* Honório de Medeiros
“O conhecimento foi,
portanto, inventado” (FOUCAULT, Michel Foucault; A Verdade e as Formas
Jurídicas).
Em
se acreditando na existência da Realidade enquanto algo existente independente
da nossa consciência, ou seja, em uma linguagem mais apurada tecnicamente, no
objeto (de objectum = o que está no caminho de nossa ação) cognoscível, pode-se
concebê-la como constituída de três subuniversos distintos: “primeiro, o mundo
de objetos físicos ou de estados materiais; segundo, o mundo de estados de
consciência ou de estados mentais, ou talvez de disposições comportamentais
para agir; e, terceiro, o mundo de conteúdos objetivos de pensamento,
especialmente de pensamentos científicos e poéticos e de obras de arte”.
(Popper, 1975:108)
Popper
sugere a existência não somente do ponto de vista concreto, real, do sujeito
cognoscente (os estados de consciência aos quais alude), do objeto cognoscível,
mas também do resultado da interação entre eles, o “terceiro mundo”, ou “Mundo
3”, constituído de sistemas teóricos, problemas, situações de problemas,
argumentos críticos, estados de discussão, estado de um argumento crítico,
conteúdos de revistas, livros e bibliotecas.
O
autor rebate a crítica possível de que o conteúdo do “terceiro mundo” ou “Mundo
3” seja “expressões simbólicas ou lingüísticas de estados mentais subjetivos”,
em síntese, meios de comunicação para “evocar, em outros, estados mentais
similares ou disposições comportamentais para agir”, afirmando a existência de
“dois sentidos diferentes de conhecimento ou de pensamento: (1) conhecimento ou
pensamento no sentido subjetivo, constituído de um estado de espírito ou de
consciência ou de uma disposição para agir/reagir; e (2) conhecimento ou
pensamento num sentido objetivo, constituído de problemas, teorias e argumentos
como tais”. (OAC:110)
Nesse
sentido objetivo, afirma Popper, o conhecimento seria totalmente independente
de qualquer alegação, argumento da autoridade ([1]), dogma-de-fé ([2]), disposição para
afirmar, princípio da evidência ([3]) enfim, da
subjetividade do conhecedor. Tal conhecimento é “conhecimento sem conhecedor; é
conhecimento sem sujeito que conheça”. (OAC:111) E cita Frege: “Por pensamento
entendo não o ato subjetivo de pensar, mas o seu conteúdo objetivo”. (OAC: 111)
Popper
exemplifica, para demonstrar a distinção entre objeto do “segundo mundo” ou
“Mundo 2” e “terceiro mundo” ou “Mundo 3”; com afirmações típicas do “segundo
mundo” ou “Mundo 2”:
“(1)
Sei que você está tentando provocar-me, mas não serei provocado.
(2)
Sei que o último teorema de Fermat não foi provado, mas creio que será provado
um dia.
(3)
De ‘The Ofxord English Dictionary’ sobre o verbete ‘Conhecimento’: conhecimento
é um ‘estado de estar ciente ou informado’”.
Em
todas elas, predomina a crença de natureza subjetiva de quem faz a afirmação.
Três exemplos, a seguir, do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”:
“(1)
De The English Dictionary sobre o verbete ‘Conhecimento’: conhecimento é um
‘ramo de aprendizado; uma ciência; uma arte’.
(2)
Levando em conta o estado atual do conhecimento matemático, parece possível que
o último teorema de Fermat possa ser indecisível.
(3)
Atesto que esta tese é uma contribuição ao conhecimento original e
significativa”. (OAC:112)
Neste
caso, as afirmações podem ser analisadas em si mesmas e podem ser submetidas ao
crivo da crítica científica, a testes, a provas, independentes de quem as fez,
na medida em que elas se submetem ao critério regulador da “Verdade” ou
“Falsidade” do afirmado, entendida aquela como qualquer asserção ou proposição
cujo conteúdo se adapte aos fatos.([4])
Convém
aqui explicar, embora de maneira superficial, “a teoria da verdade objetiva” de
Alfred Tarsky e sua importância para a epistemologia de Karl Popper.
Em
relação a Popper e sua epistemologia, a teoria de Tarsky se revela sobremaneira
importante tendo em vista a diferença fundamental, por ele apontada, entre a
inferência dedutiva e a suposta inferência indutiva.
A
teoria que explica a correspondência entre a verdade e os fatos, até então
considerada pelos lógicos como destituída de sentido, foi salva por Tarsky a
partir de sua afirmação de que uma teoria que analise qualquer relação entre um
enunciado e um fato deve estar exposta em metalinguagem, ou seja, numa
linguagem na qual se possa falar de outra linguagem, bem como empregar
descrições de fatos, inclusive palavras como “fato”.
Popper (1972:249),
exemplifica:
“O caráter altamente intuitivo das idéias de
Tarsky parece tornar-se mais evidente (como descobri ao ensiná-la) se decidirmos
primeiramente considerar ‘verdade’, de forma explícita, um sinônimo de
‘correspondência com os fatos’, para então (deixando ‘verdade’ de lado)
procedermos à explicação da idéia de ‘correspondência com os fatos.’ Vamos
considerar assim em primeiro lugar as duas formulações seguintes, cada uma das
quais enuncia muito simplesmente (numa metalinguagem) as condições necessárias
para que uma determinada assertiva (de linguagem objeto) corresponda aos fatos:
1) A afirmativa ‘a neve é branca’ só corresponde aos fatos se a neve for, de
fato, branca. 2) A afirmativa ‘a grama é vermelha’ só corresponde aos fatos se
a grama, for, de fato, vermelha”.
Assim
Tarsky resgatou, para a lógica, o papel de critério regulador de enunciados
teóricos a partir da verdade objetiva. E esse resgate se tornou fundamental
para a epistemologia de Popper, na medida em que lhe permitiu fugir das
experiências subjetivas com as crenças, ou seja, com teorias calcadas no
“segundo mundo” ou “Mundo 2”, aquelas que derivam da posição subjetivista que
só permite conceber o conhecimento como uma modalidade de estado mental, uma
crença, uma disposição para agir.
Pois,
a partir de então, prepondera a função mais importante da pura lógica dedutiva,
qual seja a de que ela é um sistema de crítica, no sentido exposto por Popper
em sua décima-sexta tese na contribuição de abertura ao simpósio de Tübingen,
que originou o famoso debate entre ele e a “Escola de Frankfurt”, representada
por Adorno e Habermas:
“A lógica dedutiva é a teoria da validade das
deduções lógicas ou da relação de conseqüência lógica. Uma condição necessária
e decisiva para a validade de uma conseqüência lógica é a seguinte: se as
premissas de uma dedução válida são verdadeiras, então a conclusão deve também
ser verdadeira.” (Popper,1978:26)
Como
desdobramento de sua ontognosiologia, Popper apresenta três teses cruciais em
relação ao “terceiro mundo” ou “Mundo 3”: a primeira é a de que “o terceiro
mundo” ou “Mundo 3” é um produto natural do animal humano; a segunda tese de
apoio é que o “terceiro mundo” ou “Mundo
3” é amplamente autônomo, mesmo embora constantemente atuemos sobre ele e por
ele sejamos atuados: é autônomo apesar do fato de ser produto nosso e de ter um
forte efeito de retrocarga sobre nós, isto é, sobre nós enquanto habitantes do
“segundo mundo”, e mesmo sobre o “primeiro mundo”; e a terceira tese de apoio
(e, pensamos, absolutamente crucial) é que através desta interação entre nós e
o terceiro mundo é que o conhecimento objetivo cresce, e que há estreita
analogia entre o crescimento do conhecimento e o crescimento biológico, isto é,
a evolução de plantas e animais.(OAC:114)
Cabe
perguntar se podemos considerar “reais” os habitantes do “terceiro mundo” ou
“Mundo 3”. Em um certo sentido sim: são “reais” as imagens vistas na televisão? Essas imagens, lembra Popper (1977: 194)
“correspondem
ao resultado de um processo pelo qual o aparelho descodifica mensagens
altamente complexas e ‘abstratas’, transmitidas com o auxílio de ondas; em
razão disso, devemos, creio eu, chamar de ‘reais’ essas mensagens codificadas,
‘abstratas’. Elas devem ser decifradas e o resultado dessa decifração é real.”
Por
fim, comente-se a afirmação de Popper no sentido de que há uma analogia entre o
crescimento do conhecimento e o biológico. Na realidade, como ele mesmo afirmou
ao longo do tempo, a teoria da evolução pode ser compreendida como um “programa
metafísico”, tal qual o Realismo, que se sustenta na medida em que resiste a
todas as críticas realizadas. A teoria da evolução foi a macroteoria que
sobreviveu melhor à virada do milênio, quando até mesmo Einstein foi
redimensionado a partir da mecânica quântica.
Embora
a sobrevivência da teoria da evolução a torne cada dia que passa mais
importante para a tentativa de explicação de muitos fenômenos – haja vista o
surgimento, a título de exemplo, da Psicologia Evolutiva e da Sociobiologia –
não podem ter caráter científico algumas tentativas teóricas de conteúdo
“animista” que, nos últimos anos, pretendeu dar ao Direito uma “atitude”
adaptativa.
As
instituições não agem; somente os indivíduos assim o fazem, dentro ou através
delas. Por essa razão, parece ingênuo não somente considerar a hipótese acima
como científica, mas, também, uma outra que pretendeu atribuir ao Direito
capacidade de auto-organização no limite do caos. Neste caso, trata-se da
transplantação, sem a devida cautela, de uma ousada metafísica do mundo físico
para o social.
Nada disso invalida, entretanto, a afirmativa de Popper no sentido de considerar que “de um ponto de vista biológico e evolutivo, a ciência ou o progresso da ciência pode ser considerada como UM INSTRUMENTO [o grifo é nosso] usado pela espécie humana para se adaptar ao ambiente, para invadir nichos ambientais e até para inventar novos nichos ambientais.” (Popper, 1978:51) Nem muito menos uma ousada conjectura: a de que o Direito seja, também, um instrumento desse tipo e, por essa razão, se modifique de acordo com a necessidade humana ao longo da história.
[1]
Trata-se de raciocínio fulcrado em premissa logicamente irrelevante. “É
cometida quando, em vez de tentar refutar a verdade do que se afirma, ataca-se
o homem que fez a afirmação” (conforme COPI, Irving M.; Introdução à Lógica;
Editora Mestre Jou; São Paulo; 1978; ou quando “justifica uma afirmação
baseando-se no valor de seu autor: Aristóteles dixit, Aristóteles disse” (REBOUL, Olivier; Introdução à
Retórica; Martins Fontes; São Paulo; 1998).
[2]
“Em geral, uma crença que se sustenta com uma certeza injustificada, sem que
tenha sido colocada em questão” (BLACKBURN, Simon; Dicionário Oxford de
Filosofia; Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro; 1997).
[3]
Conforme o Idealismo de Descartes: “a primeira regra é não aceitar nenhuma
coisa verdadeira, se não a reconhecer evidente como tal” (ALVES, Alaôr Caffé; Lógica;
Edipro; São Paulo; 2000). É a dependência, como se diz em filosofia, do
princípio da “verdade material”, aquela cuja característica é a de ser uma
proposição verdadeira em si mesma, independente do contexto de qual faz parte.
[4]
Conforme a teoria da verdade objetiva de Alfred Tarsky