Ainda com Popper, admitir ser um dos maiores erros da filosofia apresentar a “evidência por si mesma” como argumento a favor de qualquer sentença, como é feito por praticamente todas as filosofias idealistas, a despeito do caráter conjectural do conhecimento, mesmo quando tratamos com leis naturais, como aquelas que compõem a mecânica de Newton, ontem aparentemente “evidentes por si mesmas”, mas depois entendidas como válidas somente até certo limite pela física relativística de Einstein. Popper lembra que as filosofias idealistas são, muitas vezes, sistemas de apologética de certas crenças dogmáticas, ao mencionar:
“O fato de que uma sentença pareça a alguém, ou mesmo a todos nós, ‘evidente por si mesma’, isto é, o fato de que alguém, ou mesmo todos nós, acreditemos em sua verdade e não possamos conceber que ela seja falsa não é razão para que ela seja verdadeira”.
Com Bachelard, continuando a perfilar argumentos em defesa do Realismo, podemos perceber e criticar as conseqüências do idealismo kantiano, que pretende pôr ordem nas “imagens que faz da natureza, atando-se ao que elas têm de imediato”, deixando de ultrapassar o mero sensitivismo. Ou, com Miaille, especificamente no subuniverso jurídico, perceber o caráter de obstáculo epistemológico que esse Idealismo representa, qual seja o de elaborar uma teoria jurídica que é uma idealização do mundo, não uma explicação científica:
“A questão pode assim ser formulada: dão-nos as abstrações da ciência jurídica uma representação ideológica do mundo do direito, ou, pelo contrário, uma explicação científica? Desde já dou a resposta: a ciência jurídica, tal qual ela é concebida e apresentada, não é senão uma imagem do mundo do direito, não uma explicação. Como é que se manifesta esta representação? É o que temos de procurar explicar agora, para mostrar em que este idealismo constitui um obstáculo epistemológico”.
E Miaille o explica, demonstrando em que consiste esse conjunto de noções, definições, idéias jurídicas que tudo justificam por nada justificarem – moldes proteiformes a serviço do Poder Político. Não por outra razão, como apontado mais além, neste texto, pode-se observar o uso político de aparatos teóricos, tal como o que se faz, por exemplo, ao se mudar o entendimento, o significado, a interpretação de determinada norma jurídica quando ocorre mudança na estrutura do Poder.
Então, uma vez que não é possível escoimar-se de uma metafísica, que o seja através deste auto-de-fé no Realismo. É sensato crer na existência real, objetiva e independente do mundo. É sensato crer que “existem coisas reais, independentes da consciência”. (Hessen, 2000:73). E não é sensato acreditar no Idealismo, bem como no Realismo exacerbado, seja em sua vertente lógico-positivista, empirista, ou fenomenológica.
Ainda, como último argumento em defesa do Realismo, citar Winston Churchill, de quem Popper transcreve um texto do seu “My Early Life – A Roving Comission”:
“Alguns de meus primos que haviam tido a grande vantagem de uma educação universitária costumavam provocar-me com argumentos para provar que nenhuma coisa tem qualquer existência, exceto o que pensamos dela...” “Sempre me apoiei no seguinte argumento, que arquitetei para mim mesmo, há muitos anos... Lá está esse grande sol aparentemente firmado em base não melhor que nossos sentidos físicos. Mas felizmente há um método, inteiramente à parte de nossos sentidos físicos, para testar a realidade do sol... Astrônomos... predisseram por (matemática e) razão pura que um ponto negro passará sobre o sol um certo dia. Olhamos e nosso sentido de visão imediatamente nos diz que os cálculos deles estão confirmados... Utilizamos o que se chama em feitura de mapas militares uma ‘posição cruzada’. Obtivemos testemunhos independentes da realidade do sol. Quando meus amigos metafísicos me dizem que os dados com os quais os astrônomos fizeram seus cálculos foram obtidos originalmente, necessariamente, pela evidência de seus sentidos, digo ‘Não’. Eles poderiam, de qualquer forma em teoria, ser obtidos por máquinas calculadoras automáticas postas em movimento pela luz caída sobre elas sem qualquer mistura dos sentidos humanos em qualquer etapa... Reafirmo com ênfase... que o sol é real, e também que é quente – de fato, quente como o inferno e que, se os metafísicos disso duvidam, devem ir lá e ver.”
Em conclusão, julgo ser possível, dada a fragilidade teórica dos fundamentos do Idealismo e Realismo exacerbado, conceber uma instrumentalização, consciente ou inconsciente, do aparato conceitual de cada uma dessas teorias para outros propósitos que não apenas o da busca do conhecimento. Isso é impensável em termos de uma ciência que se estabelece, ela própria, quando e somente quando suas afirmações (algo real) acerca de algo (existente no espaço e no tempo) sobrevivem às críticas, aos testes, às provas. Quanto menos frágil for o fundamento de uma teoria científica, menos ela se presta a manipulações de natureza política.