segunda-feira, 10 de novembro de 2025

LIBERDADE E CONHECIMENTO

 



* Honório de Medeiros


Uma das consequências do mundo virtual de hoje, ou pós-modernidade, se assim o quiserem denominar, é que somos todos ignorantes no geral e conhecedores no particular. 

Sabemos cada dia mais acerca de cada dia menos, e, nesse ritmo, talvez saibamos, um dia, individualmente, quase tudo acerca de quase nada.

Isso me lembra algo vivido na adolescência: um Congresso Internacional de Fitopatologia, promovido pela Escola Superior de Agricultura de Mossoró (ESAM), para o qual se anunciou a presença de um belga, professor-doutor, especialista na reprodução de um tipo de mosca sazonal, somente existente em nossos litorais.

Ou seja, sabia quase tudo acerca de quase nada.

A verdade é que nosso cérebro possivelmente não suporte fazer a síntese de todo o conhecimento específico ao qual temos acesso, para então estabelecermos generalizações consistentes.

Os troncos que compõem o nosso conhecimento comum, Marx, Freud, Darwin, Einstein, e alguns (poucos) outros, para ficarmos no século XX, breve estarão de tal forma diluídos na nossa memória, que o conhecimento específico possível e atual, consequências dessas teorias fundantes, de tão afastado do original que o precedeu, dele somente guardará, se guardar, pálida lembrança.

É o que se observa, por exemplo, nas citações de trechos descontextualizados de pensadores, possíveis de serem encontrados em trabalhos acadêmicos, com os quais guarda vaga relação.

Vejamos o exemplo da produção dita científica nos mestrados e doutorados, hoje: de tão especializada se apresenta que seus elaboradores passam a ver a realidade por um olho só, quando deveriam ser como Ladão, o dragão com corpo de serpente da mitologia grega, guardião do Pomo das Hespérides, que tinha cem olhos.

Caso queiramos pensar em profundidade, estabelecendo as conexões possíveis do presente com o passado intelectual da espécie humana, teremos sempre que nos reconstruir teoricamente, buscando reiteradamente nossas fundações intelectuais, em uma escala que não tem fim, dado o conhecimento existente.

Onde iremos parar?

Não há tecnologia que nos permita esse maciço empreendimento de inferências, de intuições e deduções, partindo-se de premissas gerais que nos conduzam às conclusões possíveis, após relacioná-las com as infinitas possibilidades que são os fatos ou fenômenos atuais.

Talvez os computadores quânticos consigam, no futuro, mas até onde se sabe, não dispõem da célula-mater, a intuição.

Experimentem teclar, por exemplo, no Google, o verbete “marxismo”, e constatem a quantidade de textos ao qual o leitor tem acesso!

Assim, em consequência, encastelados em nichos de saber, seremos cada vez mais manipuláveis, posto que os fundamentos do conhecimento que alicerçam nossa compreensão acerca do que nos cerca, como a questão da liberdade, está se esgarçando rapidamente.

Acaso as novas gerações se dão conta das causas e do contexto no qual surgiu a discussão acerca da liberdade?

Sabem do titânico choque de ideias entre Platão e os Sofistas no que diz respeito à relação entre o Homem e sua Realidade Moral? Entendem que a vitória de Platão e o consequente exílio intelectual dos sofistas conduziu a civilização ocidental a um longo período de trevas no que diz respeito à liberdade?

Esgarçamento que ocorre, também, em decorrência da necessidade inexorável de vivermos vertiginosamente uma realidade que não compreendemos, de tão fugaz e complexa, de não podermos parar para compreendê-la, o que torna possível a reconstrução diária, por parte de quem controla a mídia, ao seu gosto e interesse, do sentido do que seja liberdade.

Esse é o processo do qual são criadores e criaturas as elites dominantes.

Não vivemos uma plenitude intelectual; sobrevivemos enquanto espasmos.

Somos iludidos e nos auto-iludimos. Estamos hoje tão nus intelectualmente falando, no que diz respeito ao conhecimento geral, quanto nossos ancestrais mais remotos, quando lutavam em meio hostil, caçando e coletando, muito embora as selvas, os desertos e o gelo, onde nos debatemos hoje, sejam de outro tipo.

Como não podemos Conhecer, com C maiúsculo, somos manipuláveis.

Somos crianças com os conhecimentos específicos necessários para sobrevivermos e alimentarmos a realidade que nos nutre e da qual nos alimentamos. Sabemos, como dito acima, cada dia mais acerca de cada dia menos. Sabemos quase tudo, cada dia, sobre quase nada. Este é nosso destino, nossa glória, nosso ocaso...

E como sabemos cada dia mais acerca de cada dia menos, e somos impelidos a tal, e aceitamos, para sobrevivermos na superfície da realidade, com uma extrema especialização, perdemos o contato com o restante do todo, e, em nossa ignorância quanto a esse fato, nos curvamos aos que vêm nos dizer o que nós somos e como devemos fazer em relação às pessoas, às coisas e aos fenômenos.

Somos instados, manipulados, a não perguntarmos acerca do que nos dizem ou escrevem, para não escutarmos que se não nos perguntamos acerca do que conhecemos, porque devemos indagar acerca do que não conhecemos?

Cada qual com seu cada qual. É dessa forma, por exemplo, que as finanças públicas, constituídas pelo nosso suor, às vezes nosso sangue, são um verdadeiro mistério.

"Razões de Estado", dizem. O que é uma "Razão de Estado"? Qual Estado queremos?

Viveremos, no futuro, como os seres humanos de Matrix, sonhando que viviam, quando viviam para sonhar, enquanto a máquina que os mantinha imersos em sonhos, e que é uma alegoria do Estado, se nutria desse sono eterno?


* Arte em vedanta.pro.br
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sábado, 8 de novembro de 2025

PATOS, PARAÍBA: À PROCURA DE MASSILON

 

Massilon


* Honório de Medeiros


Saímos cedo de Pau dos Ferros, RN, no rumo de Patos, Paraíba.

Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick.

À noite perguntamos ao recepcionista de onde tinha vindo esse nome. Com certo sarcasmo sertanejo ele nos disse: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito”.

Franklin Jorge comentou: “se Cascudo tivesse estado aqui, escreveria uma crônica com o seguinte título: ‘Zurick em pleno Sertão paraibano; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça’”.

Fomo à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das dezesseis horas. Arrodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta fechada, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelos curtíssimos, vestido com uma camisa branca de mangas compridas abotoada nos pulsos se aproximou maciamente.

Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça, embora não desmesurada, e nos entregou sua mão também macia para apertarmos.

Padre Francisco foi gentil, delicado.

Na livraria da cidade indagamos à vendedora pelas obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante empoeirada. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local, que eu não comprei.

Nada mais.

Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas... Pessoas indo e vindo rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar preciso, para resolver alguma coisa.

Não havia pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de para-brisa, nem deficientes físicos. Somente uma senhora, personagem folclórico, que me abordou na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”.

Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” disse-me o caixa da farmácia, com um sorriso sarcástico.

Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos, são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo que sempre possuirá.

Belas, as mulheres de Patos. Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Dentes bem cuidados.

Compõem um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupa nossos olhos quando caminhamos pelas ruas da cidade. Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar há essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupõe uma interação constante entre as pessoas e que se opõe à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.

“Por que Patos?”, pergunto à Virgílio Trindade na tentativa de encontrar dois velhos amigos de meu pai, a quem seu primo, também chamado Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, procurado por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, reputa como escritor.

Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, nos deu, com uma voz característica de fumante e locutor, um seu livro de crônicas, Relíquias.

Falou-nos do seu programa político: “é complicado”. “Por quê?” “A gente está falando com alguém ao telefone e no ar e ele grita: eu voto em Lula! Já pensou?” Estávamos no começo da saga lulista na presidência da república.

“Por que Patos?”, repito. “Havia, aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’”. “Onde ficava?” “Ah, quem quer que tenha um quintal em casa diz que era lá”. Esboça um esgar de sorriso sardônico no canto da boca.

Virgílio Trindade nos indicou outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município, que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos em um vão vazio uma moçoila loura tão importante quanto decrépito era o prédio da Secretaria.

Perguntou-nos se tínhamos marcado hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, nos pedindo que aguardássemos o término de uma reunião.

Sentamo-nos durante breves cinco minutos e nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos, enfaticamente, a leitura da obra completa de José Sarney, apropriadíssima para moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.

Passamos no “troca-troca”. Um galpão aberto para todos os lados onde quem quiser chega e expõe sua mercadoria para vender ou trocar.

Seu Antônio, um sertanejo idoso, mas rijo, nos acolheu com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede de pescar em açudes até rádios antigos.

“Troca-se qualquer coisa aqui, Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o troco”. Rimos.

“Você e seu pai são de onde?”, pergunta ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz-lhe que não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio: “ele é muito vaidoso”. Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas e sussurra: “eu entendo como é...”

Quem nos recebeu à porta da casa simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador de viola que primeiro fez dupla com Seu Chico Honório, meu pai, em sua breve carreira, foi sua esposa, baixinha, magrinha e enrugadinha. Tudo no “inha”.

Abriu a porta que dava para uma pequena área antecedendo a salinha de estar e nos envolveu com um delicioso cheiro de alguma iguaria que estava sendo cozinhada no tempero de cominho.

Antônio de Lelé não estava, apesar de Dona Maria afirmar que ele nunca saía de casa, fato desmentido diversas vezes ao longo do dia, para perplexidade nossa. Haveria algo freudiano nessa negação do óbvio?

Finalmente nos encontramos com Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro Dantas na nossa frente sem aquela impaciência que o distinguia.

Antônio de Lelé conversa longamente com Seu Chico Honório pelo celular, enquanto assediamos Dona Maria com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode no cominho.

“O que acompanha?” “Arroz, farofa na gordura, uma saladinha”. “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada.

Constrangida pelo cerco implacável, não entregou os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que convidava”. Renunciamos ao ataque, comovidos. Terminamos sem provar o bode.

Nesse tempo Antônio de Lelé já se despedira alegando que tinha que ir ao Banco, mas que nos aguardava de tarde, e garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou várias vezes, tinha muita mentira.

Eu me lembrei de Orlando Tejo no meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado na cadeira de balanço, a lançar fumaça de um cachimbo preto empesteando o ambiente, falando acerca da Serra do Teixeira onde, segundo ele, havia um marco que ficava no meio do tudo, porque fincado no meio do nada. Lembrei-me dele anos depois, quando por lá passei.

Escrever acerca do Homem, de suas relações, e das Coisas era meu propósito pretensioso. Existirão Coisas ou tudo, além do Homem, nada mais é que um sonho meu, seu, nosso?

E se este Universo nada mais for que um átomo dentre ilimitados outros de um Universo inconcebível que, por sua vez, é um átomo de outro Universo inimaginável, tudo isso em escala infinita? 

Enquanto o carro avançava Sertão adentro, no rumo de Cajazeiras, nossa próxima etapa da perambulação meio séria, meio anárquica, ladeado pela vegetação típica do semiárido, aqui e acolá matizada por um ipê-roxo, juazeiro ou quixabeira especialmente frondosos, e serrotes despidos e enfeitados com pedras esculpidas aleatoriamente, que faziam ondular a paisagem, divagávamos acerca da irrelevância da pesquisa que fazíamos e mergulhávamos na Metafísica. 

Entretanto, a metafísica cansa e deprime o mais das vezes, tamanha a vastidão daquilo que ela contém e tamanha nossa incapacidade.

Voltamos ao concreto. O oceano bravio de questões que se tornou nosso assunto de viagem fez-nos correr em busca de um Porto Seguro: o dia-a-dia, o cotidiano, o detalhe mágico, por exemplo, do andar felino do camponês que se prontificou, sem nos conhecer, a ir conosco em busca de um ex-vereador que, segundo ele, “sabia tudo” acerca de Santa Terezinha, município à vinte quilômetros de Patos, onde tínhamos ido procurar o rastro de um tio de Massilon, o cangaceiro que arrastara Lampião para atacar Mossoró. 

Nada encontramos. Somente esse andar felino, o português arcaico, a cidadezinha pequeníssima, a sensação de absoluta irrelevância de qualquer pressa. Não por outra razão ao falar em pressa diz o sertanejo que “o apressado come cru”. 

O “sabe-tudo” de nada sabia. Ouvira falar que, antigamente...  e coçava o rosto, empurrava o chapéu de couro para trás da cabeça e deixava o olhar vagando pelo cercado onde um menino tangia cabras para algum destino incerto, doido para se livrar da gente. 

Até logo, até logo, muito obrigado, dissemos. Muito obrigado ao pessoal do Cartório de Patos que nada encontrando do que procurávamos nos fez descobrir outra pista.

Muito obrigado a Dona Madalena, da Secretaria da Diocese de Patos. A senhora é tão boa, tão gentil, tão atenciosa, quanto é magra, pequenininha, delicada. E perfumada, a senhora é muito perfumada – a “Alma de Flores” – e elegante, naquela elegância anacrônica de moça velha que dedicou sua vida a secretariar Sua Excelência Reverendíssima, o Bispo Diocesano.

Também organizada, com seu birô impecável, onde duas caixetas, uma para “recebido”, outra para “devolvido”, cumpria a burocracia temporal da Igreja, sua face terrena e humana, a “Cidade dos Homens” que se contrapõe à “Cidade de Deus” da qual nos deu a conhecer Santo Agostinho.

 

Texto transcrito de Massilon (Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins) MEDEIROS, Honório de. Natal: Sarau das Letras. 2010.

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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

I. F. STONE, UM D. QUIXOTE QUE DEU CERTO

I.F.Stone


 * Honório de Medeiros


I. F. Stone, “Izzy”, tinha 45 anos quando deu o passo mais arriscado de sua vida, contou-nos Sérgio Augusto em Uma Pedra no Caminhos dos Poderosos, apresentação da obra O Julgamento de Sócrates.

Escrita aos 77 anos pelo ícone do jornalismo depois de aposentado e após uma jornada intelectual que o levou, na investigação acerca da liberdade de pensamento, a pesquisar as duas grandes revoluções inglesas do século XVII, a Reforma Protestante, os pensadores ousados da Idade Média, a redescoberta de Aristóteles, a Atenas da Antiguidade, e aprender o Grego Antigo.

Em 1952, Stone viu-se desempregado após trabalhar em vários jornais do eixo Nova Jersey – Filadélfia – Nova York, inclusive o Daily Compass e o New York Post, depois de ter granjeado fama nos Estados Unidos e Europa de "mucraking", jornalista especializado em revolver casos de corrupção e abuso de autoridade, trabalhando às margens das redações e desconfiando que qualquer governo tudo faz para esconder verdades incômodas.

Com a indenização do Daily Compass criou uma newsletter sem nada semelhante na imprensa do mundo.

Conta-nos Sérgio Augusto:

Dispondo da lista de assinantes de três publicações para as quais havia trabalhado, assegurou de saída 5.300 leitores. O primeiro número do I. F. Stone’s Weekly chegou aos seus assinantes no dia 17 de janeiro de 1953. Pouco antes de virar quinzenal, em 1968, o alternativo mais bem informado do planeta ultrapassou a barreira dos 40 mil leitores.

Qual não teria sido a influência de Izzy hoje, em tempos de aldeia global!

“Os primeiros anos foram solitários”, Stone recordaria na última edição do jornal, em dezembro de 1971. “Meus leitores me sustentaram” – dentre eles Bertrand Russel, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt.

O I. F. Stone’s Weekly fechou porque Izzy não tinha mais forças, vitimado por uma angina de peito.

Seu artigo de despedida foi comovente:

Tenho podido viver de acordo com minhas convicções. Politicamente, acredito que não pode existir uma sociedade decente sem liberdade de crítica: a grande tarefa do nosso tempo é uma síntese de socialismo e liberdade. Filosoficamente, creio que a vida do homem se reduz, em última análise, a uma fé – cujos fundamentos estão além de qualquer prova – e que esta fé é uma questão estética, um sentimento de harmonia e beleza. Acho que todo homem é o verdadeiro Pigmalião de si próprio. E em recriando a si próprio, bem ou mal ele recria a raça humana e o futuro.

O Julgamento de Sócrates tornou-se uma obra de referência, apesar do nariz torcido de alguns membros da comunidade acadêmica.

Stone fez com Sócrates o que Karl Raymund Popper fez com Platão em A Sociedade Aberta e seus Inimigos: demoliu sua imagem oficial. 

Ao longo das páginas do seu ensaio esmaece o Sócrates “santificado” por Platão e Xenofonte a partir de um julgamento que o condenou à morte, e daquelas pinturas literárias ocultas pela poeira do tempo, surge, aos poucos, pelas suas mãos, um legado: eles tratavam a democracia com condescendência ou desprezo.

Como disse o próprio Stone:

Nas Memoráveis, Sócrates afirma que seu princípio básico de governo é que cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer. O que exigia não era o consentimento dos governados, mas sua submissão. Trata-se, certamente, de um princípio autoritário, rejeitado pela maioria dos gregos, e em particular pelos atenienses.

Em um governo assim, não há espaço para a liberdade de expressão. Esta questão é o fio condutor da obra: Sócrates não quis calcar sua defesa no conceito de liberdade de expressão, tão caro aos gregos do seu tempo – está em Ésquilo, Sófocles, e, principalmente em Eurípedes, para não comprometer seu visceral e antigo desdém com a democracia, escolhendo conscientemente a imortalidade que seu martírio iria originar.

Stone: “Xenofonte afirma que Sócrates queria ser condenado, e fez o que pode no sentido de hostilizar o júri”.

Quando faleceu, em junho de 1989, I. F. Stone, “Izzy”, era uma lenda viva. Mesmo assim continuava sarcástico: “Não consigo me acostumar com o lado dos vencedores”.

Seu radicalismo, seu espírito "outsider" ainda inspiram muitos. Sua postura firme contra a intolerância o torna um ícone para os libertários de todos os credos. E sua história de vida o credencia a tornar-se um exemplo a ser usado pelos que ainda acreditam na espécie humana.


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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

BERTRAND RUSSEL E A CAUSA DO PODER

 

Sir Bertrand Russel


* Honório de Medeiros


Em Power: A New Social Analysis, Sir Bertrand Russel expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da idéia de Poder[1]

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político[2], mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência do Poder seria a ânsia infinita de glória[3], inerente a todos os seres humanos, diz Russel.

Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder. Glória infinita posto que o desejo humano não conhece limites.

Essa ânsia por glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual. Como isso não é possível, surge a instabilidade e a violência.

Tal ânsia, cuja manifestação objetiva é o exercício do Poder, pode ser encontrada em qualquer ser humano: explicitamente nos guerreiros, santos ou políticos, e implicitamente nos seus seguidores: Xerxes não precisava de alimentos, roupas ou mulheres quando invadiu Atenas; Newton não precisava lutar pela sobrevivência quando empreendeu escrever seus “Principia”; São Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola não precisavam criar ordens religiosas para difundir a palavra de Cristo.

Somente o amor ao Poder explicaria realizações tão singulares.

Assim explica, Sir Bertrand Russel: a força propulsora das transformações sociais se resume, em última instância, no apego ao Poder glorioso, que é inerente a qualquer ser humano.

Cabe indagar: o que leva o homem a ansiar por glória?

A ânsia por imortalidade? 

Pode ser. O medo da morte. 

Em A Negação da Morte, de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974. 

Afinal, não foi isso que Platão pôs na boca de Codro, no Banquete:

Supondo acaso que Alcestes... ou Aquiles... ou o próprio Codro teriam buscado a morte - afim de salvar o reino para seus filhos - se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pelo qual, em verdade os recordamos? 

Para Becker, é isso que há de fundamental no ser humano: o medo da morte. Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde o início, seria o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia. 

Agimos, em consequência, para reprimir tal medo, construindo "mentiras vitais" que nos permitiriam enfrentá-lo sob a ilusão de imortalidade histórica, e explicariam, assim, a conduta do homem. 

Uma dessas condutas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permitiria sobreviver na memória dos outros. 

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu Power: A New Social Analysis, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder. 


[1] Poder, segundo Norberto Bobbio, em Teoria Geral da Política, no início do capítulo acerca de Política e Direito, deve ser entendido como a capacidade de influenciar, condicionar, determinar a conduta de alguém.

[2] Norberto Bobbio, em Teoria Geral da Política, abre o capítulo alusivo a "Política e Direito" expondo que o termo “Política” diz respeito às ações por meio das quais se conquista, mantém e exerce o Poder último ou soberano, tal e qual o dos governantes sobre os governados.

[3] Em Darwin, a obtenção da“glória” é um dos meios por intermédio dos quais o homem amplia as possibilidades de sobrevivência dos seus gens, mas essa é outra história...


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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O MISTÉRIO DA AMANTE DE ANTÔNIO SILVINO, O "RIFLE DE OURO"

 


 

* Honório de Medeiros


Anderson Tavares de Lyra, cascavilhando na Biblioteca Nacional (Hemeroteca Digital Brasileira), encontrou essa preciosidade nos arquivos da histórica revista “O Malho”, e houve por bem com ela me presentear.

A fotografia de Antônio Silvino é por demais conhecida. As outras, não. Principalmente a da mulher, que imediatamente chama a atenção, em primeiro lugar por sua beleza, seu ar assustado, sua presença na reportagem; e, em segundo lugar, por provocar, o desejo de sabermos mais acerca de sua história. 

Leiam o que a reportagem da revista diz a seu respeito: 

Antônia de Arruda, amante de Antônio Silvino, tendo ao peito uma medalha com o retrato do amante. 

Nada mais. 

Na época, postei a fotografia na imensa praça virtual que é o Facebook, mais precisamente em "Cangaceirólogos" e "Cariri Cangaço", com o seguinte texto: 

Alguém sabe algo acerca dessa senhora que está na fotografia abaixo? 

Individualmente, pedi a ajuda de Kiko Monteiro, homem forte do "lampiaoaceso.blogspot.com", músico e pesquisador da cultura sertaneja nordestina, dentre outras qualidades. 

As respostas foram interessantes, muito embora o mistério continue. O próprio Kiko Monteiro, por exemplo, observou o seguinte: 

Compadre Honorio de Medeiros deste conjunto de fotos eu já tinha três, mas a legenda não informava o nome da cabocla. Outro dia consultando rapidamente o livro de Sergio Dantas nós identificamos outra paixão do cangaceiro que foi "Maria Anunciada" mas não continha foto para comparação. Agora temos e enfim o que não faltou foi mulé pra este homem. Seria nosso saudoso Alcino acometido do mesmo Gene sedutor de Silvino? Já a foto do Theopanhes avô de nosso confrade Geraldo Ferraz é inédita para mim. Obrigado pelo toque e por compartilhar no grupo. 

Instigado por mim a se manifestar acerca da beleza de Antônia, Kiko Monteiro disse: 

Sim Honorio de Medeiros a beleza dela é evidente, só não mais porque esta foto é de momento de prisão ou interrogatório e certamente a bichinha não estava nada a vontade. Envie para Sergio, para sabermos mais sobre este envolvimento. Se foi passageiro ou se durou e se de repente veio a gerar filhos etc. 

Entrou, então, no vai-e-vem, Geraldo Ferraz, neto do Alferes Teophanes Ferraz, à época Delegado de Taquaratinga, que prendeu Antônio Silvino e, imediatamente, foi promovido a Tenente.

Teophanes é um dos pilares sobre o quais se sustenta a história do cangaço. Geraldo se pronunciou: 

Parabéns, bravos vaqueiros da história. Que belo conjunto foi disponibilizado. Até este momento desconhecia as duas últimas fotos. São, simplesmente, fantásticas. Mostram o "arroucho" da chegada ao Recife, mencionado em minha obra. Vide folha 113, Volume I - "Na manhã de 2 de dezembro, aguardavam a chegada do trem, no largo da Estação Great Western, uma imensa multidão. Essas pessoas haviam chegado ao Recife, vindos de todos os pontos do interior, de trem, a cavalo, em cabriolés, carros de bois ou em lombos de burros, para ver de perto e enxergar com os próprios olhos, o desembarque do famoso bandido". 

Aproveito para recomendar a leitura de seu livro Pernambuco no Tempo do Cangaço, em dois volumes, uma obra fundamental:

 



Depois, entrou em cena o poeta, glosador e ensaísta, Laélio Ferreira.Dele transcrevo as seguintes interessantes e argutas observações:

Será essa senhora a mãe do General?

No final dos anos 20, afastando-se da magistratura potiguar e transferindo-se para Pernambuco, como Delegado-Regional de Polícia e depois Juiz da Comarca de Pesqueira, o Bacharel (de Olinda e Recife) FRANCISCO MENEZES DE MELO, meu tio, ao lado do Coronel THEOPHANES FERRAZ chefiava a tropa (volantes) que procurava impor a ordem na região do Pageú. A amizade entre os dois ficaria marcada pelo batismo de um filho do advogado potiguar, de nome ALUÍSIO MENEZES - hoje aos 84 anos, vivinho da silva. Aluísio, também Bacharel, é figura conhecidíssima nos meios desportivos do RN.

Doei, há algum tempo, toda a minha biblioteca, inclusive os livros sobre o cangaço. mas, tenho certeza de ter lido sobre um filho de Antônio Silvino GENERAL do Exército Brasileiro. Daí a minha indagação sobre ter sido o militar filho dessa senhora, Da. Antônia de Arruda.

Para alegria de nós todos, da Potiguarânia, saibam Vossas Mercês que, numa entrevista, o "Rifle de Ouro", sem citar nomes, falou muito bem, sim senhores, de uns "amigos" e "compadres" do Rio Grande do Norte - que, mesmo depois da sua prisão, não tinham se apropriado dos dinheiros e bens (gado) que lhes havia confiado "para guardar". Por outro lado, esculhambava (sempre sem nomear ninguém) as "mizades" paraibanas e pernambucanas... Arre égua!

Francisco Menezes de Melo, Bacharel de Olinda e Recife, Professor, Advogado, Juiz de Direito no RN e em PE, Delegado-Regional de Polícia naquele Estado, irmão de Othoniel Menezes, primogênito do casal João Felismino Ribeiro Dantas de Melo/Maria Clementina Menezes de Melo.

Theophanes Ferraz, amigo e companheiro do bacharel e magistrado natalense - que muitas vezes, montados ambos, à frente das volantes, fustigaram os cangaceiros - apadrinhou um dos filhos pernambucanos do Dr. Menezes, o também advogado ALUÍZIO MENEZES DE MELO, hoje com 84 anos, residente nesta Capital(Natal).

Uma das legendas do cangaço, teve fama não somente por ser um bom atirador - ganhando o apelido de "O Rifle de Ouro", inclusive, mas também por ser um grande conquistador. "O cangaceiro flechou o coração de várias mulheres, tendo filhos com cerca de 40 com quem manteve relações durante a sua vida", conta o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello.

"Mas muitos desses filhos foram ilegítimos, pois as mulheres não revelavam a verdadeira identidade do pai de seus filhos com medo deles serem arrastados por Silvino para a vida do cangaço", revela Severino Baptista de Morais, um dos quatro filhos reconhecidos por Manuel Baptista de Morais, verdadeiro nome de Antonio Silvino. Um dos filhos ilegítimos de Silvino, citado por Assis Chateaubriand, teria sido o empresário José Ermírio de Morais.

Chatô citou José Ermírio de Morais como filho espúrio de Antonio Silvino num artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1956, intitulado "O Vira Lata da Avenida Paulista", conta Severino de Morais, que adianta: "isto poderia ser apenas uma briga entre grandes empresários não tivesse José Ermírio se utilizado desse fato para sair dizendo que era filho de cangaceiro no sertão de Pernambuco quando fez sua campanha para o senado. Porém, de pois que ganhou a eleição, José Ermírio não tocou mais no assunto". 

Laélio Ferreira enriquecia qualquer debate quando se fazia presente. De sua lavra é a obra prima:

 

 

Como se pode depreender, o mistério aumentou. 

Lá de Pombal, na Paraíba, o professor José Tavares de Araújo Neto também tentou ajudar: 

Vi referência a uma amante de Antonio Silvino , chamada Antonia F. de Arruda, em um dissertação de mestrado, intitulado “De Governador dos Sertões a Governador da Detenção”, de autoria de Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior. Mas fala pouca coisa. Diz que ela foi presa sob a acusação de acoitar o cangaceiro.

O pesquisador Rostand Medeiros em um de seus artigos fez mençao a Antonia, inclusive ilustrou sua com esta mesma foto. A prisão de Antônio Silvio em 1914, por Rostand Medeiroshttp://tokdehistoria.wordpress.com/.../

 Até hoje, que eu saiba, não houve avanço. Estarei enganado?

É aguardar. 

P.S. de Geraldo Ferraz: 

Colocando um pouco mais de lenha na fogueira e, valendo-me do livro Antônio Silvino, o rifle de ouro, do escritor Severino Barbosa, 2ª edição (1979), descubro que, só na parte destinada a Iconografia, o escritor destaca que a senhora da foto havia sido: "O último amor de Antônio Silvino. Sua amante desconhecida, residia em Afogados da Ingazeira". 


Publicado originalmente em honoriodemedeiros.blogspot.com, no dia 15 de novembro de 2013 / honoriodemedeiros@gmail.com /  @honoriodemedeiros

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

ESTADO ALGOZ

 



* Honório de Medeiros


Enquanto passam os dias o Estado comprime e asfixia, lentamente, cada individualidade, cada singularidade, cada pessoa, ampliando os meios pelos quais existe e cresce.

O suor do nosso rosto, parte cada vez maior do nosso pão de cada dia, o resultado do nosso trabalho e esforço, por exemplo, é levado para seus cofres, e quase nada recebemos como retorno, sem que adiante reclamar.

Ouvidos moucos.

Tão certo quanto a morte, somente o pagamento dos tributos, dizia Benjamim Franklin.

Algum dia pagaremos pelo ar que respiramos. 

E cresce, como cresce, o Estado, em uma espiral ascendente sem fim.

Brotam ininterruptamente de suas entranhas legiões de policiais, auditores, fiscais, juízes, promotores, procuradores, guardas de trânsito, guardas municipais, guardas penitenciários, guardas florestais, guardas ferroviários, guardas de portos, militares, agentes administrativos, tesoureiros, assessores, assessores dos assessores, barnabés de todo tipo e modelo.

O Estado comprime, esmaga, esmerilha, prende, sufoca, ameaça, reprime, mata, manipula, tortura, asfixia, bate, vigia...

Um pesadelo!


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@honoriodemedeiros

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

PAU DOS FERROS

 

Fonte: Wikipedia

* Honório de Medeiros (Originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte de nº 97).


Quando os europeus chegaram no Rio Grande do Norte, lá por 1500, encontraram a grande nação tupi-guarani no litoral representada pelos Potiguares, e, no Sertão, Cariris, que significa “os tristonhos, calados, silenciosos”[1], ramo do povo Tapuia. 

Diz uma lenda recolhida por missionários, conta-nos Tarcísio Medeiros, terem os Tapuias vindos de um lago encantado do setentrião continental, tal e qual sugeriu Capistrano de Abreu, descendo a costa e fixando-se no interior depois de acossados pelos tupis. 

Os Tapuia/Cariris estiveram em evidência durante a “guerra dos bárbaros”, iniciada com a resistência à penetração da pecuária que se adensara nas ribeiras dos rios, áreas essenciais à sobrevivência dos animais, mas também à dos índios, que durou sessenta e cinco anos (1685-1750), terminando com a completa vitória do homem branco.[2] 

No Sertão nordestino, especificamente no Sertão potiguar, existiram vários ramos dos Cariris, dentre eles os Pacajus ou Paiacus, habitantes de Portalegre, Francisco Dantas, Viçosa, Riacho da Cruz e Encanto, assim como os Panatis, habitantes de Pau dos Ferros, Encanto, Dr. Severiano, São Miguel e Rafael Fernandes.[3] 

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas, missionários, senhores de engenho de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio Grande, além de oficiais de alta patente que combateram os indígenas, passaram a disputar as terras do Sertão norte-rio-grandense.

Denise Matos Monteiro[4] nos relata uma dessas disputas entre grandes senhores de terras e escravos de Pernambuco e Bahia e colonos potiguares: 

Dentre os sesmeiros de outras capitanias interessados nas terras do Rio Grande, estava, por exemplo, Antônio da Rocha Pita, da Bahia, que através de quarenta dos seus vaqueiros tentou expulsar da ribeira do Assú colonos que lá procuravam estabelecer fazendas de gado. Objetivando atender às reclamações desses colonos, o rei de Portugal mandou demarcar e medir as terras desses sesmeiros em 1701. Anos mais tarde, em 1733, seus descendentes receberam uma larga faixa de terra que se estendia, dessa vez, entre os atuais municípios de Pau dos Ferros e São Miguel, na ribeira do Apodi.[5] 

É certo que a primeira sesmaria que se tem conhecimento, alusiva à região, foi requerida por Manoel Negrão em 1717, e dizia respeito ao lugar denominado “Podi dos Encantos”, presumindo-se que se trate da Data da Conceição.[6] Negrão declarava ser morador da ribeira do Apodi e ter descoberto o terreno em companhia de Domingos Borges de Abreu. 

Entretanto, foi somente em 1733 que a Data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi concedida a Luiz da Rocha Pita Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita, Dona Maria Joana Pita, todos filhos e herdeiros do Coronel Antônio da Rocha Pita.

Como lembra Câmara Cascudo, os “Rocha Pita” eram baianos e foram grandes latifundiários no Rio Grande do Norte. 

Manoel Jácome de Lima observou: 

Diz Ferreira Nobre que em 1733 Francisco Marçal fundou uma fazenda de gado no local em que se achava a vila. Em 1738, afirma o Monsenhor Francisco Severiano no seu livro "A Diocese na Paraíba", foi iniciada a construção de uma capela que em 1756 foi elevada à categoria de matriz com a criação da freguesia, a 19 de dezembro daquele ano.

Começava Pau dos Ferros. 

A paróquia de Pau dos Ferros é a mais antiga da zona Oeste do Estado e, na época, abrangia quase todo o território da atual Diocese de Mossoró. 

O nome da cidade surgiu quando do início do seu povoamento. José Edmilson de Holanda[7] assevera ter o nome da Fazenda de Francisco Marçal, fundada próxima a uma pequena lagoa, onde existia uma frondosa oiticica, repassado ao povoado: 

O nome inicial da fazenda passou ao povoado, pois desde a sua fundação era conhecida por Pau dos Ferros, em face dos vaqueiros gravarem, à ponta da faca, no tronco de frondosa oiticica existente à margem da lagoa, os ferros das reses tresmalhadas que por lá apareciam, com a finalidade de identificar o proprietário e a origem das mesmas. A oiticica servia de pouso para os comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas que por lá passavam. 

Em 1761 o município de Portalegre foi criado englobando o povoado de Pau dos Ferros mas, já no fim do século XVIII, a povoação era maior que sua sede e a cidade de Apodi. 

Em julho de 1841 os pau-ferrenses fizeram uma representação à Assembleia Provincial, assinada por 492 pessoas de todas as classes sociais, pedindo a criação do município. 

A Comissão de Estatística e Justiça, em parecer assinado por João Valentim Dantas Pinagé e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque, foi favorável ao pleito, mas na sessão do dia 4 de novembro de 1841 o requerimento não foi aprovado. 

Em 1847 o deputado provincial João Inácio de Loiola Barros apresentou um projeto transferindo a sede da Vila de Portalegre para a povoação de Pau dos Ferros, pedido também rejeitado. 

Seis anos depois, em 12 de abril de 1853, os deputados Luiz Gonzaga de Brito Guerra, futuro Barão de Assú, e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque (novamente), apresentaram um projeto para elevar a povoação de Pau dos Ferros ao status de Vila, com a denominação de Vila Cristina, tampouco lograram êxito. 

Finalmente, em 23 de agosto de 1856, projeto apresentado pelo Deputado Benvenuto Vicente Fialho, criando o município de Pau dos Ferros, foi aprovado, e em 4 de setembro de 1856 o Presidente da Província, Dr. Antônio Bernardo Passos, sancionou a Lei nº 344, elevando à categoria de Vila o povoado de Pau dos Ferros, determinando os limites do novo município. 

Hoje, Pau dos Ferros, com 259,959 km², limita-se, ao Norte, com São Francisco do Oeste e Francisco Dantas, ao Sul, com Rafael Fernandes e Marcelino Vieira, ao Leste, com Serrinha dos Pintos, Antônio Martins e Francisco Dantas e, ao Oeste, com Encanto e Ereré (CE).

É uma cidade com mais de 30.000 habitantes fixos, segundo dados do IBGE/2017, muito embora nela circulem, em decorrência de sua posição de Polo Regional, cerca de cinquenta mil pessoas por dia. 

Cidade pujante, centro comercial e administrativo da região, centraliza a prestação dos serviços estaduais e federais, e sedia a Escola de Enfermagem Catarina de Siena, a Faculdade do Oeste do Rio Grande do Norte, a Faculdade Evolução do Alto Oeste Potiguar, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Anhanguera Educacional, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 

Ressalte-se, do ponto de vista cultural, a importância de sua Feira Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar (FINECAP), realizada anualmente e congregando toda a região. 

Não por outra razão, a cidade também é conhecida como “Capital do Alto Oeste” e “Princesinha do Oeste”, embora muitos a chamem de “Terra dos Vaqueiros”, ou, ainda, “Terra da Imaculada Conceição”, em homenagem a sua santa padroeira. 

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[1] MEDEIROS, Tarcísio; “Proto-História do Rio Grande do Norte”; Rio de Janeiro: Presença Edições; Fundação José Augusto; 1985.

[2] LOPES, Fátima Martins: “Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte"; Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; 2003. 

[3] MEDEIROS FILHO, Olavo; “Índios do Açu e Seridó”; Natal: Sebo Vermelho; 2011. 

[4] MONTEIRO, Denise Mattos; “Introdução à História do Rio Grande do Norte”; Natal: Flor do Sal; 4ª edição; 2015. 

[5] Pág. 59.

[6] LIMA, Manoel Jácome de; in “Revista Comemorativa do Bicentenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros (1756-1856-1956)"; Natal: Sebo Vermelho; Edição Fac-similar; 2015. 

[7] HOLANDA, José Edmilson de; “Pau dos Ferros: Crônicas, Fatos e Pessoas”; Natal: Gráfica Vital; 2011.

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