sábado, 27 de maio de 2023

AGORA SOMOS SILÊNCIO, QUASE

 


Imagem: Honório de Medeiros


Honório de Medeiro (honoriodemedeiros@gmail.com)


Dia desses olhei para você e me vi. Éramos reflexos um do outro, recortados contra o claro-escuro. Cores que esmaeceram, tingidas de prata. Sépia. Como passaram vertiginosamente os dias e as horas! O tempo é um abismo: vidas que fluíram, esvaneceram-se. Agora, somos silêncio, quase. Dizemos mudos. Construímos pontes para um infinito desconhecido. 

sexta-feira, 26 de maio de 2023

A BALADA DO RETORNO


 Imagem: Honório de Medeiros


Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com).


Agora, retorno. Recolho as velas da minha nau imaginária. Solto a âncora. Desço ao cais. Respiro fundo a solidão da noite. Olho as luzes, as construções. Sigo. Caminho lentamente. A neblina molha as pedras, me molha. Chego à minha porta. Entro. Enxugo o rosto molhado com o braço. Tomo um grogue. Eis que chega seu sorriso luminoso. Seu colo perfumado. Seu olhar de madrugadas. Nossa história comum. Então, há o silêncio. Depois, vinho, cantigas e risos. Dança-se. Estou em casa.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

A BELA ENTRE AS BELAS: ANGLES SUR L'ANGLIN

 


Honório de Medeiros (honoriodemedeiros.blogspot.com)


Atribuíram-lhe o título de "uma das mais belas vilas da França". Nada mais justo. É difícil crer que haja outra tão linda. Supera Sarlat La Canéda. Um pedaço do meu coração ficou aqui, entre esses bosques, no rio L'Angles, nas suas águas verdes escuras profundas, e nas suas ruas tortuosas com casas antigas cujas paredes são tomadas por flores. 

terça-feira, 23 de maio de 2023

UM ACORDEONISTA EM BORDEAUX

 


Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com).


SOU fascinado por artistas de rua. Quando os vejo, paro um pouco distanciado e tento absorver tudo quanto posso deles e de sua arte, na medida em que os encontro em minhas andanças.

Na Europa, eles são muitos. Há desde o acordeonista cuja execução de "La Violetera", uma "habanera" de 1915, tantas vezes escutada na voz de minha mãe, até a quase adolescente que canta, à capela, uma doce canção de sua terra natal, a Itália.

Estou escrevendo acerca das ruas centrais de Bordeaux ou da famosa Place de La Bourse, o palco de encontro de todos, viajantes ou não, que por aqui moram ou andam.

Aproximei-me do acordeonista lamentando não dispor do poder do personagem de uma história em quadrinhos de minha adolescência, que podia ler a vida de qualquer pessoa bastando, para tanto, mergulhar em seus olhos, se o desejasse.

Como não podia nada pessoal lhe perguntar, aqui é ofensivo, tampouco possuía qualquer poder, depositei algumas moedas em sua caneca estendida sobre um pano vermelho que já vira muitas estações, olhei seu rosto cansado, mal cuidado, atribui-lhe uns bons setenta e poucos, e lhe perguntei se por um acaso do destino não saberia tocar "La Violetera".

Ele parou, pareceu buscar alguma lembrança obscura em suas memórias, deu-me um pequeno sorriso e titubeando, no início, mas com desenvoltura, a seguir, inclusive fazendo floreios, digamos assim, jazzísticos, tocou a música que eu lhe pedira como se estivesse no palco do Grande Teatro de Bordeaux, sendo ouvido por todos quanto, ao longo de sua longa vida, em algum momento pararam para ouvi-lo e aplaudi-lo.

NO SERTÃO DA FRANÇA: SARLAT-LA-CANÉDA

 


Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail. com


Sarlat-la-Canéda é uma comuna francesa localizada na região administrativa da Nova Aquitânia, no departamento Dordonha, Périgord-Noir.

Aguardo a partida do trem e escuto "As Quatro Estações", Vivaldi.

E escrevo, claro.

No caminho, Bergerac. Lembro-me imediatamente de Anatole France: "Monsieur Bergerac em Paris".

Um dia, vou lê-lo novamente. 

A região é a rural francesa. 

Seus rios aquosos, plácidos, banham belas, sonolentas e ancestrais cidadezinhas perdidas no verde da França. 

O Perigord é cheio de pequenos "chateaus" repletos de beleza e história que surgem de repente e são rapidamente deixados para trás pelo trem veloz.

Quero parar em cada um deles, conversar com seus castelões, desvendar seus segredos e os de seus antepassados, mas o trem não para. 

Vivaldi continua.

A cerração matinal nos acompanha, o sol se esconde.

O orvalho molha a janela do trem e o mundo fica cinza...

Sarlat é linda, indescritível. 

Andando pelo centro histórico, medieval, fico imaginando o dia-a-dia dos seus habitantes de então: suas relações, os amores, a comida, o sexo, a música, as intrigas políticas, os donos do poder, a escuridão e o silêncio da noite profunda.

Será que um dia volto e refaço todo esse percurso?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

ESTUDO DE CASO: O CANGACEIRISMO

 






Um estudo de Caso: o cangaceirismo

* Honório de Medeiros 

A hipótese do “Outsider” que diz “Não!”, aplicada ao estudo da história. Um método. 

Lampião, porém, era um rude guerrilheiro, um gênio em estratégia, inteligência e astúcia (...) um homem do seu tipo surge de cem em cem anos (Lampião Cangaço e Nordeste, Aglae Lima de Oliveira)[1].

Nesse sentido, a mesma revisão feita sobre tantas das revoltas políticas, sociais e religiosas brasileiras cabe no que toca ao chamado banditismo rural nordestino, de cuja realidade ontológica também se pode dizer gilbertianamente tratar-se de agressão à cultura primitiva, recalcada, porém não destruída (Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço, Frederico Pernambucano de Mello)[2].

Na terra seca, o homem é castigado pela inclemência climatérica, mas tem a compensação da liberdade individual imensa, formando-se uma humanidade altiva, de uma independência quase selvagem, indisciplinada, sem submissões ao trabalho, sem vida sistematizada. Cada homem é dono de suas ventas e, acostumado aos horizontes largos, para ele o mundo é grande e Deus é maior. E Deus é a aventura. É a possibilidade de fazer de suas apragatas verdadeiras botas de sete léguas, que poderão ser utilizadas deserto adentro para os lados em que o sol se põe, sem nunca chegar à serra por detrás da qual ele se deita. Nessa direção, o sertanejo pode vagabundar num verdadeiro caminho para o infinito, fugindo da coerção que lhe venha da polícia ou do trabalho organizado (Brejos e Carracais do Nordeste, Limeira Tejo, citado em Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, por Frederico Pernambucano de Mello)[3]. 

Introdução 

                   É sob esse prisma, o dos inconformados (irresignados) que se revoltam e dizem “Não!”, transgridem e, a partir de então, são considerados “Outsiders”, que poderia ser estudado, por exemplo, o cangaceirismo...

CONTINUA...


[2] PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. Estrelas de Couro. A Estética do Cangaço. São Paulo: Escrituras, 2010.

[3] PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. Guerreiros do Sol. São Paulo: A Girafa, 2004.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

GOVERNO DO RIO GRANDE DO NORTE (1935-2018)





 Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018)


Em 1939, o historiador Luís da Câmara Cascudo apareceu com “Governo do Rio Grande do Norte”, reunindo a história e a trajetória dos governantes que andaram por aqui de 1597 até 1935. O tempo foi passando e ficou uma lacuna a ser preenchida com os que vieram depois.

Foi esta a deixa que levou André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros, em 2018, a reunir uma plêiade de pesquisadores e escritores, dentre eles, historiadores, juristas, jornalistas, professores e continuar até os dias de hoje.

O resultado vem a público em e-book (Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p), apresentando a trajetória dos governantes do Rio Grande do Norte de 1935 a 2018. O livro traz, a princípio, uma listagem organizada por ordem cronológica, contemplando cada um dos governos, a que se segue os perfis dos 25 governos que administraram o Estado neste período.

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018), Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p.

Organizadores: André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros.
Autores: Adilson Gurgel de Castro; André Felipe Pignataro; Carlos Roberto de Miranda Gomes; David de Medeiros Leite; François Silvestre; Honório de Medeiros; Gustavo Sobral; Isaura Rosado; José Antônio Spinelli; Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira; Maria do Nascimento Bezerra; Ramon Ribeiro; Ricardo Sobral; Roberto Homem de Siqueira; Saul Estevam Fernandes; Sérgio Trindade; Tarcísio Gurgel; Thiago Freire Costa de Melo; Vicente Serejo; Walclei de Araújo Azevedo.

Para adquirir o livro, acesse:
https://revistagalo.com.br/selo-bo/

sábado, 21 de janeiro de 2023

DE UMA LONGA E ÁSPERA CAMINHADA

 


O FIO QUE CONECTA A TRAMA

* Gustavo Sobral

Faltava à vertente escrita de Honório de Medeiros, jurista, filósofo, ensaísta e biógrafo, escritor, o livro pessoal. Aquele em que o escritor reúne fragmentos de sua pensata, impressões, expressões, leituras, ficções e que revela um mundo de uma viagem pelo pensamento.

De uma longa e áspera caminhada (Viseu, 2022, 148p), de Honório de Medeiros, é um tanto isso e muito mais. É aquele livro que a gente vai e volta, para, pensa, grifa, relê, anota. É aquele livro que nos faz sair do mesmo e nos faz dialogar com o autor.

Recém-lançado e disponível para compra no site das livrarias e magazines, no Brasil, Portugal e Estados Unidos, em versões impressa e digital, o livro é um navego de um leitor vocacionado pela literatura universal e que revela o escritor cuja vida foi traçada pela leitura e pelos livros, desenhando o seu olhar sobre o mundo.

O leitor há de se aventurar palmo a palmo, a cada página de um pouso no inesperado, o que faz do livro um caminho de surpresas e que faz da leitura um caminho que pode ser próprio além do preposto pelo sumário. É um livro de ir e vir, é um livro para navegar.

O áspero do título pode até ir de encontro a um certa incredulidade e ceticismo que se contrapõe ao leitor do mundo abismado, surpreso, encantado, que toma água de coco na praia e conversa, anda pelo cemitério de Paris e tece uma perfeita crônica em ode ao ipê amarelo, uma beleza à Rubem Braga.

Honório de Medeiros é também aqui filósofo, lógico, matemático, político, cidadão, literato; é também o colecionador de paisagens, sensações, surpresas.  É Rousseau acima de Voltaire e Voltaire acima de Rousseau, com Platão, Popper e outros mais caros ao seu pensamento.

Este é o livro que faltava na biblioteca potiguar pela solidez do conteúdo, forma e o jeito de sabor de conversa que nos conduz. Vale ter na cabeceira como companhia.

A pré-venda é no site da editora Viseu e o livro físico está nos sites da Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime, Submarino. E o e-book nestas e Apple, Barnes & Noble, Google, Kobo, Livraria Cultura e Wook.

Para ler esse e outros escritos acesse

* Gustavo Sobral é escritor, ensaísta e jornalista.

Elogio da dúvida

Vicente Serejo
serejo@terra.com.br

Camarim

 

BRANDE - Para seus amigos não é surpresa, mas será para seus novos leitores: a revelação do grande leitor que é o advogado Honório Medeiros, visto e lido, praticamente, como o pesquisador do cangaceirismo e do coronelismo no RN, com os seus três títulos que são grandes referências.

LEITOR - Depois de Américo de Oliveira Costa - ‘A Biblioteca e Seus Habitantes’ e os quatro volumes de “O Comércio das Palavras’ - Honório mantém a tradição dos grandes anotadores de leituras com seu novo livro - “De uma longa e áspera caminhada”. Edição da Viseu, Paraná, 2022.  

domingo, 2 de outubro de 2022

PODER POLÍTICO E DIREITO (2ª edição)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



MEDEIROS, Honório de. Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional). Belo Horizonte: Editora Dialética. 2020.


INTRODUÇÃO


* Honório de Medeiros

Através deste trabalho pretende-se discutir a pouco trabalhada, conforme assim o afirma Norberto Bobbio, relação entre Poder Político e Direito. São muitas as dúvidas acerca desse tema, principalmente as que dizem respeito à ainda mal resolvida questão da legitimidade do Poder Político que termina sendo, na medida em que se aceite a teoria acerca da instauração do Direito enquanto instrumento do Poder, uma corroboração de que o próprio ordenamento jurídico é um epifenômeno.

Tais dificuldades originaram uma necessidade premente de transcrição de textos, em detrimento de paráfrases. Afinal, a teoria exposta, embora não seja inédita, requer ousadia para ser abraçada. Também se deve à tentativa de rastrear o nascedouro da vertente filosófica acerca do problema em si o uso de tal técnica.

Embora algumas alavancas intelectuais tenham sido introduzidas no texto da dissertação, o sentido no qual devem elas ser entendidas deflui do próprio texto; em outras ocasiões, quando necessário, notas de rodapé esclareceram sua utilização.

Por fim, ressalte-se que esta dissertação pretende discutir acerca da possibilidade da instrumentalização da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica e/ou ordenamento jurídico pelo poder político. Trata-se de uma conjectura, agora submetida à refutação.

Não é novo o tema, embora a ele a doutrina somente se dedique de forma tangencial. Mas a afirmação principal, que norteia a produção do texto, é onipresente no senso comum dos operadores do Direito.

JESUÍNO BRILHANTE o primeiro dos grandes cangaceiros

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Jesuíno Brilhante o primeiro dos grandes cangaceiros. Natal: Editora 8. 2020.



Prefácio

Olhos sem medo

“Há figuras de relativa nobreza, corajosos, incapazes de uma violência contra moças, crianças ou velhos, como Jesuíno Brilhante, e há os repugnantes, brutos, como Lampião” (Câmara Cascudo)


O mérito do historiador não é somente saber contar bem uma história, se tem a doma natural das palavras como ferramentas da arte de escrever. É quando tem os olhos sem medo, acesos pela dúvida. Aqueles que levam às camadas mais profundas dos fatos que desnudam mitos e sangram falsas verdades na espetada de um espinho de mandacaru.

Essa destreza de ordenar os fatos e submetê-los à riqueza do confronto das ideias, Honório de Medeiros já revelava, precocemente, na sua primeira e jovem aventura ensaística, ao ousar o olhar, inédito na bibliografia do Rio Grande do Norte, com o ensaio filosófico Investigação Parcial Acerca da Solidão (Nossa Editora, Natal, 1984).

Depois, fez incursões na filosofia do Direito com sua formação jurídica, mas nada que tivesse a força fundadora de inaugurar o que talvez represente a mais atenta percepção de uma até então inédita visão sociológica do cangaço nas relações de poder no tempo de um coronelismo de senhores e escravos, reinado mágico feito de reis e de vassalos.

No seu primeiro livro sobre o cangaço, Honório desloca a narrativa e vai erguê-la sobre as contradições do mandonismo coronelista dividido entre dominadores e dominados - heróis se aliados, bandidos se rebeldes. Parte integrante de um mundo ungido num processo de heroicização, mas ainda à espera de quem enfiasse os olhos para vê-lo perto, nas próprias entranhas, e compreendê-lo nas grandezas e misérias.

Dois ensaios são fundadores dessa literatura homérica na história intelectual que se fez nos últimos anos elevando a pesquisa histórica ao patamar sociológico e antropológico, na medida em que liberta a narrativa do crivo fácil da descrição: Massilon, nas veredas do cangaço (Sarau Literário, Mossoró, 2010), e Histórias de Cangaceiros e Coronéis (Sebo Vermelho, Natal, 2015).

Este seu novo ensaio - Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros - não é uma aventura adjetivada. Nasce de olhos sem medo, na longa e detalhada tomada de visão que desmonta, corajosamente, uma verdade que anos perdurou livre e inquestionada, ao longo de décadas. Desde os anos cinquenta, nascida na proto-história eivada - embora sem travo de má fé - pelo processo de heroicização que modelou, numa versão claramente impressionista, a figura de Jesuíno Brilhante como um herói romântico.

Medeiros, de alpercatas maceradas no chão pedregoso do sertão mais sertão, não temeu abandonar a trilha. Não abrandou as verdades em torno do cangaceiro e sua história, nem a deixou cair na tentação cômoda de fazê-lo um herói. Bateu as esporas no vazio do cavalo e saiu rastejando a história, desde os antanhos, até encontrar o homem real.

Cuidadoso, antes mapeou a época, fixou o homem e sua história entre as invernadas e estiagens de um sertão do tamanho do mundo, no dizer de Guimarães Rosa. Até sair do outro lado, levando Jesuíno por inteiro, completo, humano e contraditório.

Para tê-lo verdadeiro, nas circunstâncias históricas e construtoras da verdade, até então diluída pela admiração, precisou jogar o jogo das razões e desrazões, e remover a pedra fundamental de uma marca romântica cavada no baixo-relevo da impressão nascida das afeições que movem as sensações da literariedade. É de Câmara Cascudo, no verbete que dedica a Jesuíno Brilhante, no Dicionário do Folclore Brasileiro (Ministério da Educação e Cultura, Rio, 1954), o timbre que Nonato vai repetir no próprio título do seu livro: Jesuíno Brilhante, o cangaceiro romântico (Pongetti, Rio, 1970, na edição original).

Medeiros não perdeu de vista as raízes ancestrais de Cascudo, o filho de Francisco Cascudo, coronel da Guarda Nacional, caçador de cangaceiros, e de quem herdou, por legítimo formal de partilha, a herança de olhar o cangaço como produto de um tempo sem lei a espalhar o horror no sertão do seu pai. Uma civilização trágica e monumental que Cascudo conhecia desde o aboio gregoriano dos vaqueiros à récita lírica dos cantadores, soprando nos lajedos o sentimento trágico e romântico dos homens cósmicos.

É Cascudo o primeiro grande pintor do romantismo de Jesuíno:

__ Jesuíno Alves de Melo Calado, depois chamado Jesuíno Brilhante, foi o cangaceiro gentil-homem, o bandoleiro romântico, espécie matuta de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos anciões oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas.

Mas não é este o Cascudo que descreve a figura do cangaceiro no verbete do mesmo Dicionário, na generalização de acusações imperdoáveis:

__ Diz-se no Nordeste do Brasil do criminoso errante, isolado ou em grupo vivendo de assaltos e saques, perseguido e perseguindo, até a prisão ou morte numa luta com tropa da polícia ou com outro bando de cangaceiros.

Raimundo Nonato, clara e fortemente influenciado por Cascudo, a quem enaltece como fonte pioneira e fundamental, concorda e abriga, sem reservas, o novo herói, aquele da modelagem cascudianamente concebida no barro das afeições:

__ Com esse novo depoimento, o Brilhante afirma uma configuração de cangaceiro romântico, que ninguém até então lhe tinha emprestado.

A afirmação teria sido definitiva se Honório de Medeiros não tivesse enfiado os olhos corajosos nas fontes primárias, tão essenciais ao pesquisador na busca dos fatos perdidos na noite do tempo e tão adormecidos nos velhos jornais. Impulsionado pela força da curiosidade, parte levando no alforje a indagação clássica: Jesuíno, herói ou bandido?

É a essa pergunta que responde neste livro ao longo de mais de uma centena de páginas. Fato a fato. Nome a nome. Como um rastejador de abelhas numa demorada caminhada sobre chãos e lajedos no sertão épico e trágico do nunca mais. Até encontrar Jesuíno. Real e legítimo, forjado nas asperezas do seu tempo feito de pedras e espinhos.

Honório de Medeiros encontra o herói? Ou bate de frente com um bandido impiedoso? Eis a trilha que o leitor, a partir de agora, precisa seguir para encontrar a resposta. Sem levar de antemão, na bruaca, a sentença da condenação, nem o doce favo da lenda que há mais de um século andava vagando no sertão velho, entre crenças e abusões.

Natal, março de 2020, nos dias da peste que veio de longe.

Vicente Serejo

TENENTE-CORONEL CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIROZ FILHO (Artigo)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Tenente-Coronel Childerico José Fernandes de Queiroz Filho. Natal: artigo em Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RN / Instituto Histórico e Geográfico do RN. - v. 99. 2020.

CASCUDO E O CANGAÇO (Artigo)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Cascudo e o CangaçoNatal: artigo em Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RN / Instituto Histórico e Geográfico do RN. - v. 98. 2019.

PAU DOS FERROS ONTEM E HOJE (Artigo)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Pau dos Ferros Ontem e Hoje. Natal: artigo em Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RN / Instituto Histórico e Geográfico do RN. - v. 97 (Ano 2018). 2018.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

FEUDALISMO, CORONELISMO E CANGAÇO (artigo)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



MEDEIROS, Honório de. Feudalismo, Coronelismo e Cangaço. Natal: artigo em Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RN / Instituto Histórico e Geográfico do RN. - v. 92 (jan./mar.). 2016.

PARABELLUM (coletânea)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




GASTÃO, Paulo Medeiros (organizador). Parabellum: "Tiro Certeiro". Mossoró: Coleção SBEC - Universo das Caatingas - Nº 05 - Mossoró/RN.

Do Conceito de Cangaço, Cangaceiro e Cangaceirismo (Honório de Medeiros)

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

HISTÓRIAS DE CANGACEIROS E CORONÉIS

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



MEDEIROS, Honório de. Histórias de Cangaceiros e Coronéis. Natal: Sebo Vermelho Edições. 2015.


APRESENTAÇÃO


* Antônio Gomes


Passados dez anos do lançamento, no Cariri cearense, de “Massilon – Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins”, eis que Honório de Medeiros nos entrega “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, o segundo volume de sua trilogia acerca desse tema fascinante.

Desta vez o livro é dividido em três grandes eixos: no primeiro, “Jesuíno Brilhante, Herói ou Bandido”, o autor, com base em farta documentação, em primeiro lugar nos apresenta uma face mais visível do pouco conhecido, mas muito famoso em sua época, José Brilhante, o “Cabé”, tio materno do único cangaceiro potiguar conhecido, e que foi personagem do romance “Os Brilhantes”; e, em segundo lugar, mostra o quanto talvez seja equivocada a percepção romântica, calcada no mítico Robin Hood, tanto do senso comum quanto dos escritores que se dedicaram a escrever acerca do primeiro dos grandes bandidos rurais do ciclo do cangaço, Jesuíno Brilhante.

No segundo eixo trata do famoso ataque de Lampião a Mossoró analisando-o a partir de uma perspectiva inédita e com informações até então desconhecidas da literatura específica acerca do tema. Aparece, por exemplo, pela primeira vez na história do cangaço, identificado inclusive com imagem, a “oposição oficial” ao Coronel Rodolpho Fernandes e que a ele se contrapôs veementemente nos dias que antecederam a invasão da cidade.

Por fim, no terceiro eixo, constituído de crônicas acerca de temas diversos do cangaço e do coronelismo, trata, por exemplo, de uma misteriosa amante de Antônio Silvino, bem como acerca da famosa “teoria do escudo ético”, ou mesmo do “pacto dos governadores para eliminar os cangaceiros”, dentre outros, que se colocam para o leitor como textos menos densos, mas, nem por isso, menos instigantes.

Como dito outrora, na orelha do “Massilon”, e ainda válido hoje, o que o Autor pretende, e não há razão para que não ocorra da forma como ele deseja, este livro é “nada tão sério que pareça maçante, tampouco tão leve que pareça desfrute.”

Mãos à obra.

Antônio Gomes, Sertão/Natal, 2015.

CRÍTICA

* Prof. Dr. Gilson R. de M. Pereira

            É possível dizer algo novo sobre o Cangaço e sobre o Coronelismo, tão exaustivamente estudados? O que justifica debruçar-se sobre um assunto aparentemente tão esgotado? É possível acrescentar uma informação crucial, uma perspectiva diferente, fazer algum avanço nas análises até aqui feitas? Parece que, pelo menos em relação ao material empírico, não se pode esperar muita coisa, visto que, exceto por um ou outro documento, uma foto, uma carta, que ainda eventualmente possa aparecer, tudo já foi muito esmiuçado. Se isso estiver correto, então não é no âmbito do protocolo que se pode ampliar o que se conhece sobre cangaceiros e coronéis, porém nos métodos e nas análises do material disponível e esta é a contribuição de Histórias de Cangaceiros e Coronéis, Editora Sebo Vermelho, de autoria de Honório de Medeiros, recentemente lançado.

                    O que faz de Histórias de Cangaceiros e Coronéis um marco, um determinante simultaneamente teórico e prático nos estudos sobre o coronelismo e o cangaço, é a mobilização, em objetos precisos, do modo de análise estrutural. Sintetizando, e sem antecipar o conteúdo do livro, o autor, de forma novidadeira, submete o cangaço e o coronelismo a um método de análise que privilegia as relações entre os agentes e as instituições como princípio de conhecimento do real, quer dizer, como princípio de inteligibilidade da particularidade de um mundo social situado e datado. Para isto, Honório se apropria do conceito de “campo social”, formulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, e o aciona a fim compreender e dar a compreender a teia de relações que faz de cangaceiros e coronéis opostos e complementares no proto-campo político do Nordeste brasileiro no período do final do Segundo Império à década de 1930. Digo proto-campo político, pois neste período o campo político ainda não havia se autonomizado e estava imerso numa totalidade social, difusa e parcialmente diferenciada, que anexava a política à economia, à tradição e à religião.

                    O credo metodológico de Histórias de Cangaceiros e Coronéis não é formalizado no livro, e nem seria preciso, mas é esboçado às páginas 225-226. Assim, o vetor epistemológico adotado é claro: vai do racional ao real, de acordo com a máxima sociológica segundo a qual é o mundo social – cientificamente construído – que explica os indivíduos e não o contrário. E para lançar luz nas práticas e representações de cangaceiros e coronéis, Honório recorre não a um vago “contexto social”, nem aos imprecisos “determinantes em última instância da economia”, mas ao campo, ainda não inteiramente estruturado, é bem verdade, no qual se disputavam os móveis e interesses políticos da época.

                    Assim sendo, esse poderoso recurso analítico permite a Honório de Medeiros ver mais longe e dizer coisas não sabidas sobre fatos já conhecidos. As práticas de cangaceiros e coronéis, desse modo, saem do arbitrário, do acaso, do irracional e se encaixam, ainda que na forma de conjecturas, como reconhece o autor, num cenário interpretativo que tem a força da razoabilidade. Na construção deste cenário explicativo, é particularmente interessante o uso das genealogias, recurso fartamente utilizado pelo autor. A garimpagem das relações familiares, dos compadrios e das linhagens não é no texto um mero exercício de erudição e virtuose investigativa, mas um modo de reconstruir a trama das interdependências capazes de conferir sentido aos atos aparentemente mais díspares. Embora pareça extenuante ao leitor desatento, as genealogias auxiliam na construção da economia das trocas materiais e simbólicas entre as famílias, os clãs, os grupos e as facções em disputa pelo poder, em luta pela honra e pela posse de recursos escassos. Assim, é lícito afirmar que em Histórias de Cangaceiros e Coronéis o autor não é tão somente um genealogista inspirado, mas um topógrafo empenhado em descrever a topologia do já mencionado proto-campo político. Ao fazê-lo, ao minuciar a teia de relações familiares, de compadrio e de amizade (e de inimizade), o autor repõe ao mesmo tempo as posições relativas ocupadas pelos diversos agentes no estado do proto-campo político à época. Neste caso, o desafio enfrentado pelo autor foi o de mostrar o funcionamento da lógica prática – esta lógica sem lógicos – capaz de fazer compreender o que os agentes fazem e como e porque o fazem.

                Em Histórias de Cangaceiros e Coronéis, coronéis e cangaceiros partilham do mesmo ethos e do mesmo pathos, pois possuem os mesmos esquemas de pensamento e ação. Isso não significa juntá-los indistintamente num único cesto informe: a análise estrutural separa o que o vulgo junta e junta o que o vulgo separa. O que Honório junta (e o vulgo separa): cangaceiros e coronéis na mesma trama do poder; o que Honório separa (e o vulgo junta): os cangaceiros dos marginais de feira (vide as referências quer à situação econômica de relativa folga das famílias de alguns cangaceiros ou mesmo à estirpe nobre de outros).

                Mas unir coronéis a cangaceiros não seria muito expressivo do ponto de vista analítico, pois ainda seria preciso identificar as distinções nas semelhanças. E, mais uma vez de forma adequada, Honório procura o princípio explicativo das distinções na hierarquia do proto-campo político de então, ou seja, na legitimidade que coronéis possuíam e cangaceiros, não. As alianças conjunturais – de interesses, de ódios, de intrigas, inimizades e amizades – unem o cangaço a frações do coronelismo, mas a legitimidade deste último o demarca do primeiro. É bom lembrar que os cangaceiros não foram indiferentes à legitimidade, a exemplo da “patente” de capitão de Virgulino Ferreira, sempre anunciada com orgulho.

                O capital de legitimidade dos coronéis e o déficit de legitimidade dos cangaceiros pesarão na reprodução posterior dessas duas experiências políticas típicas do Nordeste brasileiro no já mencionado período do final do Segundo Império à década de 1930. O coronelismo, em razão dos trunfos materiais e simbólicos que dispunha e da legitimidade amparada nos poderes do Estado, encontrará, como o autor menciona, formas de sobrevivência, ou seja, de reprodução ampliada quando da modernização do País. As modernas oligarquias e as linhagens familiares que, atualmente, dominam a política no Nordeste descendem do coronelismo. Os cangaceiros, por sua vez, justamente em razão da posição subalterna que ocupavam no proto-campo político durante o mesmo período e da ausência de legitimidade, sucumbiram e foram extintos. Assim, é apenas por um abuso terminológico que hoje se fala em “novo cangaço” ao mencionar os bandos de facínoras que roubam bancos e aterrorizam as pequenas cidades do interior. Não há nenhuma semelhança tanto na forma como no conteúdo.

               Cangaceiros e coronéis não emergem das 285 páginas de Histórias de Cangaceiros e Coronéis inteiriços como se saídos dos mitos e dos contos de fadas, porém contraditórios, dilacerados, ora heroicos, ora pusilânimes, quase sempre horríveis e sombrios. São os vitoriosos e os vencidos de um mundo caracterizado, para usar a expressão de Johan Huizinga a propósito do declínio da idade média, pelo “teor violento da vida”. Afinal, Histórias de Cangaceiros e Coronéis é um livro cheio de atrocidades (“matou, emboscou, decapitou, deflorou, ultrajou, espancou cruelmente” são palavras amiúde encontradas). Contudo, restituí-los – os ofendidos e os ofensores – em sua humanidade, sem preconceitos, eis um inegável mérito da análise estrutural empreendia por Honório de Medeiros.

                Em razão do alcance analítico dos resultados e do manejo modelar do método, penso que, doravante, qualquer ensaio que pretenda fazer avançar o conhecimento sobre o coronelismo e o cangaço deverá, necessariamente, interpelar Histórias de Cangaceiros e Coronéis.

* Gilson Ricardo de Medeiros Pereira possui graduação em Licenciatura em Física pela Universidade de São Paulo (1987), graduação em Bacharelado em Física pela Universidade de São Paulo (1983), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001). Trabalhou como professor efetivo na Universidade Regional de Blumenau, SC, e, atualmente, é professor do quadro da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, atuando no Programa de Pós-Graduação, mestrado em educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, políticas públicas, administração da educação, periódico especializado e disciplina acadêmica.

MASSILON (Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Massilon (Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins). Natal: Sarau das Letras. 2010.


APRESENTAÇÃO


* Honório de Medeiros


Este livro não é uma obra científica, muito embora eu tenha tido a cautela de utilizar a metodologia apropriada quando possível, e parte do que possa ser lido tenha o rigor de pequenos ensaios. Também não é literatura, apesar das crônicas nele contidas. A bem da verdade é um livro, apenas. Sem adjetivos.

Apesar de seu tema central ser Massilon, não houve uma preocupação minha em me limitar. Ao contrário. Deliberadamente extrapolei. E não há razão objetiva para tal. Apenas senti o impulso de fazê-lo: somente assim posso explicar a presença de algumas divagações acerca do conceito de cangaço e outras quaisquer. Também foi opção pessoal transcrever, ao invés de interpretar, muitos dos textos que serão encontrados no livro, embora todos estejam conectados entre si. Preferi, ao fazer essa opção, que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões a partir da transcrição do texto.

A prova inconteste da minha despreocupação com os limites do tema é o “Diário de Viagem”, constituído de crônicas escritas nos locais por onde andei em busca do rastro de Massilon. Nessas viagens tudo foi gratificante: as pessoas, os lugares, os fatos. Aprendi muito, ensinei alguma coisa, aproximei-me de pessoas e me afastei de outras. Revi conceitos e posturas. Construí perspectivas inesperadas. Vivi.

Nesse processo todo, que durou quase sete anos, tive a oportunidade de adquirir respeito e gratidão por muitas pessoas. Sou grato a Michaella e a Bárbara, pela paciência e incentivo; a Jânio Rego e Franklin Jorge, amigos irmãos, pelo companheirismo; a Kydelmir Dantas e Paulo Gastão, porque sem os quais não haveria este livro; a Walter Sandi; Dna. Maria do Céu Leite; Valdecir Pereira Leite e Carolina Gonçalves Pereira; o grande pesquisador José Tavares de Araújo, de Pombal, PB; o Tenente Raimundo Nonato de Lima; o escritor Sérgio Dantas – autor de obras de referência acerca do cangaço, fonte principal deste livro, ao lado de Raul Fernandes e Raimundo Nonato; Socorro Figueiredo; Francisco Dantas Rocha; Gérson Carlos de Morais; Esly Almeida Melo e a professora Célia Magalhães; José de Ribamar Diógenes e José Ubirajara de Morais; Dr. Paulo Germano da Silveira; meu compadre Eriberto Suassuna Barreto, já falecido, mas sempre presente; o professor Pereira, de Cajazeiras, PB; o ex-prefeito de Apodi, Dr. José Pinto; o pesquisador Marcos Pinto; Luciano Pinheiro, de Luis Gomes, RN; o Capitão Francisco Viana; a professora Ida Marcelino; Dna. Raimunda Paiva Fernandes; Carlos Duarte e Cleilma Fernandes; Inácio Magalhães de Sena, Ernane Lima, o grande Aurílio Santos, a quem agradeço de coração, por toda ajuda; Vicente Serejo, a quem devo o subtítulo deste livro; e a tantos outros que hão de me desculpar se não os nominei, refém de uma memória falha.

domingo, 25 de setembro de 2022

JUSTIÇA versus SEGURANÇA JURÍDICA e outros fragmentos (ensaios)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



MEDEIROS, Honório de. JUSTIÇA versus SEGURANÇA JURÍDICA (e outros fragmentos). Natal: Infinita Imagem. 2009.


PREFÁCIO


O DILEMA ENTRE SER FILÓSOFO OU SONÂMBULO

 

Ivan Maciel de Andrade

 

Ao nos ocuparmos de temas jurídicos, sempre e inevitavelmente nos situamos diante do dilema proposto por Ortega y Gasset: ou nos tornamos filósofos ou sonâmbulos. Filósofos – se nos questionamos sobre aspectos ontológicos, axiológicos e epistemológicos do Direito. Sonâmbulos – se nos conformamos com o mero conhecimento, interpretação e aplicação das normas (genéricas e abstratas ou individualizadas) que compõem o Direito Positivo. Não há outra opção. E sabemos que, habitual e frequentemente, os profissionais do Direito – por falta de preparo teórico, resistências ideológicas e outros fatores extrajurídicos – se limitam ao exercício de atividades superficiais e mecânicas, alheios a qualquer preocupação crítica, o que os caracteriza inelutavelmente como verdadeiros sonâmbulos. Muitas vezes conseguem armazenar bom número de informações sobre leis, decretos, resoluções, jurisprudência, e se utilizam desse material, criteriosamente organizado e atualizado, para o desempenho das mais diferentes funções jurídicas. Mas esse é o seu horizonte – a dogmática jurídica, na sua expressão mais restrita, mais limitada, mais operacional.

Isso é o que distingue Honório de Medeiros de outros muitos que escrevem sobre temas jurídicos. Honório tem uma preocupação filosófica, mesmo abordando questões que têm acentuado interesse para a própria dogmática jurídica. A ótica filosófica está muitas vezes simplesmente subjacente, implícita, pressuposta no tratamento atribuído ao estudo e à análise de uma vasta gama de enunciados (alguns deles controversos) pertencentes a diferentes ramos do Direito.

Aspecto importante a ressaltar é que os textos de Honório de Medeiros utilizam uma linguagem acessível, direta, despojada de tecnicismos. Essa peculiaridade torna o seu livro de leitura não somente útil como agradável. É algo que valoriza sobremodo a substância, o conteúdo das concepções expostas e constitui notável exceção à forma – geralmente inóspita – escolhida pelos autores de obras jurídicas para expressarem suas ideias, cuja inconsistência, muitas vezes, fica disfarçada atrás de palavras e construções de insuportável pedantismo.

Vale observar que poucos, raros, no Brasil, se interessaram ou se interessam pela vertente filosófica do Direito. Os exemplos de A. L. Machado Neto e de Tércio Sampaio Ferraz ainda permanecem isolados e inigualáveis. Talvez não tenha surgido ninguém depois deles com o mesmo grau e densidade de conhecimentos jusfilosóficos e com uma contribuição tão original, profunda, complexa e, ao mesmo tempo, fortemente didática à abordagem dos grandes problemas teóricos suscitados pelo fenômeno jurídico.

Sempre me dediquei ao estudo desses aspectos teóricos, sem prejuízo de minhas atividades no Ministério Público Estadual e, depois, na advocacia. Na condição de professor de Introdução ao Estudo do Direito da UFRN, habituei-me a questionar a respeito da natureza do Direito, da necessidade de sua existência dentro da sociedade, dos princípios que regem a criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas. Através desses estudos, creio ter construído uma modesta visão crítica e analítica do Direito.

Lembrando-se, certamente, da orientação filosófica que eu imprimia às minhas aulas no curso de Direito da UFRN, Honório de Medeiros, meu brilhante ex-aluno, resolveu convidar-me para estas palavras iniciais. Sinto-me homenageado e, ao mesmo tempo, feliz em constatar o quanto Honório de Medeiros foi bem-sucedido nas investigações teóricas que realizou, augurando que elas sejam acompanhadas de novas produções de igual nível de qualificação – tanto no âmbito formal, como na abrangência e proficiência dos temas abordados.

PODER POLÍTICO E DIREITO (ensaio, 1a. edição)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS FILHO, Francisco Honório. Poder Político e Direito: A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional. Natal: A.S. Editores. 2003.


INTRODUÇÃO  



Através deste trabalho pretende-se discutir a pouco trabalhada, conforme assim o afirma Norberto Bobbio, relação entre Poder Político e Direito. São muitas as dúvidas acerca desse tema, principalmente as que dizem respeito à ainda mal resolvida questão da legitimidade do Poder Político que termina sendo, na medida em que se aceite a teoria acerca da instauração do Direito enquanto instrumento do Poder, uma corroboração de que o próprio ordenamento jurídico é um epifenômeno.

Tais dificuldades originaram uma necessidade premente de transcrição de textos, em detrimento de paráfrases. Afinal, a teoria exposta, embora não seja inédita, requer ousadia para ser abraçada. Também se deve à tentativa de rastrear o nascedouro da vertente filosófica acerca do problema em si o uso de tal técnica.

Embora algumas alavancas intelectuais tenham sido introduzidas no texto da dissertação, o sentido no qual devem elas ser entendidas deflui do próprio texto; em outras ocasiões, quando necessário, notas de rodapé esclareceram sua utilização.

Por fim, ressalte-se que esta dissertação pretende discutir acerca da possibilidade da instrumentalização da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica e/ou ordenamento jurídico pelo poder político. Trata-se de uma conjectura, agora submetida à refutação.

Não é novo o tema, embora a ele a doutrina somente se dedique de forma tangencial. Mas a afirmação principal, que norteia a produção do texto, é onipresente no senso comum dos operadores do Direito.

sábado, 24 de setembro de 2022

INVESTIGAÇÃO PARCIAL ACERCA DA SOLIDÃO (ensaio)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Investigação Parcial Acerca da Solidão. Natal: Nossa Editora. 1984.


PREFÁCIO


INVESTIGAÇÃO PARCIAL ACERCA DA SOLIDÃO

determinação ou circunstância?

 

* Pedro Simões Neto

 

O livro começou a me interessar a partir do título. A solidão sempre merece uma investigação – mesmo parcial (no duplo sentido).

No Rio Grande do Norte, pelo que sei, é o primeiro trabalho no gênero. E dos raríssimos escritos sobre metafísica. Embora os inéditos repousem, impunes, nas gavetas dos estudiosos.

Sem me decidir se o tema foi determinado, como matéria opcional de investigação, ou circunstancial, produto da análise intro ou extrospectiva, intrigo-me com a revelação da juventude de Honório de Medeiros. Conhecida, evidentemente, nunca intuída ou deduzida, a se julgar pela gravidade do autor/personagem(?).

Surpreende, ainda, o campo de estudos metafísicos empreendido por Honório. O SER, sua existência e sua essência, eis a proposta de experimentações do jovem (?) escritor. Na mesma linha de Liebniz, Bergson, Heidegger, Kierkegaard, Wittgenstein e Sartre – só para alinhar referências.

Mas, ao contrário dos ilustrados companheiros, Honório inaugura (sua ou dos outros?) solidão, partindo de uma escritura intrigante. Hermética, a princípio, talvez em razão do método de investigação, do enunciado metafísico. Aos poucos, no entanto, vai tecendo a (sua ou dos outros?) solidão, com extrema desenvoltura dialética, com liberdade poética. A partir daí o tema perde densidade metodológica e conquista, com bastante vantagem, a condição de mesa de bar, de cotovelos na janela e olhares presos no vazio. Ganha intensidade humana.

Talvez porque se possa definir a obra como construção pessoal do autor, enquanto singular, interessa menos o tecido de sua composição (a despeito de bem elaborado e original) que o artesão que a tece.

O que levaria um jovem em plena conquista de “status” sócio-cultural e econômico – segundo a cartilha civilizatória ocidental – a manter tal base de estudos?

É bem verdade que as referências históricas (contemporâneas ou não), como que balizam a desesperada busca da juventude, por coisa alguma indexada nos valores ditos culturais da civilização. A procura é introspectiva, não pode ser mensurada por qualquer ordem de grandeza materialista.

O “spleen”, o “Weltmerschz”, os “rebeldes sem causa”, a “geração perdida” ... Aconteceu o Movimento Hippie. O ’68 na França. Schumacher fala do ideal de um homem ajustado a uma sociedade perfeita. Fala com ironia. Como se o ideal humano fosse realmente uma sociedade dadivosa, sacietária ...

Talvez Honório esteja certo. Primeiro é preciso conquistar a essência para delinear a existência. Porque é na essência que ele penetra, afastado o “seu” solitário dos problemas da existência, concedendo-lhe o arbítrio do seu próprio projeto de solidão. Cada qual tece e urde o seu próprio arquétipo solitário, que aos poucos deixa de ter uma causa circunstancial e se afirma como opção existencial.

Um projeto ontogenético? Talvez. Talvez algo mais: uma estação poética obsessiva. Que nos afasta de Orwell, de Toffler, de Berdiaev e de quantos concedem à sociedade, à organização social e política, o projeto existencial do Homem.

Determinação ou circunstância, o “projeto” de solidão de Honório de Medeiros é fascinante. Sobretudo porque nos remete à preocupação com o SER, com o existir.

CANTO DE RUA (contos)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com).




RÊGO, Janio Costa. Canto de Rua. Mossoró: Gráfica Tércio Rosado (ESAM). 1977. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A VERDADEIRA REVOLUÇÃO

 * Honório de Medeiros

* honoriodemedeiros@gmail.com


Cobramos muito, dos outros, uma conduta que não seguimos.

Eis a verdadeira revolução: não exigir aquilo que não estamos dispostos a fazer.

Dar o exemplo, eis a questão.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

O HOMEM E A REDE SOCIAL

 * Honório de Medeiros

* honoriodemedeiros@gmail.com


Assim é a rede social: uma praça virtual semelhante a aquelas das cidades do interior de antigamente, onde a vida de cada um era passada a limpo todos os dias. Continuo crendo que o homem não mudou nada com o tempo, apenas antes andávamos a pé ou em cima de animais, hoje viajamos de avião. O homem continua o mesmo, talvez pior: está mais fragmentado, mais cheio de rancor e ressentimento.

domingo, 7 de agosto de 2022

GOVERNO DO RIO GRANDE DO NORTE (1935-2018)

 

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018)


Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018)

Em 1939, o historiador Luís da Câmara Cascudo apareceu com “Governo do Rio Grande do Norte”, reunindo a história e a trajetória dos governantes que andaram por aqui de 1597 até 1935. O tempo foi passando e ficou uma lacuna a ser preenchida com os que vieram depois.

Foi esta a deixa que levou André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros, em 2018, a reunir uma plêiade de pesquisadores e escritores, dentre eles, historiadores, juristas, jornalistas, professores e continuar até os dias de hoje.

O resultado vem a público em e-book (Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p), apresentando a trajetória dos governantes do Rio Grande do Norte de 1935 a 2018. O livro traz, a princípio, uma listagem organizada por ordem cronológica, contemplando cada um dos governos, a que se segue os perfis dos 25 governos que administraram o Estado neste período.

Governo do Rio Grande do Norte (1935-2018), Biblioteca do Ocidente, 2022, 125p.

Organizadores: André Felipe Pignataro, Gustavo Sobral e Honório de Medeiros.
Autores: Adilson Gurgel de Castro; André Felipe Pignataro; Carlos Roberto de Miranda Gomes; David de Medeiros Leite; François Silvestre; Honório de Medeiros; Gustavo Sobral; Isaura Rosado; José Antônio Spinelli; Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira; Maria do Nascimento Bezerra; Ramon Ribeiro; Ricardo Sobral; Roberto Homem de Siqueira; Saul Estevam Fernandes; Sérgio Trindade; Tarcísio Gurgel; Thiago Freire Costa de Melo; Vicente Serejo; Walclei de Araújo Azevedo.

Para adquirir o livro, acesse:
https://revistagalo.com.br/selo-bo/

domingo, 24 de julho de 2022

IRRESIGNAÇÃO PERDOADA: O JÚRI DE JARARACA

 * Pinçado do www.navegos.com.br

* honorio de medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)



IRRESIGNAÇÃO PERDOADA


Honório de Medeiros



No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, no Fórum Municipal de Mossoró, atuei como advogado de defesa no júri simulado sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria José Leite Santana (1901-1927), o notório cangaceiro Jararaca. Era a comemoração do aniversário da resistência de Mossoró ante o ataque do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima. Terminados os trabalhos, o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um. Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”, disse-nos Tolstoi, citando Spinoza. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e aos senhores para mergulhar nas águas do meu próprio passado, pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente. Ali ficava a casa de Rodolpho Fernandes, depois a de Alfredo Fernandes e, em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana.

Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? Porque atacaram Mossoró? Compilei quatro teorias. José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.

Mas como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época na qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?

Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver sem lei e sem rei, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em “O Leviatã”. O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.

José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.

José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos.

Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada.

Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. Herói porque ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. Santo porque intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento. Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo?

Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo, padre Cícero, Santo Agostinho, Maria Madalena, São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança? Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como padre Cícero, para o povo, ele já o é. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão.

Reconstituamos os últimos dias de José Leite de Santana: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia para o jornal “O Mossoroense”; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; e pelo motorista Homero Couto.

Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros. Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente…”.

Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.