* Honório de Medeiros
As
noites da minha infância, quando em férias, excetuando duas oportunidades nas
quais uma prima distante que morava conosco me levou para o Sertão, foram
passadas na Praia de Tibau, na mesma casa onde meus pais viveram sua lua-de-mel
e provavelmente me conceberam. Eram noites típicas do nosso verão litorâneo,
com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se
fizessem as horas, todas estas passadas à luz do lampião de gás no alpendre que
nos agasalhava e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a
escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava
nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.
Para
lá eu ia como companhia oficial de Tia Liliosa tão logo chegassem os primeiros
dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido
por Tio Ezequiel[1], irmão
de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os
padrões de então. Ele era o principal quotista de Alfredo Fernandes Indústria e
Comércio, uma empresa com sede em Mossoró e correspondente comercial até mesmo
em Londres, que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão. Nele
me impressionava o distanciamento que sabia impor sem elevar a voz e seu vagão
de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório
central da Firma, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, nas suas
férias anuais, em julho, Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas
proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por
ancestrais nossos oriundos de Martins[2].
Era,
então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a
Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3],
passar o final-de-semana. Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo:
a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a
noite sempre terminava com alguma história da família Fernandes, principalmente
os episódios vividos por Tio Childerico na Amazônia, mais precisamente no Acre,
ou Tio Childerico, o “Novo”, e seu encontro com o bando de Lampião[4].
Naquela época Tio Childerico “Velho” já era lenda aqui e na Amazônia. As
histórias que se contavam a seu respeito diziam respeito a anos passados no
meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios
desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a
venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e
perdidas em um passe de mágica, boa parte delas contadas por Calazans Fernandes
em sua obra “O Guerreiro do Yaco”, primeiro volume do que se espera seja uma
trilogia romanceada de sua vida[5]. Quanto
a Tio Childerico “Novo”, sua história era recente e mais singela: dizia
respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró,
pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a um parente
próximo. E dizia respeito à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de
quem Tia Bebela, esposa de Tio Childerico “Novo” se valera para proteger seus
filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas que lhe
infligia “Menino de Ouro”. Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu
“anjo-da-guarda”.
Ainda
por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à
sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti
missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o
combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre. Na mesma rua onde nasci
e me criei e onde ainda hoje moram meus pais, em seu final, número 85, ali onde
a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai e com a Igreja de São
Vicente a sua esquerda, fica a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na
época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram
resistência armada aos invasores[6].
Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos
depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com
meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido
a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros.
Em
1977, ano do cinqüentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho
tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à
de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas
festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro vivo: Asa Branca. Mas somente
anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados,
resolvi sair em busca de Massilon. O primeiro deles foi uma conversa em tom de
brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo
que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, escrito por Aléxis Gurgel, e que
inovava quanto ao suposto motivo real que tinha levado Massilon a empreender
seu projeto relativo à Mossoró[7]. E
o segundo foi conhecer e me tornar amigo de Kydelmir Dantas e Paulo Gastão, o
primeiro Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço –
SBEC, e o segundo um dos maiores pesquisadores, acerca desse tema, no Brasil.
A
essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da
história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha
avaliação, desde a fundação de Martins até a resistência oposta por Rodolpho
Fernandes à Lampião[8],
passando pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9], as
aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, a história política do
interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos
ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz relacionados com
1927 em Mossoró. E
se agregou também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o
fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com
absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de minha terra natal.
Por
todos esses motivos surgiu o livro "MASSILON".
[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve
uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel ,
que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre
puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha
Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino
de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca
em Mossoró.
[2] Em 1742 FRANCISCO MARTINS RORIZ, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou
no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, a qual daria origem ao povoado
que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr. (“MARTINS, A CIDADE E A SERRA”; Editora Sebo
Vermelho; 3ª. Edição; Natal, Rn; 2005) que a origem da Capela à margem da Lagoa
dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu está envolta em lenda: Reza a tradição que a esposa de Francisco
Martins, desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma
promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta –
mandaria construir no local do achamento uma capela em honra daquela santa.
Pois, logo mais era localizado, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do
sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando
erigir a capela ali mesmo. A primogênita de
FRANCISCO MARTINS RORIZ, falecido em 1786, MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS,
casou-se com MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, nascido pela década de 50 do século XVIII, na
freguesia de São João Batista da Vila de Princesa (atual Açu, Rn), filho do imigrante
português vindo do Porto MANOEL FERNANDES (ver Revista nº 102, do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte, volumes XVIII e XIX, dos anos 1920 e 1921)
e JOANNA MARTINS DE LACERDA, esta, por sua vez, filha de FRANCISCO COSTA PASSOS
e VIOLANTE MARTINS, citados na obra “POVOAMENTO E POVOADORES DO CARIRI
CEARENSE, de Joaryvar Macedo, conforme nos lembra João Bosco Fernandes
(“MEMORIAL DE FAMÍLIA”; Halley S.A. – Gráfica e Editora; 1ª. Edição; 1994). Do
casamento nasceu, em 1778, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, que casaria com DOMINGOS
JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ. Por sua vez deste casamento nasceu, dentre outros, JOSÉ
FERNANDES DE QUEIRÓZ E SÁ, que se consorciou com MARGARIDA GOMES DA SILVEIRA, os quais geraram
CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ. Do casamento de CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE
QUEIRÓZ (falecido em 4.2.1890) com GUILHERMINA FERNANDES MAIA nasceu FRANCISCA
FERNANDES DE QUEIRÓZ MAIA, que se casou com HIPÓLITO CASSIANO DE SOUZA
(1863-1937). Este casamento originou MARIA EMÍLIA FERNANDES DE SOUZA
(1887-1956), que consorciada com OSÓRIO BERNARDINO DE SENA, gerou ALDEIZA FERNANDES
DE SENA MEDEIROS, mãe do Autor, casada com FRANCISCO HONÓRIO DE MEDEIROS. Sou,
portanto, da nona geração desde Francisco Martins Roriz.
[3] Francisco Fernandes de Sena estava na trincheira de
seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua
terra natal, Pau dos Ferros, RN.
[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de
Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos
do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes
de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de
1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza (“OS FERNANDES DE SOUZA”;
Fundação Vingt-Um Rosado; Coleção Mossoroense; Série “C”; Volume 977; 1977) que
depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando
Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais
conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe.
[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da
morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de
1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e
esclarece por que tantos “Childericos” na família Fernandes: Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra
do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento
republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas
cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu
até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o
caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o
substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em
1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz
ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família
inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na
pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na
alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava.
Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na
família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem
anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há
sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos
norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos
fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro
como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de
falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada
e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a
glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do
trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do
esforço inextinguível. O “Guerreiro
do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena
de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.
[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro,
Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores
armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô
materno Ezequiel Fernandes de Souza e sua esposa.
[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de
agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.
[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era
Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel
Rodrigues de Melo (“DICIONÁRIO DA IMPRENSA NO RIO GRANDE DO NORTE 1909-1987” ; Cortez
Editora/Fundação José Augusto; São Paulo/Natal; 1987; p. 240) informa o
seguinte: A República, de 28 de junho de
1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes
termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro
número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade,
sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr.
Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal a
República seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do
Desembargador Ferreira Chaves.
[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de
Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes (“MEMORIAL DE FAMÍLIA”;
Halley S.A. – Gráfica e Editora; 1ª. Edição; 1994): quando o
Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do
Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto
daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no
dia 30 de abril de 1926. Ver HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO NORTE, de Tavares de
Lyra, 3a. edição.
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