparecimento.

domingo, 6 de dezembro de 2020

CANGAÇO: MINHA BUSCA POR MASSILON

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Sempre me perguntam, em palestras, entrevistas, debates, por qual razão deixei de lado meus escritos acerca de Filosofia do Direito e me encaminhei para o estudo do cangaço. Eis a resposta...

... As noites da minha infância, quando em férias, excetuando quando ia para o Sertão do Alto Oeste Potiguar, foram passadas na Praia de Tibau, (do Norte) na mesma casa onde meus pais viveram sua lua-de-mel.

Eram noites típicas do nosso verão litorâneo, com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se fizessem as horas, todas estas passadas à luz do lampião de gás no alpendre que nos agasalhava e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.

Para lá eu ia como companhia oficial de Tia Liliosa, a dona da casa, tão logo chegassem os primeiros dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido por Tio Ezequiel[1], irmão de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os padrões de então. 

Ele era o principal acionista de Alfredo Fernandes Indústria e Comércio, uma empresa com sede em Mossoró, correspondente comercial até mesmo em Londres, e que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão.

Nele me impressionava o distanciamento que sabia impor sem elevar a voz e seu vagão de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório central da Firma, em Mossoró, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, nas suas férias anuais, em julho, na Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por nossos ancestrais comuns[2]

Era, então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3], passar o final-de-semana. Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo: a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a noite sempre terminava com alguma história antiga da família Fernandes, principalmente os episódios vividos por Tio Childerico, o "Velho", Tio Childerico, o que se fora para a Amazônia entre menino e rapaz, mais precisamente o Acre, ou Tio Childerico, o “Novo”, e seu encontro com o bando de Lampião[4].

Naquela época Tio Childerico, o que se fora, já era lenda aqui e na Amazônia. As histórias que se contavam a seu respeito diziam respeito a anos passados no meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e perdidas em um passe de mágica, boa parte delas contadas por Calazans Fernandes em sua obra O Guerreiro do Yaco, primeiro volume de uma trilogia romanceada de sua vida[5], e inacabada.

Quanto a Tio Childerico, o “Novo”, sua história era recente e mais singela: dizia respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró, pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a Alfredo Fernandes, seu tio. E dizia respeito à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de quem Tia Bebela se valera para proteger seus filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas que lhe infligia “Menino de Ouro”. 

Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu “anjo-da-guarda”. Por essa razão, até morrer, todo ano mandava celebrar uma missa em sua intenção e em ação de graças pelo salvamento de seus filhos.

Ainda por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre.

Na mesma rua onde nasci e me criei e onde moraram meus pais até que os levasse os desígnios de Deus, em seu final, número 85, ali onde a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai para o bairro da Paraíba e com a Igreja de São Vicente a sua esquerda, fica a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram resistência armada aos invasores[6].

Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros. 

Em 1977, ano do cinquentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro ainda vivo: Asa Branca. 

Mas somente anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados, resolvi sair em busca de Massilon. O primeiro deles foi uma conversa em tom de brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, escrito por Aléxis Gurgel, e que inovava quanto ao suposto motivo real que levara Massilon a empreender seu projeto relativo à Mossoró[7]. E o segundo foi conhecer e me tornar amigo de Kydelmir Dantas e Paulo Gastão, o primeiro Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, e o segundo um dos maiores pesquisadores do tema, no Brasil.

A essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha avaliação, desde a fundação de Martins, a resistência oposta por Rodolpho Fernandes à Lampião[8], passando pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9], as aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, na Amazônia, a história política do interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz, relacionados com os acontecimentos de 1927 em Mossoró.

E se agregou também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de minha terra natal.

Por todos esses motivos surgiu o livro "Massilon: Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins".

[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel, que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca em Mossoró.

[2] Em 1742 Francisco Martins Roriz, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, que daria origem ao povoado que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr., em Martins, a Cidade e a Serra, que a origem da Capela à margem da Lagoa dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu está envolta em lenda: reza a tradição que a esposa de Francisco Martins desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta – mandaria construir, no local, uma capela em honra daquela santa. Logo mais seria localizada, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando erigir a capela ali mesmo. A primogênita de FRANCISCO MARTINS RORIZ, falecido em 1786, MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS, casou-se com MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, nascido pela década de 50 do século XVIII, na freguesia de São João Batista da Vila de Princesa (atual Açu, Rn), filho de FRANCISCO COSTA PASSOS e VIOLANTE MARTINS, citados na obra Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense, de Joaryvar Macedo. Do casamento nasceu, em 1778, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, que casaria com DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ. Por sua vez deste casamento nasceu, dentre outros, JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ E SÁ, que se consorciou com MARGARIDA GOMES DA SILVEIRA, os quais geraram CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ. Do casamento de CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ (falecido em 4.2.1890) com GUILHERMINA FERNANDES MAIA nasceu FRANCISCA FERNANDES DE QUEIRÓZ MAIA, que se casou com HIPÓLITO CASSIANO DE SOUZA (1863-1937). Este casamento originou MARIA EMÍLIA FERNANDES DE SOUZA (1887-1956), que consorciada com OSÓRIO BERNARDINO DE SENA, gerou ALDEIZA FERNANDES DE SENA MEDEIROS, mãe do Autor, casada com FRANCISCO HONÓRIO DE MEDEIROS. 

[3] Francisco Fernandes de Sena estava na trincheira de seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua terra natal, Pau dos Ferros, RN. 

[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de 1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza em Os Fernandes de Souza, que depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe. 

[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de 1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e esclarece por que tantos “Childericos” na família Fernandes: "Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em 1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do esforço inextinguível. O “Guerreiro do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.

[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro, Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô materno Ezequiel Fernandes de Souza.

[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.

[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel Rodrigues de Melo, em seu Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, informa que "A República, de 28 de junho de 1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade, sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr. Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal a República seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do Desembargador Ferreira Chaves". 

[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes, em Memorial de Família: "quando o Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no dia 30 de abril de 1926. Ver História do Rio Grande do Norte, de Tavares de Lyra.

sábado, 5 de dezembro de 2020

TEMPO: UMA CERTA FOTOGRAFIA NA PAREDE

 

American Girl in Italy (Ruth Orkin, 1951)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava, mas ela já parecia estar muito cansada. 

Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. Melhor não, disse aos meus botões. 

A fotografia - melhor dizendo, a reprodução em preto e branco dividia, com outras, a atenção dos frequentadores. 

“É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra. 

Olhei novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinquenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. 

Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas, há algo de aflitivo no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. 

Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Não houvera produção: exceto a ideia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo. 

Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficaremos com o passar dos anos”. 

A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. 

Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha, a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. 

Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava. 

“Você não se preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?”, indagou. “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”. 

“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns mil, fora as gorjetas”. 

As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a rede social e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cem por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês. 

A conta chega. 

“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. 

“Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. 

Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente. 

Desci a escada e ganhei a rua. Procurei o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente, Sidarta, de Herman Hesse. 

Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, enquanto contemplavam as águas de um rio. 

Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a procura do oceano, o rio continua no mesmo lugar. 

A vida passa, mas está. O homem vai, mas a humanidade permanece. 

Fim de noite.