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terça-feira, 27 de maio de 2025

3. A APREENSÃO DA REALIDADE

 


* Honório de Medeiros


1 EPISTEMOLOGIA SEM SUJEITO COGNOSCENTE

 

É em decorrência dessa ontognosiologia ou, melhor dizendo, é acatando essa afirmação de caráter ontológico de Popper, qual seja, a de que a Realidade é constituída desses três subuniversos; que o “terceiro mundo” ou “Mundo 3” é habitado por “objetos” como acima descritos (intrínseca natureza cultural); e que o conhecimento objetivo cresce na medida de nossa (sujeito cognoscente) interação com o conteúdo do “terceiro mundo” ou “Mundo 3” (objeto cognoscível), que pode ser entendida sua epistemologia e a importância que ela assume para a crítica, às teorias interpretativas cujas premissas sejam “auto-evidentes”, ou “evidentes em si mesmas”, como é o caso daquelas de caráter subjetivistas.

Ou seja, citando Popper: “a epistemologia tradicional, com sua concentração no ‘segundo mundo’, ou no conhecimento no sentido subjetivo, é irrelevante para o estudo do conhecimento científico”.

Ainda: “os cientistas agem com base numa suposição ou, se preferirdes, numa crença subjetiva (pois assim podemos chamar a base subjetiva de uma ação) referente [apenas] ao que é promissor em termos de crescimento iminente no terceiro mundo do conhecimento objetivo”. (OAC:113)

Por que falham as teorias subjetivistas do conhecimento? Popper nos diz que falham por várias razões, dentre as quais, a mais importante é supor que todo o conhecimento é subjetivo ou que ele somente é possível a partir da observação ou da experiência sensorial, ou seja, aquilo mesmo acerca do qual nos falou Gaston Bachelard quando pediu que nos acautelássemos tanto com o Idealismo ingênuo, quanto com o Realismo exacerbado.

Contra essas teorias subjetivistas, Popper defende que o conhecimento não é o mesmo que meu conhecimento – ao contrário do que se acredita, ele é resultado da absorção de tradições (senso comum) e pensamento crítico. Por exemplo: saber onde se localiza a garagem da própria casa é o meu conhecimento, resulta de minha própria experiência. Mas essa experiência é resultante da apropriação intelectiva da tradição (senso comum) e não da observação.

No fundo, o subjetivista crê que o senso comum ou a experiência decorreu da observação. Entretanto, para Popper (1987:118), tomando-se por base as ciências biológicas, “é muito possível acreditar-se que o homem, assim como os animais e, mesmo, os insetos, nasçam com tradição ou instinto inatos”.

Evidente que poderia alegar-se que esse conhecimento inato teria sido oriundo de observações de gerações anteriores. Tal afirmativa não procede, uma vez que, de há muito, a ciência já escanteou o “lamarquismo” e sua crença na “experiência observacional individualmente adquirida”, ou seja, mudanças ocasionadas por fatores exógenos ao indivíduo, optando pelo darwinismo.

Este, ao contrário daquele, entende que o conhecimento resulta de uma “avaliação” interna em relação a expectativas não satisfeitas quanto ao mundo exterior.

Diz Popper (OAC:121):

 “O análogo psicológico ou biológico de uma hipótese pode ser descrito como uma expectativa ou antecipação, de um acontecimento. Essa expectativa ou antecipação pode ser consciente ou inconsciente. Consiste na prontidão do organismo para agir, ou reagir, em resposta a uma situação de um certo gênero específico. Consiste na ativação (parcial) de certas disposições.

Exemplos clássicos da maneira como expectativas inconscientes se podem tornar conscientes são: falhar um degrau (<Pensei que não houvesse aqui nenhum degrau>), ou ouvir um relógio parar (<Não me apercebia de o ouvir trabalhar, mas ouvi-o quando parou>).

O nosso organismo estava a antecipar, inconscientemente, certos acontecimentos, e só ficamos conscientes do fato depois de as nossas expectativas terem sido frustradas, ou falsificadas.

Este estar preparado de forma disposicional para o que há de vir parece ser o verdadeiro análogo biológico do conhecimento científico. Num organismo animal, as disposições para reagir de uma certa maneira a certos gêneros de estímulos são, em parte, inatas.

A minha tese é a de que, tanto quanto são adquiridas, são modificações de disposições inatas que são <plásticas> e que se desenvolvem e mudam, ao serem ativadas por estímulos, e, especialmente, também sob influência do fracasso e do sucesso (e talvez associados a sentimentos dolorosos e de prazer); pois as ações e reações que são desencadeadas pelos estímulos são, regra geral, orientadas para certos objetivos biológicos. Deste modo, o organismo desenvolve o seu conhecimento disposicional inato: aprende por tentativa e erro”.

Muito diferente, portanto, do quadro desenhado por Hume quando de sua análise do problema da indução, qual seja, o de que o conhecimento surge a partir de repetições de observações.

Nenhum exemplo, entretanto, pode ser mais marcante para contrariar esse falso empirismo que o de Helen Keller ([1]): cega, surda e muda, entretanto, capaz de engendrar uma possibilidade de comunicação com o mundo exterior, graças a uma “disposição” inata para aprender e resolver problemas básicos relacionados com sua sobrevivência.

Aliás, outro não é o pensamento de Bachelard, como posto anteriormente.

Se Popper nos apresenta a lógica do conhecimento, aquele nos apresenta a psicologia do conhecer e, em o fazendo, diz-nos que o vetor do conhecimento, em última instância, sempre vai do racional para o real.

É neste sentido que a epistemologia sem sujeito cognoscente de Popper nos permite rejeitar, do ponto de vista filosófico, qualquer teoria acerca da interpretação que tenha como fulcro, base, premissa inicial, postulado, ou pressuposto, crença subjetiva exposta enquanto “argumento de autoridade” como o são, por exemplo, aquelas que se expressam a partir de juízos de valor, e, não, juízos de fato e que, no devido tempo, serão objeto de crítica quanto a sua possível utilização enquanto instrumento do Poder Político, na medida de sua fragilidade teórica.

Também se manifesta contra esse entendimento contrário à natureza subjetivista de algumas teorias Perelman (1998:1) logo no início de sua “Lógica Jurídica”, convidando-nos a desprezar a atividade mental de quem raciocina (o processo de pensar) e enveredar pelo produto (o resultado do pensar) da nossa atividade intelectual, entendida como sendo algo de natureza objetiva: o modo como foi formulado (argumentos), o estatuto das premissas e da conclusão, e assim por diante.

2 CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA. POSSIBILIDADE DE CRÍTICA A TEORIAS SUBJETIVAS.

Este critério – o da epistemologia sem sujeito cognoscente - ao qual se soma, na tarefa de fornecer subsídio para a crítica a teorias de conteúdo subjetivista, o de demarcação entre ciência e não-ciência ([2] ), que consiste   em  somente  considerar aquela,  enquanto tal,  não porque   se caracterize pela observação e método indutivo, já que a lógica indutiva foi refutada, nos moldes até então propostos quanto a sua utilização, por David Hume, e os fatos e a história lhe deram razão, haja vista a física moderna pós-Einstein e seu caráter altamente abstrato e especulativo para o qual, evidentemente, falta uma base empírica enquanto ponto-de-partida, embora não lhe falte cientificidade, mas, sim, e segundo o próprio Popper, por serem suas afirmações passíveis de refutação:

“De acordo com essa concepção, que mantenho, um sistema só deve ser considerado científico se faz afirmativas que podem chocar-se com observações; de fato, as teorias são refutadas pelas tentativas de provocar esses choques – isto é, pelos esforços para refutá-las. Portanto, testabilidade vem a ser o mesmo que refutabilidade, e pode ser adotada como critério de demarcação” (Popper, 1972:284).

Por fim, e para completar essa via-crucis tão complexa acerca do obstáculo epistemológico que é uma teoria subjetivista (a Hermenêutica enquanto ciência do espírito, por exemplo), convém observar aquilo que Popper (1987:107) expõe a esse respeito:

 “A intenção dos filósofos empiristas, de Bacon a Hume, Mill e Russel, era prática e realista. À exceção, possivelmente, de Berkeley, todos eles queriam ser realistas terra-a-terra. Mas as suas epistemologias subjetivas estavam em contradição com as suas intenções realistas. Em vez de atribuírem à experiência sensível o importante, mas limitado poder de testar, ou de inspecionar as novas teorias acerca do Mundo, esses epistemólogos sustentaram <a teoria de que todo o conhecimento é derivado a partir da experiência sensível>, E fizeram <é derivável> equivaler a <é indutivamente derivado>, ou, ainda mais freqüentemente, a <tem origem>. Nunca viram claramente que não é a origem das idéias que deveria interessar aos epistemólogos, mas sim a verdade das teorias; (...)”

Assim, o Realismo, essa ontognosiologia possível, a possibilidade concreta de conhecimento objetivo a partir da crítica de teorias acerca dos habitantes do “terceiro mundo” ou “Mundo 3” enquanto objetos cognoscíveis, a epistemologia sem sujeito cognoscente, o critério de demarcação entre ciência e não-ciência permitem expor a fragilidade teórica do Idealismo, do positivismo, empirismo e fenomenologia enquanto exacerbação realista, das crenças de natureza subjetivistas que não somente se fazem presentes na interpretação jurídica mas, inclusive, em alguns casos, permitem sua instrumentalização.

 

 * Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.


(1) Helen Keller não dispunha da capacidade inata e base genética para interpretar como símbolos os símbolos bastante artificiais, o do nome da água, por exemplo; enquanto esta lhe corria sobre as mãos, a professora escrevia nelas a palavra <água> (Conforme Sir Karl Raymond Popper; “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”; Edições 70; Lisboa; 1ª edição; 1997; p. 60).

([2] ) Não seria errado substituir “não-ciência” por “metafísica”. A opção por aquela, em detrimento desta, decorreu de uma opção por uma linguagem mais incisiva. Em uma, como na outra, pode-se compreender melhor a distinção a partir da demarcação, em Kant, entre fenômeno e coisa-em-si. O termo “metafísica” pressupõe uma gnosiologia, o quê amplia o universo de sua abrangência. Essa gnosiologia, como se pode supor, por ser calcada no conhecimento absoluto proporcionado pela intuição direta das coisas, a partir da Razão, parece mais um privilégio de místicos.