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segunda-feira, 26 de maio de 2025

2. DO QUE SE CONSTITUI A REALIDADE

 



* Honório de Medeiros


“O conhecimento foi, portanto, inventado” (FOUCAULT, Michel Foucault; A Verdade e as Formas Jurídicas).

 

Em se acreditando na existência da Realidade enquanto algo existente independente da nossa consciência, ou seja, em uma linguagem mais apurada tecnicamente, no objeto (de objectum = o que está no caminho de nossa ação) cognoscível, pode-se concebê-la como constituída de três subuniversos distintos: “primeiro, o mundo de objetos físicos ou de estados materiais; segundo, o mundo de estados de consciência ou de estados mentais, ou talvez de disposições comportamentais para agir; e, terceiro, o mundo de conteúdos objetivos de pensamento, especialmente de pensamentos científicos e poéticos e de obras de arte”. (Popper, 1975:108)

Popper sugere a existência não somente do ponto de vista concreto, real, do sujeito cognoscente (os estados de consciência aos quais alude), do objeto cognoscível, mas também do resultado da interação entre eles, o “terceiro mundo”, ou “Mundo 3”, constituído de sistemas teóricos, problemas, situações de problemas, argumentos críticos, estados de discussão, estado de um argumento crítico, conteúdos de revistas, livros e bibliotecas.

O autor rebate a crítica possível de que o conteúdo do “terceiro mundo” ou “Mundo 3” seja “expressões simbólicas ou lingüísticas de estados mentais subjetivos”, em síntese, meios de comunicação para “evocar, em outros, estados mentais similares ou disposições comportamentais para agir”, afirmando a existência de “dois sentidos diferentes de conhecimento ou de pensamento: (1) conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, constituído de um estado de espírito ou de consciência ou de uma disposição para agir/reagir; e (2) conhecimento ou pensamento num sentido objetivo, constituído de problemas, teorias e argumentos como tais”. (OAC:110)

Nesse sentido objetivo, afirma Popper, o conhecimento seria totalmente independente de qualquer alegação, argumento da autoridade ([1]), dogma-de-fé ([2]), disposição para afirmar, princípio da evidência ([3]) enfim, da subjetividade do conhecedor. Tal conhecimento é “conhecimento sem conhecedor; é conhecimento sem sujeito que conheça”. (OAC:111) E cita Frege: “Por pensamento entendo não o ato subjetivo de pensar, mas o seu conteúdo objetivo”. (OAC: 111)

Popper exemplifica, para demonstrar a distinção entre objeto do “segundo mundo” ou “Mundo 2” e “terceiro mundo” ou “Mundo 3”; com afirmações típicas do “segundo mundo” ou “Mundo 2”:

                                               “(1) Sei que você está tentando provocar-me, mas não serei provocado.

                                               (2) Sei que o último teorema de Fermat não foi provado, mas creio que será provado um dia.

                                               (3) De ‘The Ofxord English Dictionary’ sobre o verbete ‘Conhecimento’: conhecimento é um ‘estado de estar ciente ou informado’”.

Em todas elas, predomina a crença de natureza subjetiva de quem faz a afirmação. Três exemplos, a seguir, do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”:

                                               “(1) De The English Dictionary sobre o verbete ‘Conhecimento’: conhecimento é um ‘ramo de aprendizado; uma ciência; uma arte’.

                                               (2) Levando em conta o estado atual do conhecimento matemático, parece possível que o último teorema de Fermat possa ser indecisível.

                                               (3) Atesto que esta tese é uma contribuição ao conhecimento original e significativa”. (OAC:112)

Neste caso, as afirmações podem ser analisadas em si mesmas e podem ser submetidas ao crivo da crítica científica, a testes, a provas, independentes de quem as fez, na medida em que elas se submetem ao critério regulador da “Verdade” ou “Falsidade” do afirmado, entendida aquela como qualquer asserção ou proposição cujo conteúdo se adapte aos fatos.([4])

Convém aqui explicar, embora de maneira superficial, “a teoria da verdade objetiva” de Alfred Tarsky e sua importância para a epistemologia de Karl Popper.

Em relação a Popper e sua epistemologia, a teoria de Tarsky se revela sobremaneira importante tendo em vista a diferença fundamental, por ele apontada, entre a inferência dedutiva e a suposta inferência indutiva.

A teoria que explica a correspondência entre a verdade e os fatos, até então considerada pelos lógicos como destituída de sentido, foi salva por Tarsky a partir de sua afirmação de que uma teoria que analise qualquer relação entre um enunciado e um fato deve estar exposta em metalinguagem, ou seja, numa linguagem na qual se possa falar de outra linguagem, bem como empregar descrições de fatos, inclusive palavras como “fato”.

Popper (1972:249), exemplifica:

 “O caráter altamente intuitivo das idéias de Tarsky parece tornar-se mais evidente (como descobri ao ensiná-la) se decidirmos primeiramente considerar ‘verdade’, de forma explícita, um sinônimo de ‘correspondência com os fatos’, para então (deixando ‘verdade’ de lado) procedermos à explicação da idéia de ‘correspondência com os fatos.’ Vamos considerar assim em primeiro lugar as duas formulações seguintes, cada uma das quais enuncia muito simplesmente (numa metalinguagem) as condições necessárias para que uma determinada assertiva (de linguagem objeto) corresponda aos fatos: 1) A afirmativa ‘a neve é branca’ só corresponde aos fatos se a neve for, de fato, branca. 2) A afirmativa ‘a grama é vermelha’ só corresponde aos fatos se a grama, for, de fato, vermelha”.

Assim Tarsky resgatou, para a lógica, o papel de critério regulador de enunciados teóricos a partir da verdade objetiva. E esse resgate se tornou fundamental para a epistemologia de Popper, na medida em que lhe permitiu fugir das experiências subjetivas com as crenças, ou seja, com teorias calcadas no “segundo mundo” ou “Mundo 2”, aquelas que derivam da posição subjetivista que só permite conceber o conhecimento como uma modalidade de estado mental, uma crença, uma disposição para agir.

Pois, a partir de então, prepondera a função mais importante da pura lógica dedutiva, qual seja a de que ela é um sistema de crítica, no sentido exposto por Popper em sua décima-sexta tese na contribuição de abertura ao simpósio de Tübingen, que originou o famoso debate entre ele e a “Escola de Frankfurt”, representada por Adorno e Habermas:

 “A lógica dedutiva é a teoria da validade das deduções lógicas ou da relação de conseqüência lógica. Uma condição necessária e decisiva para a validade de uma conseqüência lógica é a seguinte: se as premissas de uma dedução válida são verdadeiras, então a conclusão deve também ser verdadeira.” (Popper,1978:26)

Como desdobramento de sua ontognosiologia, Popper apresenta três teses cruciais em relação ao “terceiro mundo” ou “Mundo 3”: a primeira é a de que “o terceiro mundo” ou “Mundo 3” é um produto natural do animal humano; a segunda tese de apoio  é que o “terceiro mundo” ou “Mundo 3” é amplamente autônomo, mesmo embora constantemente atuemos sobre ele e por ele sejamos atuados: é autônomo apesar do fato de ser produto nosso e de ter um forte efeito de retrocarga sobre nós, isto é, sobre nós enquanto habitantes do “segundo mundo”, e mesmo sobre o “primeiro mundo”; e a terceira tese de apoio (e, pensamos, absolutamente crucial) é que através desta interação entre nós e o terceiro mundo é que o conhecimento objetivo cresce, e que há estreita analogia entre o crescimento do conhecimento e o crescimento biológico, isto é, a evolução de plantas e animais.(OAC:114)

Cabe perguntar se podemos considerar “reais” os habitantes do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”. Em um certo sentido sim: são “reais” as imagens vistas na televisão?  Essas imagens, lembra Popper (1977: 194)

“correspondem ao resultado de um processo pelo qual o aparelho descodifica mensagens altamente complexas e ‘abstratas’, transmitidas com o auxílio de ondas; em razão disso, devemos, creio eu, chamar de ‘reais’ essas mensagens codificadas, ‘abstratas’. Elas devem ser decifradas e o resultado dessa decifração é real.”

Por fim, comente-se a afirmação de Popper no sentido de que há uma analogia entre o crescimento do conhecimento e o biológico. Na realidade, como ele mesmo afirmou ao longo do tempo, a teoria da evolução pode ser compreendida como um “programa metafísico”, tal qual o Realismo, que se sustenta na medida em que resiste a todas as críticas realizadas. A teoria da evolução foi a macroteoria que sobreviveu melhor à virada do milênio, quando até mesmo Einstein foi redimensionado a partir da mecânica quântica.

Embora a sobrevivência da teoria da evolução a torne cada dia que passa mais importante para a tentativa de explicação de muitos fenômenos – haja vista o surgimento, a título de exemplo, da Psicologia Evolutiva e da Sociobiologia – não podem ter caráter científico algumas tentativas teóricas de conteúdo “animista” que, nos últimos anos, pretendeu dar ao Direito uma “atitude” adaptativa.

As instituições não agem; somente os indivíduos assim o fazem, dentro ou através delas. Por essa razão, parece ingênuo não somente considerar a hipótese acima como científica, mas, também, uma outra que pretendeu atribuir ao Direito capacidade de auto-organização no limite do caos. Neste caso, trata-se da transplantação, sem a devida cautela, de uma ousada metafísica do mundo físico para o social.

Nada disso invalida, entretanto, a afirmativa de Popper no sentido de considerar que “de um ponto de vista biológico e evolutivo, a ciência ou o progresso da ciência pode ser considerada como UM INSTRUMENTO [o grifo é nosso] usado pela espécie humana para se adaptar ao ambiente, para invadir nichos ambientais e até para inventar novos nichos ambientais.” (Popper, 1978:51) Nem muito menos uma ousada conjectura: a de que o Direito seja, também, um instrumento desse tipo e, por essa razão, se modifique de acordo com a necessidade humana ao longo da história.


[1] Trata-se de raciocínio fulcrado em premissa logicamente irrelevante. “É cometida quando, em vez de tentar refutar a verdade do que se afirma, ataca-se o homem que fez a afirmação” (conforme COPI, Irving M.; Introdução à Lógica; Editora Mestre Jou; São Paulo; 1978; ou quando “justifica uma afirmação baseando-se no valor de seu autor: Aristóteles dixit, Aristóteles disse” (REBOUL, Olivier; Introdução à Retórica; Martins Fontes; São Paulo; 1998).

[2] “Em geral, uma crença que se sustenta com uma certeza injustificada, sem que tenha sido colocada em questão” (BLACKBURN, Simon; Dicionário Oxford de Filosofia; Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro; 1997).

[3] Conforme o Idealismo de Descartes: “a primeira regra é não aceitar nenhuma coisa verdadeira, se não a reconhecer evidente como tal” (ALVES, Alaôr Caffé; Lógica; Edipro; São Paulo; 2000). É a dependência, como se diz em filosofia, do princípio da “verdade material”, aquela cuja característica é a de ser uma proposição verdadeira em si mesma, independente do contexto de qual faz parte.

[4] Conforme a teoria da verdade objetiva de Alfred Tarsky


* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.