* Honório de Medeiros
“A visão superficial sempre esconde
o verdadeiro sentido da atividade jurisdicional, que é mais profunda do que se
possa imaginar e que apresenta um ‘substratum’ caracterizadamente
político-ideológico.”
Paulo Lopo
Saraiva, (em“Influência
da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”)
11.1 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
É
a partir dessas premissas que se deve entender o fenômeno da mutação
constitucional, qual seja a alteração do sentido da norma constitucional vigente,
enquanto reflexo da estrutura de Poder Político, em determinada circunstância
histórica.
Será ela, a mutação, concorde com as aspirações populares ou os
interesses da elite dependendo exclusivamente da estrutura de Poder Político
vigente espaciotemporalmente.
Bugos (1997:54ss) nos
diz o que seja “mutação constitucional”:
“Poderíamos citar ainda Haug, Franz
Klein, Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H. Krüger, Heydte, Peter Lerche,
Tomuschat, Scheuner, Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, Friedrich Müller, que,
igualmente a Hans Kelsen, compreendem a mutação constitucional como a aplicação
de normas que se modificam lenta e imperceptivelmente. Isso ocorre quando às
palavras, que permanecem imodificadas do Texto Maior, se lhes outorga ou
sentido distinto do originário, ou quando se produz uma prática em contradição
com o texto, não sendo um acontecimento peculiar e único na órbita das normas
constitucionais, senão um fenômeno constatado em todos os âmbitos do direito”.
O mesmo autor assim se
manifesta quanto à doutrina da construction
em relação ao Supremo Tribunal Federal:
“A análise das decisões do colendo
Supremo Tribunal Federal demonstra a presença do construcionismo judiciário,
permitindo-lhe desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a
existência de amplos debates sobre problemas constitucionais, tal a messe de decisões repetidas na
aplicação de certas teses. O acórdão a seguir elucida a questão, qual seja o do
pedido de Intervenção Federal n. 14, de 1951, e o da Reclamação n. 315, de
1953, de que foi Relator o Ministro Edmundo Macedo Ludolf, quando lembrou ao
plenário a ‘prerrogativa que competia ao STF de construir o próprio direito, em
dadas circunstâncias de premência e necessidade, em ordem a suprir as
deficiências ou imperfeições da legislação’ (DJ, 28 nov. 1951, p. 4528-9). O
Ministro Edgard Costa também enfatizou que ‘o STF, ao modo da Corte Suprema
norte-americana, desempenha não o papel de um simples tribunal de justiça, mas
o de uma constituinte permanente, porque os seus deveres são políticos, no mais
alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais’”.
Teria mudado, ao longo do
tempo, a posição do STF quanto ao entendimento de que seus deveres são
políticos, sua competência a de construir o próprio direito para além da
expressa vontade do povo, manifestada através das leis que seus representantes
votaram e aprovaram?
Parece que não, haja vista, por exemplo, sua manifestação em relação à
“MP do Apagão”: conforme ficou claro, o STF decidiu não decidir, a pedido do
Governo, para impedir a discussão jurídica, através de sua manifestação em uma
Ação Direta de Declaração de Constitucionalidade por ele promovida.
Outro exemplo patente é a
questão do chamado “teto dúplex” que, em 1993, foi condenado pelo Ministro
Carlos Velloso, como nos lembra o artigo de Marcos Sá Corrêa, publicado na
revista Época, de 20 de março de 1999: “Julgava-se o recurso de um pequeno funcionário
contra a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Policial aposentado, ele voltara à
folha do Estado como professor universitário. Foi demitido por acumulação
indébita e levou o caso à Justiça. Vencera em várias instâncias até ser barrado
por Velloso em 25 páginas de sólidos argumentos”.
Hoje, sabemos, o entendimento do
STF é totalmente diferente.
Nada, porém, demonstra, com
maior clareza, a possibilidade de a interpretação jurídica atender reclamos do
Poder Político quanto a teoria da interpretação evolutiva.
Segundo Barroso
(1998: 137):
“A interpretação evolutiva é um processo
informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de
novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em
razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam
presentes na mente do constituinte.”
Mais à frente:
“Na América Latina, como lembra Anna Candida
da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a
interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites
extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela
hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por
reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional
constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma
deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos
autoritária”.
Barroso lembra que essas mutações
constitucionais são possíveis graças ao elevado teor de indeterminação de
normas constitucionais.
11.2
A POSSIBILIDADE DA DECISÃO CONTRA A LEI
Nada caracteriza tanto a
possibilidade assumida de decisão contra a lei que o chamado “Direito
Alternativo”, surgido na esteira criada pela chamada “Teoria Crítica do
Direito”.
Ele condena a identificação entre Direito e Lei e, mais ainda,
critica asperamente a concepção estatal daquele, apontando fontes outras para o
fenômeno jurídico, qual seja, o dos presídios e zonas comandadas por
traficantes, este sendo o caso da Colômbia.
Trata-se, conforme já mencionado, da crença no
pluralismo jurídico.
Essa possibilidade de decisão
contra a lei que for considerada injusta não é moderna do ponto de vista teórico.
Quem não
se recorda do bom Juiz Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de
Primeira Instância de Château-Thierry, e não se preocupava com a lei, doutrina,
sequer a jurisprudência? Ou da “Escola do Direito Livre”? Ou mesmo da “lógica
do razoável”, de Recazéns Siches?
Entretanto, a fonte dessa teoria é Eugen Ehrlich e
“Fundamentos da Sociologia do Direito”, de sua autoria. Nessa obra ele convoca:
“A Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve
dirigir-se, primeiramente, ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto
deve ser observado.”
E, assim, cai na armadilha preparada pelo empirismo
empedernido, já denunciado em capítulos anteriores, quando se fez a crítica da
lógica indutiva.
O
que é esse “Pluralismo Jurídico”? A idéia de pluralismo jurídico é decorrente
da crença na existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia,
concomitantemente em um mesmo ambiente espaciotemporal.
Assim é que, por
exemplo, em sua Introdução Histórica ao Direito, Gilissen (1988:34) observa:
“nos países coloniais,
nos fins do século XIX e até os meados do século XX, existiam geralmente dois
sistemas jurídicos, um do tipo europeu (common law nas colônias inglesas e
americanas, direito romanista nas outras colônias) para os não indígenas e, por
vezes, para os indígenas evoluídos, e outro do tipo arcaico para as populações
autóctones (...) No fim do período colonial (1960-1975) Portugal tinha feito
das suas colônias africanas províncias e tinha tentado integrar os diversos
sistemas jurídicos. Mas, apesar destes esforços, o pluralismo jurídico está
longe de ter desaparecido de fato”.
Coelho
(1979:115), citando Goffredo Telles Jr., vai um pouco mais além: “A esta
concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo
jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a
maior expressão da normatividade jurídica.”
Quais as conclusões possíveis a
respeito da coexistência de mais de um
sistema jurídico em um mesmo ambiente espaciotemporal? Uma delas, e talvez a
mais intrigante, é a conjectura elaborada pelos teóricos do denominado
“movimento sociológico do Direito” quanto à possibilidade de tal fenômeno ser
uma prova inconteste de que existe um direito da sociedade extra-estatal.
Decorre essa conjectura de uma
adequação do pensamento de Eugen Ehrlich, principal teórico da Escola do
Direito Livre, autor de “Contribuição para a Teoria das Fontes do Direito”;
“Sociologia do Direito”; e “Lógica Jurídica”, aos tempos modernos.
Com efeito,
dada a impossibilidade de coexistência de dois sistemas jurídicos de natureza
positiva, ou seja, cujas leis sejam originadas do Estado, somente é verossímil
a hipótese defendida pela Escola de Sociologia Jurídica, cuja origem remonta a
Savigny e que recebeu sua primeira sistematização com Eugen Erhlich, com fulcro
na idéia de pluralismo jurídico.
Embora, a respeito do pluralismo
jurídico, haja quase um consenso quanto a significar ele a coexistência de
sistemas jurídicos distintos em um mesmo ambiente geográfico-temporal, as
divergências surgem quando se utiliza esse conceito, verossímil para expressar
a apreensão fenomênica de determinadas situações específicas, como aquelas
descritas por Gilissen, para suscitar a teoria da existência de normas
jurídicas não estatais.
Exemplo patente do primeiro caso é
aquele vivido por países colonizadores em suas colônias, bem como outros que
tenham passado por experiências revolucionárias onde a antiga ordem conviveu
durante algum tempo com a nova.
Também é o caso de países como o México e a
Colômbia, onde o Estado admitiu a existência de um determinado ambiente
espaciotemporal em que o sistema jurídico vigente não é o por ele imposto.
Países como Portugal, que teve colônias na África, Inglaterra, e a Índia, por
exemplo, jamais conseguiram tornar seus sistemas jurídicos hegemônicos: os dois
conviviam, de forma complexa, com os sistemas jurídicos nativos.
Quanto ao segundo caso, aceita-se que as normas de conduta estabelecidas pelos presidiários no
interior dos presídios, assim como aquelas existentes nas favelas, expressões
do que Ehrlich entenderia como ordenações jurídicas internas e autônomas, também
seriam um sistema jurídico.
Para aqueles que defendem
caracterizar esse ordenamento tácito e não escrito vigente em presídios e
favelas um “Direito”, tal concepção fulcra uma perspectiva ontológica: uma vez
que há diversos direitos, aquele que com eles trabalha não pode se restringir
ao uso de somente um no seu mister de concretizar a Justiça.
Ou seja, seria possível
uma decisão contra a lei, mas a favor do Direito.
Em síntese, esses juristas
crêem haver Direito resultante de fontes distintas do Estado.
Melhor, acreditam
que há, além da norma positivada ou não (modelo inglês), mas existente, vigente
e eficaz em decorrência da aceitação estatal, alguma outra, pelo Estado não
reconhecida, mas dotada de eficácia e validade jurídica no “habitat” onde surgiu e apta, portanto, a desempenhar o papel necessário para a concretização
da idéia de Justiça que se pretenda obter.
Por outra: as normas
jurídicas positivas estão sempre a reboque dos fatos originando-se, em
decorrência, em situações específicas, descompasso entre a lei e a Justiça. A decisão judicial, no afã de realizar
a Justiça, tanto poderia valer-se da norma estatal como daquela que é “achada nas
ruas”, “alternativa”, “insurgente”, ou “conforme o espírito do povo”.
Bobbio (1996:177) apreendeu,
com notável perspicácia, o âmago da fragilidade dessa crença.
Com efeito, do
ponto de vista epistemológico, a construção teórica da escola sociológica do
Direito somente é possível se o sujeito cognoscente pudesse apreender integralmente o objeto
cognoscível (a coisa-em-si) com o qual se depara em seu
intuito de desvendar a realidade.
Trata-se da crença na possibilidade de ser possível apreender a essência, o âmago da
“coisa” e dele extrair normas de conduta.
Essa crença é antiga
conhecida dos filósofos, oriunda de uma tradição que remonta a Platão e sua
gnosiologia exposta no “Teeteto”, que nos remete a uma teoria das formas e das
idéias, que ao longo dos anos adquiriu diversos nomes, dentre os quais, em direito,
“natureza das coisas”, palavras com as quais Montesquieu inicia o seu “Espírito
das Leis”.
Montesquieu ressalta:
“A
nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela que, em filosofia
moral, é chamada de ‘falácia naturalista’, isto é, pela convicção ilusória de
poder extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato)
uma regra de conduta (que implica em um juízo de valor). O sofisma da doutrina
da natureza das coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de
valor de um juízo de fato.”
A filosofia de ciência,
principalmente, tem se revelado bastante mais avançada em tratar essa questão da
relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível que qualquer outro
ramo do conhecimento.
Assim é que, por exemplo,
tanto Popper (1978:14), quanto Bachelard (1977:33), filósofos, cada um a seu
tempo e a seu modo, mostraram que o vetor do conhecimento é, em última escala,
dirigido do Racional para o Real. E, também, físicos, como Heisenberg.( 1996:12)
Se assim o é, argumentos como
aqueles utilizados por Miaille,(1979:281) que observa: “os juristas (da Escola
Sociológica) quiseram encontrar o direito nos fatos sociais, como um geólogo
encontra minerais na Terra” ou, mesmo por Larenz (1989:78), ao afirmar que
Ehrlich se equivocou ao tratar da dogmática jurídica, corroboram, no universo
do Direito, o quanto está filosoficamente equivocado, em suas premissas, esse
retorno a um certo tipo de idealismo que permite, metodologicamente, ao
intérprete e aplicador da norma, pautar-se por um suposto sistema jurídico
extra-estatal para materializar uma sua concepção de Justiça.
Puro personalismo.
Na realidade, a teoria que extrai
do pluralismo jurídico uma comprovação da possibilidade de existência de normas
jurídicas extra-estatais, e propõe a existência dessas normas jurídicas em
favelas e presídios, não somente extrapola a ciência, mas presta um desserviço
à democracia.
Ao atribuir à realidade imediata um papel que ela não possui, de
indutora de regras universais jurídicas, o intérprete e aplicador do “Direito”
se autonomeia capaz de interpretá-la subjetivamente.
Crê-se ungido em um papel
de demiurgo. Mas, ao final, nada está fazendo além do que, por seu próprio
intermédio, reproduzir, como aparelho do Estado, como integrante da
superestrutura ideológica, o capital simbólico da elite à qual pertence.
Por que, no final das contas,
ao agir contra o Estado, na medida em que desrespeita o princípio da
legalidade, origina uma cultura de desprezo à lei. E esse desprezo à lei,
ao ordenamento jurídico, ao Estado, é um filme já conhecido desde há muito.
Observemos que um dos fulcros em defesa do argumento do Poder Político é o interesse coletivo, do qual esse Poder se
diz representante, embora as normas que amparem as garantias fundamentais
sejam sempre as mesmas.
Aliás, quando a elite cai na armadilha que a realidade
lhe impõe e esbarra no limite estatuído de forma objetiva pela norma, recorre, sempre, a uma norma que lhe seja hierarquicamente superior e de
conteúdo, portanto, muito mais indeterminado, cuja interpretação permitirá sua
escapatória, uma vez que os limites para o subjetivismo foram notavelmente
ampliados.
Perelman (1998:67) denunciou essa prática em sua
“Lógica Jurídica”:
“Finalmente,
os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a
aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um
princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de
encontro às disposições expressas de lei”.
Enfim e ao cabo, esta prática é
sempre uma possibilidade do Poder Político.