Arnaldo Esteves Lima
Deu no Valor
Cristine Prestes, colunista
28/12/2009
Nas últimas semanas, duas decisões da Justiça garantiram uma importante vitória a empresários que respondem a processos judiciais por lavagem de dinheiro no Brasil. As defesas do empresário Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity, e dos responsáveis pelo fundo MSI, acusado de usar o Corinthians para lavar dinheiro, conseguiram afastar temporariamente o juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo, dos processos gerados pelas operações Satiagraha e Perestroika, respectivamente.
As decisões foram tomadas pelo ministro Arnaldo Esteves Lima, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no caso de Dantas, e pelos desembargadores que compõem a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, no caso do MSI, e na prática impedem o juiz De Sanctis de determinar qualquer medida nas duas ações penais sob sua responsabilidade. As liminares foram concedidas diante dos chamados pedidos de exceção de suspeição – recursos nos quais a defesa dos acusados alega falta de imparcialidade do juiz da causa para julgar os processos.
Ainda que o recurso traga, em seu nome, a palavra “exceção”, vem se tornando regra desde que os casos gerados pela atuação mais ofensiva e articulada da Polícia Federal e do Ministério Público na investigação de crimes do colarinho branco – cujo auge foi a Operação Satiagraha, deflagrada em julho de 2008 com a prisão de Dantas – passaram a cair nas mãos do juiz De Sanctis, que coleciona pedidos de suspeição contra si.
A nova estratégia elaborada pela defesa dos acusados de crimes do colarinho branco vem ganhando respaldo na Justiça, embora ainda dependa de confirmação tanto no STJ quanto no TRF. Em ambos os tribunais, colegiados de magistrados terão que decidir pela aplicação literal da lei em vigor, que prevê o afastamento do juiz no caso de relação profissional, de aconselhamento, parentesco ou amizade com o réu; ou pela extensão da possibilidade com uma interpretação mais ampla do que estabelece o atual Código de Processo Penal.
Mas, a depender do Congresso Nacional, em um futuro breve a defesa dos réus de crimes do colarinho branco ganhará um reforço de peso. Um projeto de lei idealizado pelo presidente do Senado, José Sarney, e elaborado por uma comissão de juristas convocada pelo senador promove profundas alterações no Código de Processo Penal brasileiro.
Prevista para ser votada no início do próximo ano legislativo, a “Legislação Satiagraha” engendrada por Sarney, a pretexto de modernizar uma lei datada de 1941, constrói uma verdadeira blindagem aos réus de ações penais no Brasil. O projeto enfraquece e esvazia a primeira instância da Justiça com mecanismos que facilitam o afastamento de juízes por suspeição, reduz drasticamente suas funções no processo penal e permite até mesmo que a defesa do réu faça uma investigação paralela, identificando fontes e entrevistando pessoas.
Uma das principais inovações do Projeto de Lei nº 156, de 2009, é a criação do inédito juiz de garantias. É ele quem passará a receber do Ministério Público pedidos de medidas cautelares para a produção de provas que sustentem a denúncia – como buscas e apreensões, interceptações telefônicas e quebras de sigilo fiscal e bancário. Ao juiz da causa caberá apenas julgar o processo – ainda que não tenha participado da chamada fase de instrução, quando são produzidas as provas. O argumento dos que defendem a criação do juiz de garantias é o de que, no momento em que julga o processo, o juiz da primeira instância já está “contaminado” por opiniões formadas durante a fase de instrução, quando defere as medidas cautelares. Ainda que isso seja verdade, até mesmo advogados criminalistas simpatizantes da ideia admitem que uma das consequências dessa separação possa ser simplesmente a falta de provas para sustentar uma sentença condenatória – mesmo que o juiz da causa tenha a convicção de que houve o crime.
Já distanciado da instrução do processo, o juiz da primeira instância, pelo texto do Projeto de Lei nº 56, também poderá se tornar passível de uma avalanche de decisões judiciais a determinar seu afastamento da causa. Com a inserção de apenas um parágrafo na atual legislação, o projeto amplia sobremaneira as chances da defesa de pedir a suspeição do juiz ao propor um texto que, na linguagem jurídica, é chamado de “dispositivo aberto”, ou sujeito a diversas interpretações na Justiça. Diz o texto do projeto que o juiz pode ser afastado do processo “se mantiver relação jurídica de natureza econômica ou moral com qualquer das partes, das quais se possa inferir risco à imparcialidade”. Não será necessária muita criatividade para aplicar o dispositivo.
Se ainda restam dúvidas a respeito da intenção do Projeto de Lei nº 156, seu artigo 24 é derradeiramente esclarecedor. Prevê que “quando o investigado exercer função ou cargo público que determine a competência por foro privativo, que se estenderá a outros investigados na hipótese de crimes conexos ou de concurso de pessoas, caberá ao órgão do tribunal competente autorizar a instauração do inquérito policial e exercer as funções do juiz das garantias”. Na prática, significa que todos os réus que respondem a processos penais ao lado de pelo menos um que tenha foro privilegiado por conta do cargo que ocupa garantirão o mesmo benefício. Significa também que a polícia e o Ministério Público só poderão instaurar inquéritos contra os detentores de foro privilegiado mediante autorização da instância competente para julgá-los – o Supremo Tribunal Federal (STF), no caso de deputados, senadores, presidentes, ministros de Estado etc.
O projeto de Sarney é um duro golpe na já quase inexistente possibilidade de punição do crime do colarinho branco no Brasil, que não raro envolve detentores de cargos públicos. Caso seja aprovado no Congresso, passa a ser do Supremo a competência para julgar boa parte dos processos penais por crimes econômicos no país. Dos poucos que restarem, saliente-se, pois só será investigado quem o Supremo quiser.