* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
"Sapere Aude"
* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são, dizerem suas essências.
Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos, nominamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica a partir do nosso conhecimento pré-adquirido.
Lemos acerca disso em Kant, Gaston Bachelard, Karl Popper...
Por outra, nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas. As coisas são processos.
Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista de Protágoras de Abdera; Antístenes versus Platão; mesmo, talvez, até Parmênides.
O nominalismo também impede a fenomenologia de Henri Bergson e Edmund Husserl e a pretensão de uma hermenêutica cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo.
Assim, o Justo não está fora de mim, é uma construção pessoal e tem a minha medida, e isso ocorre com tudo quanto não esteja sob o domínio da ciência.
Thomas Nagel, em Visão a Partir de Lugar Nenhum (Martins Fontes), observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as teorias empiristas do conhecimento”.
Não há essência a ser apreendida, Platão estava
errado, os sofistas estavam certos.
* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
O apático moral é um cético, mas nem todo cético é um apático moral. Aquele que não o é pode abraçar o inconformismo.
Nesse caso o ceticismo inconformista seria uma forma deliberada de interagir conosco mesmo e com tudo quanto nos envolve. Seria uma arma para se defender contra o pântano do "status quo", e ir além do que foi estabelecido ruinosamente.
Ceticismo somente, não: conduz à apatia moral. No ceticismo inconformista, duvidamos, questionamos, e nos manifestamos.
Mas é preciso cuidado: não é somente o Outro que não sabe; o cético inconformista também não sabe, embora saiba que não sabe. Não custa nada acendermos uma vela em homenagem a Sócrates.
Autocrítica e ceticismo inconformista: o primeiro para nos colocar em nossos reais limites; o segundo, para colocar os outros em seus limites reais.
* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
O mundo está se fragmentando.
Cada homem, hoje, é uma ilha.
Uma ilha em permanente guerra contra as outras.
Tudo quanto formava a unidade entre as pessoas, como a crença em Deus, a fé na Razão, a vida comunitária, se desfaz lentamente.
Não nos damos mais as mãos, exceto quanto temos algum interesse a alcançar.
O altruísmo morre lentamente, prevalece o egoísmo.
Todos são, individualmente, desde algum tempo, donos de uma verdade única, e agem como se quem não concordasse consigo fosse um inimigo a ser destruído.
Breve esse
individualismo exacerbado, que se firma nos nossos defeitos, e não no que nos
engrandece, há de nos conduzir para uma realidade na qual cada um será por si,
e ninguém por todos.
Então, será o fim.
* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
Hannah Arendt nos encaminha, em Responsabilidade e Julgamento, à noção de que devemos a Paulo a ideia de “Vontade”. Paulo, tão crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua Carta aos Romanos.
Lê-se, em sua Carta aos Romanos, um momento antológico do processo civilizatório: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço” (7,19-21).
Terá sido para cumprir tal desígnio, o de fincar o alicerce da doutrina do Cristianismo, a razão pela qual Jesus o interpelou na estrada para Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6).
Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha.
Também a Carta aos Romanos foi o ponto de partida para a Reforma Protestante: Lutero escreveu seu Comentário aos Romanos em 1515, e nele já se encontra seu pensamento acerca da Justificação.
Arendt nos mostra o percurso intelectual do conceito de “Vontade” no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes” (Confissões).
A “Vontade” decidirá.
Assim como o mostra em Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da “Vontade” era desconhecido na Antiguidade, e que sua descoberta deve ter coincidido com a da “Liberdade” enquanto questão filosófica, distinta de um fato político.
Vontade, Liberdade, Verdade.
Fundamental.
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
Isso me conduz à lembrança de meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma, enquanto a dele permanecia resguardada.
Profundamente quieta era sua negação do barulhento mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais, tudo sabiamente usado. Uma sábia estratégia.
Hoje percebo, enquanto cuido de ir fechando o balanço de minha vida: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem circunstancial das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente reserva plácida de sempre.
E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum! Quanto engano. Como poderia ser assim, ele que sempre foi um sobrevivente, que viveu tantas guerras inglórias e só aparentemente insignificantes?
Quanta arrogância, a nossa, em pensar que podemos conhecer algo ou alguém em profundidade!
Meu pai, aparentemente, sabia muito e percebia que não valia a pena que o ninguém soubesse disso. Ou, então, pensava que saber era um caminho único, áspero, mas intensamente solitário.
E assim viveu seus anos, principalmente os últimos, envolto nesse manto de humildade intelectual que era uma consequência de seus questionamentos mais íntimos, nunca uma predisposição, um intuito hipócrita de galgar atenção.
Quando faleceu, como que despertando de um sonho iniciei a longa caminhada em busca de compreendê-lo, analisando suas palavras e posturas mas, principalmente, seus silêncios tão plenos de uma anônima rica vida interior.
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
O conhecimento pode ser imaginado
como uma árvore cujo tronco repouse no chão ancestral onde o homem
pré-histórico caçava, coletava e, graças à sua primitiva linguagem, bem como à
incipiente capacidade cooperativa, se tornou uma espécie apta a sobreviver.
Não é uma imagem precisa,
tampouco absolutamente correta, mas cumpre seu propósito para ser assimilada.
Os problemas com os quais nossos
antepassados se depararam e as soluções engendradas para ultrapassá-los
formaram galhos, ramos, folhas, em ritmo cada vez maior e mais denso, em uma
escala inimaginável. Cada folha, como é possível perceber, avança rumo ao
infinito desconhecido por um rumo que sugere uma proporcionalidade inversa:
quanto mais específico o conhecimento por ela simbolizada, mais ampla e
profunda a vastidão a lhe servir de contraponto.
Se focarmos essa imagem em busca
de nitidez, podemos acompanhar o desenvolvimento da Matemática, como exemplo,
desde os primitivos números naturais até o cálculo, hoje, de tensores hiper
espaciais, essas projeções hipotético/geométricas interdimensionais.
Podemos acompanhar, também, a
evolução da linguagem até a Babel dos tempos modernos, constituída de signos
bem diferenciados – desde os sinais utilizados pelos surdos-mudos, passando
pelo informatiquês e o idioma dos guetos, presídios, e subúrbios, até a lógica
do sub-universo computacional.
Aliás, o mundo da informática é
muito exemplificativo dessa teoria da árvore do conhecimento. No início, meados
do século XX, um computador ocupava salas; hoje, os “chips” guardam quantidades
colossais de informações.
A imagem da árvore do
conhecimento é possível graças à Teoria da Evolução de Darwin. É, digamos, um
corolário. Podemos perceber que o Conhecimento se diferencia e especializa na
medida em que avança. Sabemos, hoje, quase tudo acerca de quase nada em cada
“nicho” do conhecimento, embora tudo quanto descartado por não ter sobrevivido
ao choque entre ideias conflitantes forme uma contrapartida em negativo da
realidade.
Contrapartida que agrega: aquilo
que descartamos não precisa ser outra vez cogitado.
Assim essa árvore é finita e
limitada (conceitos distintos) no espaço e tempo conhecidos, mas infinita e ilimitada
quanto as suas possibilidades de crescimento. O futuro, para onde ela avança, é
construção do passado, e como cada estrada amplia a quantidade de lugares onde
se há de chegar, cada problema resolvido no processo civilizatório implica na
ampliação de universos de saber.
Ou seja, o tempo, cada vez mais,
dá razão a Darwin.
Funciona assim em termos macro,
mas também em termos pessoais. Cada avanço nosso implica em ampliar o universo
daquilo que não conhecemos. É um paradoxo: quanto mais sabemos, mais há a
saber.
É, por fim, o voo do solitário
para o infinito: “É como se cada um de nós, estando dentro de um ambiente
fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da
saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior, bem maior.
Sua tarefa, assim, é sempre criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente
ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial...”
Em termos pedagógicos, diria Gaston Bachelard: "todo conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão."
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
5. Excêntricos e Divergentes
“Cada pessoa devia andar
por aí rezando pela própria Bíblia, ou seja, fazendo suas próprias leis e
fazendo uso de seu livre arbítrio. Mas não é o que tem acontecido” (Mário
Bortolotto, www.digestivocultural.com)
Leonard Mlodinow é doutor em física pela Universidade da
Califórnia, Berkeley. Foi professor no Instituto de Tecnologia da California e
pesquisador no Instituto Max Planck em Munique. Alguns dos seus livros
anteriores são O Grande Projeto e Uma Nova História do Tempo, com
Stephen Hanwking, Ciência x Espiritualidade, com Deepak Chopra, e
sozinho, O Andar do Bêbado, A Janela de Euclides, O Arco-Íris
de Feynmann, e Subliminar. Um currículo impressionante.
Mas é de Elastic (Flexible Thinking in a Time of
Change), que aqui vamos tratar. Especificamente, daquilo que ele denomina
de “pensamento flexível”.
Em síntese, em seu livro, Mlodinow nos diz que “mesmo entre
animais mais complexos, boa parte do comportamento do organismo é
‘roteirizada’, ou seja, pré-programada ou automática e iniciada por algum
gatilho no ambiente”[1],
Ele defende que em certas situações, quando modos
roteirizados não são os mais apropriados para o indivíduo, a evolução
providenciou outros dois meios pelos quais podemos enveredar: o pensamento
racional, lógico, analítico, e o pensamento flexível.
O pensamento analítico seria a forma de reflexão mais
valorizada na Sociedade, apropriado peara analisar as questões mais diretas da
vida, o tipo de pensamento no qual nos concentramos nas escolas, mas que ocorre
de forma linear, e costuma falhar ao enfrentar os desafios inerentes à mudança.
É diante de desafios impostos pela mudança que o pensamento
flexível sobressai.
Desprovido
de direção de cima para baixo do pensamento analítico, e mais motivado pela
emoção, o pensamento flexível se presta sob medida para integrar diversas
informações, resolver enigmas e encontrar novas abordagens para problemas
desafiadores[2].
Dito isso, vamos para um Capítulo muito ousado do seu livro,
intitulado “O bom, o louco e o esquisito”.
Logo no início Mlodinow conta alguns detalhes “anedóticos”
da personalidade de vários “excêntricos” famosos: William Blake, Howard Hughes,
Buckminster Fuller, David Bowie, Nikola Tesla.[3] Hughes, por exemplo,
“tinha o hábito de se sentar nu por horas em seu quarto ‘isento de germes’ no
Beverly Hills Hotel – numa cadeira de couro branca, com um guardanapo cor de
rosa envolvendo os genitais”. Depois se indaga: “Serão apenas anedotas
divertidas ou existe uma relação significativa entre tendência a comportamentos
excêntricos e capacidade de pensamento flexível?”[4]
Temos, assim, o “estranho” que vai suscitar a busca do
“padrão”.
Em seguida ele aborda o histórico da pesquisa científica em
busca da descoberta de um padrão em relação a essa conduta estranha detectada.
E nos informa que tudo começou com um geneticista comportamental, Leonard
Heston, nos anos 60, e seu estudo de crianças oferecidas para adoção por mães
esquizofrênicas, bem como sua descoberta de que “havia uma pequena dose de
esquizofrenia herdada que dotava essas crianças de uma tendência tanto para o
pensamento flexível quanto para um comportamento não conformista”.[5]
Ao longo dos anos muitas pesquisas foram feitas na tentativa
de corroborar essa hipótese. Mlodinow nos diz, em seu livro, que os cientistas
estavam no caminho certo. Questionários aplicados em crianças filhas de mães
esquizofrênicas tendiam a mostrar serem elas tão excêntricas quanto bem-dotadas
de pensamento flexível, sobretudo de natureza divergente.[6]
Entretanto, é bom ressalvar: existe um espectro que explica
até onde essa tendência é salutar. Na base da escala, temos aqueles que têm
inibição cognitiva, com pensamentos e ações convencionais; no topo, temos os
que podem ter dificuldade em se manter coerentes; no meio, entre as duas
extremidades, ficam os que têm uma tendência ao pensamento original e ao
desenvolvimento de um comportamento não conformista.
Por fim Mlodinow adverte que os psicólogos acreditam que uma
das diferenças-chave entre pessoas com personalidades no meio da escala e
aquelas que realmente sofrem de esquizofrenia, está na capacidade de se
concentrar, e de forma mais geral, de aplicar um tipo de inteligência analítica
e ordeira.
E, de forma muito interessante, surge uma conexão entre o
pensamento de Carlyle e o de Mlodinow. Com efeito, se nos perguntássemos de que
“massa” seriam feitos os heróis “condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral
dos homens imaginou fazer ou atingir”, não é tentador acreditar que Mlodinow
esteja certo quando propõe que foram eles excêntricos, bem-dotadas de
pensamento flexível, sobretudo de natureza divergente?
Homens ou mulheres que ousaram dizer “não”?
* Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
4.
Anjos
e Demônios
“... quem és, afinal?
- Sou parte da força que eternamente
deseja o mal e eternamente faz o bem”
Fausto, Goethe
Adotemos o termo “outsider”, até por também significar
“estranho”, como opção para designar o divergente inconformado que se revolta e
transgride. Lembremo-nos que o revoltado não é necessariamente o raivoso, mas,
sim, aquele do qual nos fala Camus, o que diz “não”.
E nos questionemos: o que leva o Outsider a divergir, não se
conformar, a se revoltar e dizer “não”? A ânsia de glória à qual aludiu
Bertrand Russel? E por que alguns têm essa ânsia em maior grau que os outros?
A pergunta a ser feita poderia ser a seguinte: por que
alguns não se conformaram, enquanto a grande maioria seguiu sua vida
“normalmente”?
Como explicar o fenômeno do surgimento específico de um
determinado personagem da história, em detrimento de irmãos, primos, amigos, todos
contemporâneos, do comum dos mortais?
Leonard Mlodinow propõe uma hipótese. Mas, antes, analisemos
o papel da estranheza e do padrão nessa busca: parte considerável do trabalho
dos cientistas e filósofos é descobrir padrões na realidade, para os quais
foram atraídos por algum tipo de estranheza no comportamento dos fenômenos.
É a estranheza que conduz ao impulso de buscar o padrão. O
que há ali?
Mas como se dá a percepção da estranheza? Quando ocorre a
fragmentação das expectativas de que tudo ocorra como habitualmente ocorre.
Popper explica isso detidamente em sua epistemologia. Para
ele, conhecemos (aprendemos) quando nos
defrontamos com um problema, qualquer que seja ele[1]:
(...) cada
problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto
conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição
interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais
corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto
conhecimento e os supostos fatos...
O problema pode ser inesperado: não por outra razão a sabedoria popular
diz que a necessidade é a mãe da invenção; ou provocado: qualquer problema é,
antes de tudo, uma questão do espírito (intelectual), mesmo no trabalho
puramente mecânico.
Elaboramos hipóteses que são soluções provisórias a serem testadas. O
teste dirá se erramos ou acertamos, e o erro nos ensina, posto que não
precisamos mais trilhar o mesmo caminho já tentado. Uma vez revelado que nossa
hipótese está correta, surge o padrão: uma vez repetidas as mesmas condições
que fizeram surgir a estranheza, já sabemos como tudo se comportará, em termos
de causa e efeito.
Se aprendemos quando nos deparamos com um problema, é porque há um conhecimento em nós que o antecede e nos permite identificá-lo. Se o conhecimento é retificável, é evolutivo, no sentido de que caminha sempre do mais simples para o mais complexo.
O conhecimento (aprendizado) pode, então, ser compreendido como um
“vir-a-ser” de complexidade cada vez maior. E não é possível comparar
informação com conhecimento; quando conheço, estou informado, mas, nem sempre
quando estou informado, conheço. Posso estar informado de algo sem
compreendê-lo.
É preciso cautela, entretanto. Não é tão simples a lide com
um aparente padrão que provoca quem busca desvendá-lo, assim como não é simples
lidar com estranhezas. O padrão descoberto, se se mantém ao ser constatado,
destrói falsos padrões que o antecederam; a estranheza que se oferece, às vezes
clama por se manter escondida.
Voltemos à questão inicial. Vejamos o caso do livro Homens
em tempos sombrios, de Hannah Arendt. São perfis de Doris Lessing, Rosa Luxemburgo,
Giuseppe Roncalli, Karl Jaspers, Isak Dinesen, Herman Broch, Walter Benjamin,
Bertolt Brecht, Randall Jarrell e Martin Heidegger. Todos “outsiders”, digamo-lo
assim. Qual é o padrão? O que os une? A apreciação pessoal da autora?[2]
Agora, vejamos Luis da Câmara Cascudo e seu Flor de
Romances Trágicos. São perfis de Antônio Silvino, Antônio Tomás, Rio Preto,
Nascimento Grande, Jararaca, Moita Brava, Vilela, Adolfo Rosa Meia-Noite,
Jesuíno Brilhante, Lucas da Feira, José Leão, Pedro Espanhol, José do Vale e
Cabeleira. “Outsiders”? Qual o padrão, o banditismo? E por qual razão optaram
pelo banditismo?[3]
E quanto a Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter?
O padrão seria a genialidade?[4]
Vejamos, também, um exemplo de estranheza e padrão, próprios
da ciência, em um livro de Steven Johnson. A tradutora de Emergence (The
Connected Lives of Ants, Brains, Cities and Software) optou por traduzir o
título desse livro de Steven Johnson para Emergência (A dinâmica de rede em
formigas, cérebros, cidades e softwares). Não faz muito sentido.[5]
Primeiramente não usamos, cá no Brasil, o termo
"emergência", usualmente, no sentido de "algo que emerge".
Usamos no sentido de "situação grave, perigosa, crítica". Para o
sentido de "algo que emerge" utilizamos "surgimento".
Em segundo lugar o subtítulo "dinâmica de redes em
formigas, cérebros, cidades e softwares" é muito pesado. Remete a algo do
nicho específico de estudiosos da área de redes em tecnologia da informação.
Afasta o leitor que se pretende alcançar, aquele de formação mediana.
Talvez mais apropriado fosse a utilização apenas do
subtítulo, a partir de uma tradução mais literal do original: "As vidas
conectadas das formigas, cérebros, cidades e softwares".
Tal preâmbulo pretende dizer que a capa da tradução
brasileira do instigante livro de Steven Johnson não nos permite uma pálida
ideia, sequer, de quão é importante o assunto tratado pelo autor.
Graduado em semiótica pela Brown University e em literatura
inglesa pela Columbia University, Johnson é aclamado pela Newsweek, New York
Magazine e Websight como um influente pensador do ciberespaço.
Tem Steven Pinker, autor de Como a Mente Funciona,
como seu leitor entusiasmado.
Do que trata Johnson em seu livro? Em síntese: do surgimento
de sistemas complexos adaptativos, tais como formigueiros, cérebros, cidades,
softwares, e assim por diante.
Johnson defende a existência de algo em comum entre
tais sistemas, ou seja, "O que une esses diferentes fenômenos é uma forma
e um padrão recorrentes: uma rede de auto-organização, de agentes
dessemelhantes que inadvertidamente criam uma ordem de nível mais alto",
diz ele.[6]
E mais complexa, digo eu.
Johnson chama esse tipo de "surgimento", no qual
um organismo complexo pode emergir, sem que haja um líder para planejar e dar
ordens, sem hierarquia e comando, por intermédio da "mão invisível e
fantasmagórica da auto-organização", de "comportamento emergente".
As raízes dessa hipótese repousam no solo fértil do
pensamento de Adam Smith, Charles Darwin, Alan Turing e, embora não citado pelo
autor, Ilya Prigogine e sua “Teoria do Caos e do Atrator”.
De tudo isso se extrai que em algum momento ímpar na ciência,
quando o cientista percebe algo estranho, fora dos padrões e não explicável,
ele diz “não”, rompe com a tradição científica e elabora uma nova teoria ou
hipótese para explicar o acontecido, que há de ser testado, e, na medida em que
sobreviva aos testes, se estabeleça enquanto um novo padrão, fazendo o
conhecimento avançar.
Podemos dizer que na história aparentemente existe um padrão
semelhante: se fosse uma teia, seria tecida por quem disse e diz “não”, por
aqueles que, “(...) foram os condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral
dos homens imaginou fazer ou atingir”, como disse Carlyle e lemos mais acima.
Voltemos a Mlodinow, para tentar compreender o que leva
esses “pequenos e grandes homens” a dizerem não e fazerem avançar nosso
processo civilizatório.
[1] POPPER, Karl. Lógica das
Ciências Sociais. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1978. Pág. 14
e segs.
[2]
ARENDT, Hannah. Homens em
Tempos Sombrios. São Paulo: Schwarcz. 2008.
[3]
CASCUDO, Luis da Câmara
Cascudo. Flor de Romances Trágicos. Natal: EDUFRN. 1999.
[4] HOFSTADTER, Douglas R. Gödel,
Escher, Bach. Brasília: Editora UNB. 2001.
[5] JOHNSON, Steven. Emergência: A
Dinâmica de Rede em Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares. Rio de Janeiro:
Zahar. 2003.
[6] Grifo meu.
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
1. 3. Dizer
sim, dizer não.
"Somente
é livre quem pode dizer não. Mas observo que primeiro é preciso dizer sim ao
projeto de dizer não, para sermos livres" (Dias e Noites do Sertão, Antônio Gomes).
Entretanto, o que levou e leva alguns homens a tomarem as
rédeas do seu destino, não se conformando com o papel que lhes foi destinado
pelas circunstâncias nas quais nasceram e viviam ou vivem, e construírem suas
próprias histórias, para o bem ou para o mal?
Como explicar esses homens surgidos ao longo do tempo, que
adquiriram brilho próprio escrevendo páginas inigualáveis durante suas
existências, quando e se comparadas com as dos seus anônimos contemporâneos?
Homens que não esquecemos, talvez nunca esqueçamos, situados
entre a santidade e o banditismo, como São Francisco de Assis e Hitler, Padre
Cícero do Juazeiro e Lampião?
Teria razão Bertrand Russell, quando afirmou que os movia
uma ânsia de grandeza, seguida do consequente impulso à revolta pessoal?[1]
Ao
passo que os animais se contentam com a existência e a reprodução, o homem quer
ainda a grandeza, e os seus desejos neste assunto só têm o limite da sua
própria imaginação. Todos os homens desejariam ser deuses, se fosse possível, e
alguns poucos chegam mesmo a achar incompreensível essa impossibilidade. Este
são os modelados, segundo o Satanás de Milton, e combinam, como ele, a nobreza
com a impiedade. “Impiedade” não se refere aqui à crença religiosa: significa
apenas a recusa de aceitar as limitações do poder humano individual. Essa
combinação titânica de nobreza e de impiedade é mais evidente nos grandes
conquistadores, mas pode ser encontrada, até um certo grau, em qualquer homem.
Ela é que torna difícil a cooperação social, pois cada um desejaria entender
essa cooperação como a de um Deus com os seus adoradores, sendo ele mesmo o
Deus. Daí as rivalidades, a necessidade de transigências e de leis e o impulso
à revolta, donde a falha na estabilidade e, periodicamente, a violência. E,
também, a necessidade de uma moral que reprima as anarquias individuais.
Colocado de outra forma, outro não foi o argumento de Thomas
Hobbes em defesa do Estado-Leviatã, da cooperação social, contra a liberdade
absoluta, as anarquias individuais que comprometem a vida em Sociedade.
Tal impulso à revolta pessoal, do qual nos dá conta Russel, será
o mesmo que levou Albert Camus a se perguntar e responder: “Que é um homem
revoltado? Um homem que diz não”.[2] É provável que sim.
Mas o
que é esse “não” tão fundamental? Camus responde:
Significa,
por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não’; ‘assim
já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’.
(...)
Dessa
forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de
uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo
ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele “tem o direito de...”[3]
Recusa essa em aceitar as limitações ao próprio poder humano
individual, e consequente revolta pessoal: inconformação, por fim. Algo que
pode ser encontrado, até certo grau, em qualquer homem, segundo Bertrand Russel[4]. Até no mais humilde de
todos. Mesmo na mais prosaica das circunstâncias. Para o Bem ou para o Mal.
Inconformação que somente é sufocada quando, dentro de si,
ou no confronto com o(s) outro(s), opta-se por ceder às pressões, abrindo-se o
caminho para os que forçam a passagem, tão inconformados quanto, ou ainda mais,
e bem mais fortes, mais impiedosos.
Inconformados aos quais Howard S. Becker nominou de
“outsiders”, ou seja, aqueles de quem não se espera que viva de acordo com as
regras estipuladas pelo grupo[5].
Transgressores. Desviantes. Excêntricos ou portadores de
pensamento divergente, diz Leonard Mlodinow, enquanto aponta para uma área
específica da neurociência, que estuda os padrões de suas condutas[6].
Poderíamos denominá-los gauches, em homenagem a
Carlos Drummond de Andrade[7]:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
“Outsiders”, assim também os nominou o sociólogo alemão
Norbert Elias, autor de O Processo Civilizatório, que reintroduziu na
discussão intelectual moderna a importância da ação individual na história, bem
como a crítica à demasiada ênfase na estrutura sobre o indivíduo, em vigor até então[8].
Enfim, outsiders[9], divergentes[10], inconformados[11], revoltados[12], transgressores[13], desviantes[14]. Os outsiders,
divergentes, não se conformam e se revoltam (o inconformismo é o fermento da
revolta), e essa revolta os leva à transgressão, ao desvio.
Existentes em qualquer tempo ou lugar, os “outsiders”, esses
inconformados, revoltados de todos os tipos e modelos, seja qual seja o credo
ou a ideologia, contribuíram para o avanço do processo civilizatório mesmo
quando a humanidade sofria em suas mãos, pois aparentemente ainda assim
crescemos qualitativamente, e esse é o legado que eles deixaram e deixam para a
história: podemos e devemos aprender com nossos erros.
Às vezes até mais do que com nossos acertos.
[1] RUSSELL, Bertrand. O Poder. São
Paulo: Livraria Martins. 1941. Págs. 6 e segs.
[2] CAMUS, Albert. O Homem
Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 12ª edição. 2018. Pág. 25.
[3] Idem.
[4]
O.a.c.
[5] BECKER, Howard. S. Outsiders.
Rio de Janeiro: Zahar. 1ed. 2008. Pág. 17.
[6]
MLODINOW, Leonard. Elastic (Flexible Thinking in a time of Change). Rio
de Janeiro: Zahar. 1.ed. 2018. Pág.
212 e segs.
[7] ANDRADE, Carlos Drummond de. Do
poema "Sete Faces"/in: Alguma Poesia, 1930.
[9] “A person who is not liked or
accepted as a member of a particular group, organization, or society and who
feels different from those people who are accepted as members” (uma
pessoa que não é apreciada ou aceita como membro de um grupo, organização ou
sociedade em particular e que se sente diferente das pessoas que são aceitas
como membros): dictionary.cambridge.org
[10] Que tem opiniões, pontos de vista
diferentes; discordante, oposto (sentido figurado).
[11] Tendência, atitude ou procedimento de inconformado,
de quem não aceita condições ou situações incômodas ou desfavoráveis. Tendência
ou atitude de não se acatar passivamente o modo de agir e de pensar da maioria
do grupo em que se vive.
[12] Ato ou efeito de revoltar(-se),
grande perturbação; agitação. POR METÁFORA: perturbação, sentimento de raiva,
de náusea que se expressa ger. em atitudes, opiniões mais ou menos agressivas;
indignação, repulsa.
[13] Transgredir: não cumprir, não observar
(ordem, lei, regulamento etc.); infringir, violar.
[14] Afastamento de um padrão de conduta considerado aceitável; erro, falha.
* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
2.
Grandes
e pequenos homens
Quanto à história,
somente me interessa as ideias dos homens. Sem as ideias, não haveria história;
então, a história é, na verdade, aquela das ideias dos homens.
Claro que toda essa divagação nada mais é que uma forma oblíqua
de introduzir a discussão de uma ideia: a de que sempre houve, na história, alguma
percepção de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se levarmos
em consideração que sua longa caminhada civilizatória não existiria sem seus heróis,
tampouco sem os bandidos. Não haveria o Bem, se não houvesse o Mal.
A noção da existência da luz e das trevas, e, em
decorrência, de heróis e bandidos, constituindo o caldo fundamental da história
do Homem, poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do
inconsciente coletivo da humanidade, tal qual lemos na obra de Carl Gustav
Jung, um dos maiores psicanalista de todos os tempos, fundador da Psicologia
Analítica.
É de se mencionar o interesse de Jung pelo esoterismo,
espiritualidade e artes ocultas, tão condenado por Freud, que temia comprometer a
credibilidade da Psicanálise.
Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada
para propor que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história
do Homem, no total, constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma
ou outra, enquanto Luz ou Trevas, heróis ou bandidos, embora nos limites que
suas circunstâncias históricas lhes permitiam, ao resolverem seguir em frente em
busca de concretizar seus objetivos imediatos ou a longo prazo, escreveram o
grande livro do processo civilizatório.
No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero e
Hesíodo, Carlyle foi um dos principais ensaístas a defender diretamente o papel
fundamental por eles exercidos na construção da história. Deve-se, entretanto,
salientar que uma exegese atualizada do seu texto aponta para uma apreensão
desse termo em um sentido mais lato, englobando tanto aqueles que possam
merecer os elogios, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade[1]:
Porque,
como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem
realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm
laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral
dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas
no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e
a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao
mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se,
seria a história destes.
Mais que à noção de “heróis” no sentido proposto por
Carlyle, é melhor estar atento aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”,
“padrões”, “criadores” de tudo quanto a massa geral dos homens imaginou fazer
ou atingir. São esses os “grandes homens”, sejam eles heróis ou bandidos.
É certo supor que esses “grandes homens”, o mais das vezes,
para não dizer todas, assim se tornaram na justa medida em que se colocaram
contra sua circunstância histórica, contra o “sistema” que os manietava?
Constituem eles uma longa lista de homens e mulheres
notáveis, que em certo momento nadaram contra a correnteza, e, de uma forma ou
outra, fizeram a diferença quando comparados aos seus contemporâneos? Uma longa
lista de homens e mulheres que ousaram romper com a tradição herdada e
circunstancial da qual eles eram herdeiros?
É possível que sim: no domínio da filosofia Gaston Bachelard
o percebeu no que diz respeito ao avanço do conhecimento científico, sempre por
ruptura com o que lhe era anterior, e coonestou, citando Nietsche: “tudo que é
decisivo somente nasce apesar de”[2].
A partir de Nietsche podemos extrapolar os limites do mero
avanço do conhecimento científico e compreender que que quem ousou fazer a
diferença o fez rompendo com sua circunstância; e quem ousou o fez dizendo
“não”:
Ao
contrário do que hoje em dia se pensa, a humanidade não apresenta uma evolução
rumo a algo melhor, mais forte ou mais elevado. O “progresso” é apenas uma
ideia moderna, isto é, uma ideia falsa. O europeu de hoje em dia tem muito
menos valor do que o europeu da Renascença; o processo de evolução não implica
necessariamente elevação, aprimoramento, fortalecimento.
É bem verdade que isso
acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais
variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior;
tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de
super-homem. Tais bem-sucedidos golpes de sorte sempre foram possíveis e
continuarão a ser talvez pelos tempos que virão. Até mesmo raças inteiras,
tribos e nações podem vir a apresentar, ocasionalmente, acidentes venturosos
como esses[3].
Roberto Musil
percebeu isso belamente:
Cada
coisa só existe por virtude de suas limitações; em outras palavras, por virtude
de um ato mais ou menos hostil contra seu ambiente: sem o papa não haveria
Lutero, e sem os pagãos não haveria o papa, portanto não se pode negar que a
associação mais profunda dos homens com seus semelhantes consiste na
dissociação deles”[4]
É o caso de Jesus, apesar de Roma. De Einstein, apesar de
Newton. De Galileu, apesar da Igreja Católica. De São Paulo, apesar do desconhecimento
filosófico acerca do que fosse a ideia de “Vontade”. De tantos outros...
A São Paulo devemos a descoberta da noção de “Vontade”,
provavelmente concomitante àquela da liberdade. Seu texto fundante, nesse
aspecto, foi a Carta aos Romanos (7, 18-24). Até então, supúnhamos que o Homem
não tivesse livre-arbítrio, categoria filosófica pensada e trabalhada por Santo
Agostinho, a partir de São Paulo.
Hannah Arendt nos encaminhou, em Responsabilidade e
Julgamento, à noção de que devemos a São Paulo, a ideia de “Vontade”. São Paulo
foi crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro
fundador da filosofia cristã, com sua “Carta aos Romanos”[5].
Lê-se, em Romanos, esse momento antológico da civilização:
“Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o
que eu odeio é (o) que faço”.
Terá sido para cumprir esse desígnio que Jesus o interpelou
na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”.
“Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves
fazer” (Atos 9:5,6).
Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração
Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação
Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em
Augsburgo, na Alemanha. Também foi a Carta o ponto de partida da Reforma
Protestante: Lutero escreveu seu “Comentário aos Romanos”, em 1515, e aí já se
encontram suas ideias sobre a justificação.
E Arendt nos mostra o percurso intelectual desse conceito no
pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que
alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes”[6] (Confissões) assim
como no de Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da vontade
era desconhecido na Antiguidade, “e que sua descoberta deve ter coincidido com
a da liberdade enquanto questão filosófica, distinta de um fato político”.[7]
É difícil conceber o tamanho do impacto do conceito de
vontade na história da civilização. Se não tínhamos “Vontade”, não tínhamos
livre-arbítrio; sem ambos, como poderíamos ser condenados por algo, se tudo já
estava previamente determinado?
Todos esses “Grandes Homens” disseram “não”, em algum
momento da história. Esse “não” fez a diferença, seja no lado da Luz ou no lado
das Trevas. Mas não somente os “Grades Homens”. Também há uma imensa quantidade
de “Pequenos Homens” que ousaram dizer não, rompendo com as amarras que lhes
tolhiam a liberdade de ousar, fazendo, então, a diferença.
E cá para nós, sabemos bem: somente é livre quem pode dizer não.
[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956.
Pag. 9.
[2]
BACHELARD, Gaston. O Novo
Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1968. Pag. 15.
[3] NIETSCHE, Friedrich. O
Anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.
[4] MUSIL, Robert. O Homem sem
Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[5] ARENDT, Hannah. Responsabilidade
e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. Pag. 183 e segs.
[6] Idem. Pag. 187.
[7] Ibidem. Págs. 183 e segs.