Olavo de Carvalho
De medicoanimosico.blogspot.com
Por Olavo de Carvalho
Cada filósofo tem de pensar com
as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis –
o estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro
abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.
À medida que se espalha a
consciência da debacle total das nossas universidades públicas e privadas,
cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam estudar em casa e
adquirir por esforço próprio aquilo que já compraram de um governo ladrão – ou
de ladrões empresários de ensino – e jamais receberam.
Quase dez anos atrás a Fundação
Odebrecht – no mais, uma instituição admirável – me perguntou o que eu achava
de uma campanha para cobrar do governo um ensino de melhor qualidade. Respondi
que era inútil. De vigaristas nada se pede nem se exige. O melhor a fazer com o
sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam prestar ao público um bom serviço,
acrescentei, que tratassem de ajudar os autodidatas, aquela parcela heróica da
nossa população que, de Machado de Assis a Mário Ferreira dos Santos, criou o
melhor da nossa cultura superior. O meio de ajudá-los era colocar ao seu
alcance os recursos essenciais para a auto-educação, que é, no fim das contas,
a única educação que existe.
Cheguei a conceber, para isso,
uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado do
conhecimento, não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes
para o prosseguimento dos estudos até um nível que superava de muito o que
qualquer universidade brasileira poderia não só oferecer, mas até mesmo
imaginar.
Minha sugestão foi gentilmente
engavetada, e, com ou sem campanha de cobrança, o ensino nacional continuou
declinando até tornar-se aquilo que é hoje: abuso intelectual de menores,
exploração da boa-fé popular, crime organizado ou desorganizado.
Na mesma medida, o número de
cartas desesperadas que me chegam pedindo ajuda pedagógica multiplicou-se por
dez, por cem e por mil, transcendendo minha capacidade de resposta, forçando-me
a inventar coisas como o programa True Outspeak, o Seminário de Filosofia
Online e outros projetos em andamento. E ainda não dou conta da demanda. As
cartas continuam vindo, e o pedido que mais se repete é o de uma bibliografia
filosófica essencial. É pedido impossível.
O primeiro passo nessa ordem de
estudos não é receber uma lista de livros, mas formá-la por iniciativa própria,
na base de tentativa e erro, até que o estudante desenvolva uma espécie de
instinto seletivo capaz de orientá-lo no labirinto das bibliotecas filosóficas.
O que posso fazer, isto sim, é fornecer um critério básico para você aprender a
discernir à primeira vista, entre os autores que falam em nome da filosofia,
quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer.
Tive a sorte de adquirir esse
critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe. Stanislavs Ladusãns. Quando
ele atacava um novo problema filosófico – novo para os alunos, não para ele –,
a primeira coisa que fazia era analisá-lo segundo os métodos e pontos de vista
dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem cronológica, incorporando
o espírito de cada um e falando como se fosse um discípulo fiel, sem contestar
ou criticar nada.
Feito isso com duas dúzias de
filósofos, as contradições e dificuldades apareciam por si mesmas, sem a menor
intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem essas dificuldades,
analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos
fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a
melhor.
A coisa era uma delícia, para
dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o sentido vivo daquilo que
Aristóteles pretendera ao afirmar que o exame dialético tem de começar pelo
recenseamento das “opiniões dos sábios” e tentar articular esse material como
se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus
antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o estado em que a
questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro abstratismo bocó,
opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.
A conclusão imediata era a
seguinte: a filosofia é uma tradição e a filosofia é uma técnica. Chega-se ao
domínIo da técnica pela absorção ativa da tradição e absorve-se a tradição
praticando a técnica segundo as várias etapas do seu desenvolvimento histórico.
Note-se a imensa diferença que
existe entre adquirir pura informação, por mais erudita que seja, sobre as
idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente, como se fossem nossas,
no exame de problemas pelos quais sentimos um interesse genuíno e urgente. A
primeira alternativa mata os filósofos e os enterra num sepulcro elegante. A
segunda os revive e os incorpora à nossa consciência como se fossem papéis que
representamos pessoalmente no grande teatro do conhecimento. É a diferença
entre museologia e tradição. Num museu pode-se conservar muitas peças
estranhas, relíquias de um passado incompreensível. Tradição vem do latim
traditio, que significa “trazer”, “entregar”. Tradição significa tornar o
passado presente através da revivescência das experiências interiores que lhe
deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela claridade do
conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal e histórico,
não se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas anteriores e
trazendo-as para os conflitos da atualidade.
Muitas pessoas, levadas por um
amor exagerado à sua independência de opiniões (como se qualquer porcaria saída
das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo de deixar-se influenciar pelos
filósofos, e começam a discutir com eles desde a primeira linha, isto quando já
não entram na leitura armadas de uma impenetrável carapaça de prevenções.
Com o Padre Ladusãns aprendíamos
que, no conjunto, as influências se melhoram umas às outras e até as más se
tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo as cretinices filosóficas
mais imperdoáveis em aparência acabam se revelando úteis, como erros naturais
que a inteligência tem de percorrer se quer chegar a uma verdade densa, viva, e
não apenas acertar a esmo generalidades vazias.
Algumas regras práticas decorrem
dessas observações:
1. Quando você se defrontar com
um filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique se ele se sente à vontade para
raciocinar junto com os filósofos do passado, mesmo aqueles dos quais
“discorda”. A flexibilidade para incorporar mentalmente os capítulos anteriores
da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno, herdeiro de Sócrates,
Platão e Aristóteles.
2. Quem não tem isso, mesmo que
emita aqui e ali uma opinião valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador,
na melhor das hipóteses um palpiteiro de talento. Muitos se deixam aprisionar
nesse estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar. Outros, porque
na juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram
incapazes de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já
nada podem compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas,
eis tudo o que você pode adquirir numa universidade brasileira.
3. Não estude filosofia por
autores, mas por problemas. Escolha os problemas que verdadeiramente lhe
interessam, que lhe parecem vitais para a sua orientação na vida, e vasculhe os
dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos textos clássicos
que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar muitas vezes no
curso da pesquisa, mas isso é bom.
4. Quando tiver selecionado uma
quantidade razoável de textos pertinentes, leia-os em ordem cronológica,
buscando reconstituir mentalmente a história das discussões a respeito. Se
houver lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista, até
compor um desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois
classifique as várias opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância,
procurando sempre averiguar onde uma discordância aparente esconde um acordo
profundo quanto às categorias essenciais em discussão. Feito isso, monte tudo
de novo, já não em ordem histórica, mas lógica, como se fosse uma hipótese
filosófica única, ainda que insatisfatória e repleta de contradições internas.
Então você estará equipado para examinar o problema tal como ele aparece na sua
experiência pessoal e, confrontando-o com o legado da tradição, dar, se
possível, sua própria contribuição original ao debate.
É assim que se faz, é assim que
se estuda filosofia. O mais é amadorismo, beletrismo, propaganda política,
vaidade organizada, exploração do consumidor ou gasto ilícito de verbas
públicas.
Um comentário:
leiam sobre meu caso
www.mirlainefarias.blogspot.com
www.leituradepensamentos.blogspot.com
ME AJUDEM ESTÃO TENTANDO ME MATAR!!!
Mirlaine Farias Justo
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