segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: A CASA GRANDE DA FAZENDA JOÃO GOMES, EM MARCELINO VEIRA

 

Cônego Bernardino José de Queirós e Sá (1820-1884)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muitos anos depois ao recordar, com a leitura de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, o relato do desaparecimento lento e inexorável da cultura celta na Bretanha do ciclo Arturiano, substituída pela opressiva aliança entre o cristianismo, tal qual o entendia a Igreja católica, e o poderio do Estado romano, associei o sentimento quanto a essa perda à minha própria amargura com a extinção, também impossível de ser detida, da antiga cultura sertaneja nordestina, iniciada no ciclo do gado. 

E recordei quando caminhava, garoto, pelas ruas da minha infância, tangido suavemente por meu pai, a cumprimentar, tímido, os vizinhos, dentre eles um seu colega de trabalho, Francisco Alves Cabral (Seu Chico Cabral), a quem eu conectava imediatamente, por ser filho de Pedro Alves Cabral, com a Casa Grande da Fazenda São João, uma das três ou quatro construídas no “início das eras” naquela Região, o Alto Oeste Potiguar, de onde os Fernandes, todos descendentes do casamento de Mathias Fernandes Ribeiro, filho de portugueses, com a filha de Francisco Martins Roriz, também oriundo da Pátria-Mãe e fundador da cidade de Martins, se espalharam pelo Brasil. 

Pedro Alves Cabral nascera lá, naquela lendária Casa Grande que Lampião recusou atacar, por artes de Massilon, quando invadiu o Rio Grande do Norte se dirigindo a Mossoró, escutara suas histórias e estórias nos serões familiares, testemunhara algumas e era, ele mesmo, o epicentro de uma história contada aos sussurros, entre os adultos Fernandes, mas escutados por meninos de ouvidos ávidos, que atribuía seu nascimento em 1879, no dia de São Pedro, às infidelidades do Capitão Childerico José Fernandes de Queirós e Sá, então proprietário do solar senhorial por casamento com Maria Amélia Fernandes, a Dona Marica do João Gomes, única herdeira de todo o patrimônio do Tenente Coronel Epiphanio José Fernandes de Queirós, conhecido como Major Epiphanio, falecido em 1884, e seu construtor. 

A história de Dona Marica é por si mesma uma lenda na família Fernandes. Consta que Antônio Fernandes da Silveira Queirós (o Major do Exu) teve vários filhos, dentre eles o Major Epiphanio e o Cônego Bernardino José de Queirós e Sá, que foi vigário de Pau dos Ferros de 1849 a 1884. O Major Epiphanio não teve filhos; o Padre, dez a doze, segundo alguns, dezesseis, dizem outros, de várias mulheres, dentre eles Dona Marica, a primogênita, adotada por seu irmão e dele futura e única herdeira. 

Ao assumir João Gomes o Capitão Childerico, ao que consta, segundo as lendas, manteve a tradição inaugurada pelo Cônego Bernardino de povoar os oitões, sótãos e porões da Casa Grande da Fazenda João Gomes, e dele nasceu Pedro Alves Cabral, pai de Seu Chico Cabral, a quem eu sempre associei ao lendário Solar da família e a proteção que recebeu, ao longo da vida, dos Fernandes descendentes do seu avô, bem como lembro, imediatamente, de outras tantas e preciosas histórias/estórias que o pó do tempo insiste em sepultar, e lentamente encaminhar toda uma cultura da qual, hoje, quase não há mais testemunhas vivas, para o desaparecimento.

domingo, 6 de dezembro de 2020

CANGAÇO: MINHA BUSCA POR MASSILON

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Sempre me perguntam, em palestras, entrevistas, debates, por qual razão deixei de lado meus escritos acerca de Filosofia do Direito e me encaminhei para o estudo do cangaço. Eis a resposta...

... As noites da minha infância, quando em férias, excetuando quando ia para o Sertão do Alto Oeste Potiguar, foram passadas na Praia de Tibau, (do Norte) na mesma casa onde meus pais viveram sua lua-de-mel.

Eram noites típicas do nosso verão litorâneo, com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se fizessem as horas, todas estas passadas à luz do lampião de gás no alpendre que nos agasalhava e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.

Para lá eu ia como companhia oficial de Tia Liliosa, a dona da casa, tão logo chegassem os primeiros dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido por Tio Ezequiel[1], irmão de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os padrões de então. 

Ele era o principal acionista de Alfredo Fernandes Indústria e Comércio, uma empresa com sede em Mossoró, correspondente comercial até mesmo em Londres, e que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão.

Nele me impressionava o distanciamento que sabia impor sem elevar a voz e seu vagão de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório central da Firma, em Mossoró, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, nas suas férias anuais, em julho, na Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por nossos ancestrais comuns[2]

Era, então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3], passar o final-de-semana. Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo: a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a noite sempre terminava com alguma história antiga da família Fernandes, principalmente os episódios vividos por Tio Childerico, o "Velho", Tio Childerico, o que se fora para a Amazônia entre menino e rapaz, mais precisamente o Acre, ou Tio Childerico, o “Novo”, e seu encontro com o bando de Lampião[4].

Naquela época Tio Childerico, o que se fora, já era lenda aqui e na Amazônia. As histórias que se contavam a seu respeito diziam respeito a anos passados no meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e perdidas em um passe de mágica, boa parte delas contadas por Calazans Fernandes em sua obra O Guerreiro do Yaco, primeiro volume de uma trilogia romanceada de sua vida[5], e inacabada.

Quanto a Tio Childerico, o “Novo”, sua história era recente e mais singela: dizia respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró, pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a Alfredo Fernandes, seu tio. E dizia respeito à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de quem Tia Bebela se valera para proteger seus filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas que lhe infligia “Menino de Ouro”. 

Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu “anjo-da-guarda”. Por essa razão, até morrer, todo ano mandava celebrar uma missa em sua intenção e em ação de graças pelo salvamento de seus filhos.

Ainda por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre.

Na mesma rua onde nasci e me criei e onde moraram meus pais até que os levasse os desígnios de Deus, em seu final, número 85, ali onde a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai para o bairro da Paraíba e com a Igreja de São Vicente a sua esquerda, fica a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram resistência armada aos invasores[6].

Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros. 

Em 1977, ano do cinquentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro ainda vivo: Asa Branca. 

Mas somente anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados, resolvi sair em busca de Massilon. O primeiro deles foi uma conversa em tom de brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, escrito por Aléxis Gurgel, e que inovava quanto ao suposto motivo real que levara Massilon a empreender seu projeto relativo à Mossoró[7]. E o segundo foi conhecer e me tornar amigo de Kydelmir Dantas e Paulo Gastão, o primeiro Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, e o segundo um dos maiores pesquisadores do tema, no Brasil.

A essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha avaliação, desde a fundação de Martins, a resistência oposta por Rodolpho Fernandes à Lampião[8], passando pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9], as aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, na Amazônia, a história política do interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz, relacionados com os acontecimentos de 1927 em Mossoró.

E se agregou também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de minha terra natal.

Por todos esses motivos surgiu o livro "Massilon: Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins".

[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel, que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca em Mossoró.

[2] Em 1742 Francisco Martins Roriz, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, que daria origem ao povoado que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr., em Martins, a Cidade e a Serra, que a origem da Capela à margem da Lagoa dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu está envolta em lenda: reza a tradição que a esposa de Francisco Martins desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta – mandaria construir, no local, uma capela em honra daquela santa. Logo mais seria localizada, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando erigir a capela ali mesmo. A primogênita de FRANCISCO MARTINS RORIZ, falecido em 1786, MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS, casou-se com MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, nascido pela década de 50 do século XVIII, na freguesia de São João Batista da Vila de Princesa (atual Açu, Rn), filho de FRANCISCO COSTA PASSOS e VIOLANTE MARTINS, citados na obra Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense, de Joaryvar Macedo. Do casamento nasceu, em 1778, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, que casaria com DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ. Por sua vez deste casamento nasceu, dentre outros, JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ E SÁ, que se consorciou com MARGARIDA GOMES DA SILVEIRA, os quais geraram CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ. Do casamento de CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ (falecido em 4.2.1890) com GUILHERMINA FERNANDES MAIA nasceu FRANCISCA FERNANDES DE QUEIRÓZ MAIA, que se casou com HIPÓLITO CASSIANO DE SOUZA (1863-1937). Este casamento originou MARIA EMÍLIA FERNANDES DE SOUZA (1887-1956), que consorciada com OSÓRIO BERNARDINO DE SENA, gerou ALDEIZA FERNANDES DE SENA MEDEIROS, mãe do Autor, casada com FRANCISCO HONÓRIO DE MEDEIROS. 

[3] Francisco Fernandes de Sena estava na trincheira de seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua terra natal, Pau dos Ferros, RN. 

[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de 1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza em Os Fernandes de Souza, que depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe. 

[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de 1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e esclarece por que tantos “Childericos” na família Fernandes: "Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em 1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do esforço inextinguível. O “Guerreiro do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.

[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro, Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô materno Ezequiel Fernandes de Souza.

[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.

[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel Rodrigues de Melo, em seu Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, informa que "A República, de 28 de junho de 1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade, sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr. Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal a República seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do Desembargador Ferreira Chaves". 

[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes, em Memorial de Família: "quando o Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no dia 30 de abril de 1926. Ver História do Rio Grande do Norte, de Tavares de Lyra.

sábado, 5 de dezembro de 2020

TEMPO: UMA CERTA FOTOGRAFIA NA PAREDE

 

American Girl in Italy (Ruth Orkin, 1951)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava, mas ela já parecia estar muito cansada. 

Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. Melhor não, disse aos meus botões. 

A fotografia - melhor dizendo, a reprodução em preto e branco dividia, com outras, a atenção dos frequentadores. 

“É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra. 

Olhei novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinquenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. 

Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas, há algo de aflitivo no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. 

Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Não houvera produção: exceto a ideia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo. 

Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficaremos com o passar dos anos”. 

A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. 

Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha, a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. 

Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava. 

“Você não se preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?”, indagou. “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”. 

“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns mil, fora as gorjetas”. 

As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a rede social e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cem por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês. 

A conta chega. 

“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. 

“Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. 

Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente. 

Desci a escada e ganhei a rua. Procurei o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente, Sidarta, de Herman Hesse. 

Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, enquanto contemplavam as águas de um rio. 

Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a procura do oceano, o rio continua no mesmo lugar. 

A vida passa, mas está. O homem vai, mas a humanidade permanece. 

Fim de noite. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

FÉ: DE UM AMIGO QUE ENCONTROU A FÉ

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Certo amigo meu, até recentemente ateu, me contou acerca de sua conversão. 

Disse-me ele que na meia-idade do conhecimento, na qual chegou por caminhos tortuosos, após perambulações de toda a ordem no universo dos livros, deu-se conta que era o momento de fazer um balanço em regra de sua vida passada e fazer um planejamento, mesmo que capenga, para o resto dos seus dias. 

Um assunto, em especial, assim pensava ele, clamava por atenção: sua relação com a Fé. 

Após esse primeiro ponto firmado, pôs-se a examinar o tema por um viés, digamos assim, oblíquo: entendeu que o importante era pensar acerca do mundo tal qual o estava encontrando, naquele momento. Colocou as mãos à obra. 

Em sua procura, olhando para os lados, para trás e em frente, por todos os ângulos, de todas as formas, somente encontrou o horror, a escuridão mais negra, uma história de sangue e dor, excetuando-se um ou outro ponto de luz a sobreviver sabe-se lá como, nem por quê. 

Explicou-me fazendo um paralelo: imagine, disse ele, o milagre da sobrevivência da Igreja no auge da Alta Idade Média, após a queda de Roma, quando iniciou o período que os historiadores antigos chamavam de "Idade das Trevas". 

O mundo se transformara, então, em um caos. Mas a Igreja sobreviveu graças aos monges irlandeses, que no silêncio e na solidão de seus monastérios, copistas que eram, crentes integrais, legaram ao futuro a doutrina de Cristo. 

É como se hoje em dia vivêssemos um período semelhante. Horror e escuridão, novamente, ou sempre, e o mal lutando com unhas-e-dentes para dominar, para ser hegemônico. Guerras, genocídios, estupros, roubos, torturas, infanticídios... A lista é infindável. 

Se há o mal, disse-me ele, à guisa de conclusão, então há o Bem. Se há o Bem, então há Deus. 

E, assim, por intermédio dessa estranha conclusão, de forma alguma absurda, ele chegou à Fé. 

Deus o tenha.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

ESCRITORES: À MEMÓRIA DOS ESCRITORES ESQUECIDOS

 

Reflexo, na água, do Templo Expiatório da Sagrada Família, obra de Antoni Gaudi, Barcelona. Por Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar histórias abandonadas pela humanidade. 

Da mesma forma, por outro ângulo, na Barcelona gótica (Barri Gòtic), o “Cemitério dos Livros Esquecidos”, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón na bela tetralogia A Sombra do Vento, arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade dos homens ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças. 

Também alberga essa missão a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em Ficções, de 1944, que nos fala do mundo constituído por uma biblioteca sem fim, que abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis, e que somente o gênio do argentino foi capaz de nos persuadir de que sua existência é fictícia. 

São histórias abandonadas tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton em Nos Mínimos Detalhes

“Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas”. 

É a vida, tal como é.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

MORTE: A negação da morte

 


Igreja de São Jesus do Monte, Braga, Portugal

2013

Imagem do autor

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Adolescente, recém-chegado a Natal, apaixonado por livros, não sabia por onde começar na biblioteca de minha tia, que me acolhera em seu apartamento lá pelo início da década de 70. 

Li muito, ali. Alguns livros, várias vezes. Naquele tempo não havia celular, e a televisão ainda engatinhava. 

Dia desses me perguntei quais daqueles livros, alguns ainda em minha posse, me marcaram. Não precisei procurar tanto nos desvãos já meio empoeirados da memória. Foram três, não tenho dúvida. 

Um deles é um clássico: O Meio é a Mensagem, de Marshall McLuhan. Na época, quando o li, não compreendi quase nada, mas o conceito de "Aldeia Global", um meme de McLuhan, fixou residência definitiva em meu cérebro. 

Outro foi um romance de Rabindranath Tagore, A Casa e o Mundo. Uma estória de amor vivida na Índia, escrito com uma sutileza incomum, e uma prosa densamente poética. 

Mas o fundamental, aquele que me marcou para sempre, foi A Negação da Morte, de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974. 

É traumatizante a leitura de A Negação da Morte para um adolescente, quase rapaz. Pelo menos para mim, foi. 

Muito do que li, na primeira vez, também foi incompreensível. A custo, entretanto, de relê-lo, e ir em busca, na obra de Freud, que jazia completa nas estantes de minha tia à minha disposição, dos conceitos-chaves utilizados por Becker, terminei entendendo o núcleo de sua argumentação. 

Platão põe na boca de Codro, no Banquete: "Supondo acaso que Alcestes... ou Aquiles... ou o próprio Codro teriam buscado a morte - afim de salvar o reino para seus filhos - se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pelo qual, em verdade os recordamos?" 

Para Becker, é isso que há de fundamental no ser humano: o medo da morte. Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde o início, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia. 

Agimos, em consequência, para reprimir esse medo, construindo "mentiras vitais" que nos permitam enfrentá-lo sob a ilusão de imortalidade histórica, e explicam, assim, a conduta do homem. 

Uma dessas condutas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permita sobreviver na memória dos outros. 

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu Power: A New Social Analysis, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder. 

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todos os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade. 

A causa da existência da busca pelo Poder, para Russel, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. A glória de quem a alcança, essa “mentira vital”, que supostamente iludiria a morte, por sobreviver na memória dos homens. 

Se o homem não ansiasse pela glória, não buscaria o Poder. Infinita é essa busca, posto que o desejo humano não conhece limites. 

Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer, e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual. 

Como isso não é possível, surge a instabilidade e a violência. 

Em tempos mais modernos, nos quais a ideia de heroísmo e glória pessoal parece ultrapassada, foi substituída pela incessante busca por notoriedade. 

Talvez haja uma forte distinção entre uma e outra, calcada no caráter moral. No primeiro caso parece haver o anseio de passar para a história pelos feitos realizados a partir de uma concepção do Bem, em oposição ao Mal. No segundo, as ações parecem determinadas puramente pelo narcisismo. 

O certo é que Becker criou raízes fundas em mim, seja pelo impacto de uma teoria que tudo explicava no que diz respeito à conduta dos homens, seja pela angústia e prazer intensos que a tentativa de voar alto, nas coisas do espírito, originou. 

Nunca mais fui o mesmo. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

INFÂNCIA: Adeus, infância




Bárbara de Medeiros por Bárbara Lima
* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com             


Quando minha filha tinha sete anos, me comunicou gravemente que não acreditava mais em Papai Noel, coelhinho da Páscoa e na turma da Mônica.

- Acreditar como? perguntei. 

- Que existem, papai. 

- Por quê? insisti. 

- Papai, é que já sou adulta! 

Fora-se o tempo em que ela, aos quatro anos, virara para mãe e lhe dissera, enquanto apontava para a lua em quarto minguante: 

- Mamãe, olhe a lua seca! 

Ou então, com a mesma idade: 

- Mamãe, Papai Noel não desce pela chaminé?

- É. 

- E como ele vai entrar no apartamento para deixar meu presente, se aqui não tem chaminé? 

Ponderei que Papai Noel, por exemplo, existiria enquanto alguém nele acreditasse. Não adiantou. 

- Papai, se eu acreditar então ele existe só p’ra mim? 

Fiquei olhando. E agora, me perguntei, como explicar que Papai Noel é mais ou menos igual ao amor, ou seja, existe enquanto nós acreditarmos? 

Quando pela primeira vez ela nos disse que “talvez Papai Noel não existisse”, senti algo parecido com um desconforto um pouco dolorido. Sua infância estaria indo embora tão cedo? Essas crianças de hoje se tornavam, de fato, adultas antes do tempo? 

E imaginei, na época, que logo, logo, não estaria mais vendo seus braços gordos segurando o guidão da bicicleta, o cabelo espalhado pelo vento, a gargalhada espontânea, enquanto passava, ligeiro, por mim, balançando a mãozinha, no “Bosque dos Namorados”, e logo seu vulto se perdia ao longe. 

Aquela conversa franca e contínua, na qual todos os fatos do dia eram narrados ao mesmo tempo em que passavam por um processo de avaliação muito pessoal, como quando me comunicou que “eu fui atrás de Pedro Jorge, papai, e disse a ele que não estava mais paquerando com ele, e acho que está certo assim, papai, por que eu sou muito nova p’ra pensar nisso, não é”, seria substituída pelo recolhimento natural da adolescência. 

Aí a história passaria a ser outra: nós, adultos, ficaríamos procurando palavras para nos comunicarmos, e encontraríamos impaciência e silêncio. 

Depois, o mundo a levaria. E assim como com todos os outros pais, a nossa esperança viria a ser a internet, o telefone, as visitas esporádicas. 

Apareceriam marido e filhos e a dimensão do sentimento que eu sentia por ela talvez não pudesse nunca mais ser expressa da forma como o fazia naqueles tempos, quando a tinha ao meu lado, na rede, me contando minuciosamente tudo quanto acontecera na escola, e eu aproveitava para fazer cócegas no seu pescoço e assanhar seu cabelo, sob um protesto silenciado com promessas de me comportar que nunca eram cumpridas.

sábado, 17 de outubro de 2020

HISTÓRIA: PAU DOS FERROS. FAMÍLIA FERNANDES E RÊGO. A ELEIÇÃO DAS PEDRAS.

 * Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

Desde 1856, pelo menos, duelam Fernandes e Rêgos pelo poder em Pau dos Ferros, principal cidade do Alto Oeste potiguar. Cento e sessenta e quatro anos de luta política![1]

Este ano, 2020, de um lado temos o prefeito Leonardo Nunes Rêgo – o nome já diz tudo – e, do outro, enquanto principal nome da oposição, o ex-prefeito Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo, muito embora sua candidata seja Marianna Almeida.

Nilton Figueiredo, como é conhecido, é descendente de Childerico Fernandes de Queirós, que do seu segundo casamento, com Maria Amélia Fernandes (Mãe Marica), teve Umbelina Fernandes da Silveira, mãe de Maria Fernandes de Figueiredo (Dona Lalia), sua avó paterna.[2]

Em 1864, na sessão do dia 23 de dezembro, a ata da Câmara Municipal dá conta de requerimento apresentado por alguns vereadores ao Presidente da Província solicitando fosse-lhes “relevada” a aplicação de algumas multas a eles impostas. Requeriam a eles, diretamente, alegando que a Câmara não se reunira em outubro e novembro passados, porque seu presidente, Manoel Pereira Leite, aliado dos Rêgos, estava foragido e “perseguido pela força do Delegado de Polícia”.

Assim decorreram os anos subsequentes, afirma o cronista, José Dantas.

No período que vai de 1865 a 1872, os Fernandes dominaram a Câmara Municipal, presidida por Viriato Fernandes e Hemetério Raposo de Melo, casado com Umbelina Fernandes, filha de Childerico Fernandes de Queirós.

No dia 6 de outubro de 1872, houve eleição para juízes de paz dos distritos e vereadores à Câmara Municipal. Durante quinze dias vieram os eleitores votar, mas não lhes tomaram os votos. A Junta Paroquial, presidida pelo 3º Juiz de Paz, Galdino Procópio do Rêgo, instalou-se na Igreja Matriz, para realizar a eleição, sob o protesto dos Fernandes, sob o argumento da sua incompetência para presidi-la.

A discussão transformou-se em violenta pancadaria dentro da igreja, e, fora, os liderados de ambos os grupos políticos travaram-se em briga corporal, armando-se de paus e pedras.

Muitos foram os feridos, e a Matriz foi seriamente danificada. Cessada a luta, a Junta Paroquial cercou a igreja com um grupo armado, para evitar outra confusão.

Os Fernandes, inconformados, organizaram uma outra Junta, sob a presidência do 1º Juiz de Paz, Childerico José Fernandes[3], e realizaram outra eleição, na Casa da Câmara. Submetida a documentação das duas Juntas à apreciação da Câmara Municipal, esta, em 16 de novembro de 1872, sob a presidência do Dr. Hemetério Raposo de Melo decidiu, por unanimidade de votos, a favor da eleição realizada na Casa da Câmara.

Foram, então, diplomados o Tenente Coronel Epiphanio José de Queiróz, Alferes José Alexandre da Costa Nunes, Manoel Francisco do Nascimento Souza, Manoel Queirós de Oliveira e Pedro Lopes Cardoso.

Vários argumentos foram levados em conta para a decisão, dentre eles o de que o eleitorado foi impedido de entrar na Matriz por uma força armada de clavinote, e o encerramento da eleição ter ocorrido no Sítio “Logradouro”, de propriedade dos Rêgos quando, à meia-noite, os últimos votos foram recolhidos em um chapéu improvisado de urna.

Entretanto, o Governo da Província não lhes foi simpático, e anulou a eleição realizada na Câmara dos Vereadores. E, em 27 de outubro de 1873, por Aviso Ministerial, a Câmara foi cientificada que o Governo Imperial confirmava a eleição promovida pela Junta Paroquial.

Tiveram, assim confirmadas suas diplomações, Galdino Procópio do Rêgo, João Bernardo da Costa Maya, Norberto do Rêgo Leite, Florêncio do Rêgo Leite Gameleira, e João Afonso Batalha.

O povo, que a tudo e todos alcunha, quando sua atenção é despertada, não deixou por menos: batizou o episódio de “eleição das pedras”.

Natal, em 8 de outubro de 2020

Honório de Medeiros

Trineto de Childerico José Fernandes de Queirós, por parte do seu primeiro casamento, com Guilhermina Fernandes Maia.


[1] FREIRE, Cônego Manoel Caminha e outros. Revista Comemorativa do Bi-Centenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros. Natal. Sebo Vermelho. Edição fac-similar. 2015.

[2] FERNANDES, João Bosco e FERNANDES, Antônio Mousinho. Memorial de Família.Teresina. Halley S/A. 1ª edição. 1994.

[3] Trisavô de Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

CANGAÇO: OS CORONÉIS DO CARIRI CEARENSE

 

Coronel Isaías Arruda

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

Os Coronéis do Cariri Cearense

Corria o ano de 1901.

No Cariri, mais precisamente em Missão Velha, o Coronel Antônio Joaquim de Santana, mais conhecido como Coronel Santana, apeia, do Poder, pelas armas, o Coronel Antônio Róseo Jacamaru, chefe político e intendente da Cidade.

Pertencendo à família dos Terésios, originária de velhos troncos coloniais fundadores do Engenho de Santa Teresa, entre Missão Velha e Barbalha, governou-a durante dezesseis anos e alimentou o sonho de dominar o sul do Ceará colocando, em cada município, na chefia, uma pessoa de seu sangue.

Seguiu-se, no tempo, a deposição do Coronel José Belém de Figueiredo, chefe político do Crato, em 1904, após tiroteio que durou dois dias e deixou vinte e uma vítimas, das quais oito mortas.

Logo depois, em 1906, após tiroteio que durou oito horas, caiu o Coronel Manuel Ribeiro da Costa, conhecido por Neco Ribeiro, sobrinho do célebre caudilho Joaquim Pinto Madeira, este da guerra civil absolutista de 1832. Seu algoz foi o Coronel João Raimundo de Macedo, o Joca do Brejão.

Venceu quem conseguiu reunir um maior exército de “cabras”.

Veio, após, o fim do reinado político do Coronel Marcolino Alves de Oliveira, arrancado da chefia política do Quixadá pelos Coronéis Joaquim Fernandes de Oliveira e José Alves Pimentel e, em 1907, em Lavras da Mangabeira, a queda do Coronel Honório Correia Lima, curiosamente o filho mais velho de Dona Fideralina Augusto Lima e irmão de Gustavo Augusto Lima, seus carrascos.

Não podemos esquecer o famoso José Inácio de Sousa (1870-1923), “Zé Inácio do Barro”, a quem se atribui a prática reiterada de financiamento de cangaceiros para saques que lhe rendiam muito dinheiro.

Em 1922, acossado por todos os lados, decidido a ir embora para Goiás ao encontro de Luiz Padre, famoso companheiro de Sinhô Pereira, arquitetou e determinou a execução de uma última empreitada: assaltar três coronéis paraibanos: Valdevino Lobo, Adolfo Maia e Rochael Maia. 

Dessa ação participou não somente Sinhô Pereira, enquanto líder, como, também, o famoso cangaceiro/jagunço Ulisses Liberato de Alencar.

De Valdevino Lobo arrancaram dois contos e oitocentos mil réis e cento e vinte libras esterlinas, além de joias e outros objetos de valor; de Adolfo Maia não se sabe quanto foi roubado. Rochael Maia terminou sendo poupado.

Ulisses disse, em depoimento à polícia, que todo o dinheiro foi entregue a Zé Inácio do Barro.

Não foram diferentes os anos seguintes, como qualquer leitor poderá constatar lendo Império do Bacamarte ([1]), obra inigualável de Joaryvar Macedo, sem qualquer sombra de dúvida uma referência para os estudiosos do fenômeno do coronelismo no Brasil, principalmente do Sertão nordestino, e sua relação com o cangaço e o misticismo próprios da região.

Joaryvar, alicerçado em profunda pesquisa bibliográfica, em jornais antigos, depoimentos pessoais, literatura de cordel, e outras fontes primárias, tal como processos-crimes, nos legou um impressionante painel histórico do Cariri cearense e seus principais personagens, os coronéis.

Teria sido esse epifenômeno, o coronelismo, circunscrito ao Sertão do Cariri? Claro que não. Muito pelo contrário, acerca de sua importância, sua presença no mundo rural brasileiro, consequência tardia de certa estrutura de poder típica de uma aristocracia renascida na América litorânea - os senhores de engenho pernambucanos e paulistas -, renovação da velha árvore multissecular portuguesa, podemos dele tomar conhecimento, a partir da obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, e sua abordagem do feudalismo nacional, “nascido neste lado do Atlântico, gerado espontaneamente pela conjunção das mesmas circunstâncias que produziram o europeu”.

Diz-nos Faoro ([2]):

“O quadro teórico daria consistência, conteúdo e inteligência ao mundo nostálgico de colonos e senhores de engenho, opulentos, arbitrários, desdenhosos da burocracia, com a palavra desafiadora à flor dos lábios, rodeados de vassalos prontos a obedecer-lhe ao grito de rebeldia. Senhores de terras e senhores de homens, altivos, independentes, atrevidos – redivivas imagens dos barões antigos”.

O próprio Joaryvar Macedo assim começa Império do Bacamarte:

“No território pátrio, o fenômeno do coronelismo esboçou-se na Colônia, tornou-se realidade no Império e consolidou-se após o advento da República.”

 Ainda:

“Entre nós a Primeira República, também denominada, consoante já se esclareceu, República dos Coronéis, teve no coronelismo uma das suas marcas principais. Mais acentuado no Nordeste, o fenômeno generalizou-se por todo o País, do Amazonas ao Rio Grande do Sul.”

No Rio Grande do Norte, que houve coronéis, disso não há qualquer dúvida. Basta consultar Coronéis do Seridó, de Pery Lamartine, e conhecer desde o Coronel João Damasceno Pereira de Araújo, o João Damasceno do Saco do Martins, até o Coronel Cazuza do Ipueira, passando por Silvino Bezerra de Araújo Galvão, José Bernardo de Medeiros, Laurentino Theodoro da Cruz e vários outros senhores proprietários de terra e líderes políticos.

Todos descendentes de portugueses que avançaram Sertão adentro, a arrancar da indiada insubmissa a terra que lhes pertencia imemorialmente, até o fim da Guerra dos Bárbaros (1687-1697), quando, por fim, do Vale do Açu, passando por Apodi, no Alto Oeste, até o Seridó, em Acauã, os vitoriosos fincaram definitivamente seus marcos sob os despojos do conflito.

Não somente no Seridó existiram coronéis nos moldes descritos acima. No Alto Oeste também os houve. Uma deposição política, entre coronéis, pela força das armas, violenta tomada do poder.

Embora pouco conhecido hoje, foi um episódio em nada diferente de tantos ocorridos no Cariri, do qual talvez tenha vindo o eco, dada a relativa proximidade entre aquela região e o Alto Oeste potiguar, onde ocorreu a história aqui abordada.

1919. Com o advento da República, o Partido Republicano foi organizado no Rio Grande do Norte sob a liderança de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão. Em Pau dos Ferros essa responsabilidade caberia ao Coronel Joaquim José Correia([3]), sob a liderança direta de Joaquim Ferreira Chaves, que havia sido juiz do município até 1887, quando foi promovido para Nova Cruz.

Joaquim Ferreira Chaves partira tendo deixado o Partido Republicano Federal cindido ao meio em Pau dos Ferros. De um lado, Joaquim José Correia e as famílias Correia, Rêgo e Ayres. Do outro, o Coronel Adolpho Fernandes e as famílias Fernandes, Bessa e Marcelino Oliveira.

Em 20 de março de 1917, pressionado por Ferreira Chaves, Joaquim Correia e Adolpho Fernandes assinaram um acordo político por intermédio do qual caberia, ao primeiro, a liderança política regional que, mesmo assim, teve demitidos seus correligionários dos cargos por eles ocupados e substituídos por indicações de seu opositor.

Como consequência, Joaquim Correia rompe com Ferreira Chaves, mas permanece no partido sob a liderança de Tavares de Lyra e Alberto Maranhão.

Essa cizânia política foi o pano-de-fundo da denominada “Hecatombe de 1919”, que ocasionou a saída de Joaquim Correia de Pau dos Ferros e da política, após briga na qual não faltaram mortos e feridos, como é contada em meu História de Cangaceiros e Coronéis.


[1]Casa de José de Alencar Programa Editorial; Universidade Federal do Ceará; 2ª edição; Fortaleza; 1992. 

[2]Editora Globo; v 1 e 2; 15ª edição; São Paulo, SP; 2000.

[3] Do escritor Bartolomeu Correia de Melo recebi a seguinte correspondência em 6 de abril de 2009: Lourenço Correia, jovem português de Braga, exilado político, chegou ao Brasil por Fortaleza e desceu mascateando até Pau dos Ferros, onde se fixou como comerciante e depois pequeno agricultor. Nesse tempo envolveu-se com a irmã do do amigo Padre Pinto, daí nascendo Joaquim Correia que, tendo a mãe morrido no parto, foi criado e educado pelo tio padre. Após estes fatos, saiu Lourenço de Pau dos Ferros para Macaíba, onde progrediu como comerciante de secos e molhados e, já quarentão, casou-se com Idalina Jacinta Emerenciano (irmã do Professor Zuza), com quem teve mais cinco filhos, sendo os homens: Pedro, Francisco e João Correia. Tendo seu armazém saqueado na revolta do “quebra-quilos”, quando quase foi linchado, mudou-se com a família (filhos ainda crianças) para o Ceará-Mirim onde tinha propriedades rurais e poucos anos depois faleceu. Pedro Correia foi senhor de engenho e Prefeito do Ceará-Mirim, Francisco, foi comerciante, e João (meu avô materno), oficial do Exército.
Joaquim Correia foi deputado por mais de três décadas (considerado por Câmara Cascudo o maior tribuno do seu tempo). Não se enquadrava muito no perfil clássico de coronel nordestino; sempre teve apenas médias posses, havendo morrido na pobreza. Era sim, dono de carisma político e senso de conciliação, somente vencidos pela violência. A versão de sua história, contada por minha avó (cunhada e confidente) confere com fontes e fatos aqui citados. Neste comentário esclareço a relação entre os Correia de Paus dos Ferros e do Ceará-Mirim pouco conhecida pelos não-parentes.”

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

RETÓRICA: MANIPULAÇÃO

 

Branca de Neve no Sertão do Rio Grande do Norte (Honório de Medeiros, 2 de janeiro de 2013)

Talvez um dos maiores legados que uma época de crise possa nos deixar seja a consciência – não para muitos, infelizmente -, de que somos diariamente, de forma colossal, vítimas de manipulação. Somos levados a crer, insistentemente, que algo é necessário, quando não o é; fundamental, quando não o é. Se divergimos, somos atacados de todas as formas. Em tudo, e por tudo, quem ganha com nossa manipulação são as elites corruptas. Acerca da manipulação há muito a ser dito, assim como acerca de sermos inocentes-úteis. Alienados. Não sabemos usar o ceticismo enquanto escudo. Entretanto, como ponto de partida, é importante considerar que toda manipulação é desonesta.

domingo, 9 de agosto de 2020

CANGAÇO: QUEM FOI O IDEALIZADOR DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ

 

Argemiro Liberato e esposa

 * Honório de Medeiros      


Quem foi o idealizador da invasão de Mossoró, em 13 junho de 1927? Não o planejador ou o executor, mas o idealizador?

Sabemos que o planejamento coube ao Coronel Isaías Arruda, a Massilon, e a Lampião. A execução, a Massilon e Lampião.

Mas quem foi seu idealizador?

O ponto de partida para respondermos essa pergunta é a análise da participação, no episódio, desses três personagens principais: Lampião, o Coronel Isaías Arruda, e Massilon.

A importância deles é tal, que sem qualquer um dos três, não teria havido a invasão. Todos os outros participantes são secundários, embora possam ser importantes.

Entretanto, Lampião pode ser retirado, com alguma segurança, dentre os possíveis idealizadores, por uma razão muito simples: Jararaca, testemunha da conversa entre o cangaceiro e o Coronel Isaías Arruda, acerca do projeto de ida a Mossoró, foi muito claro quando afirmou que nunca houve a intenção, do bando, de penetrar no Rio Grande do Norte.

Manoel Francisco de Lucena Filho, o “Ferrugem”, Manoel Ferreira, o “Bronzeado”, assim como Francisco Ramos de Almeida, o “Mormaço”, disseram o mesmo.

E é praticamente consenso na literatura do cangaceirismo, a resistência inicial de Lampião de levar a frente tal aventura.

Sobram o Coronel Isaías Arruda e Massilon.

O Coronel Isaías Arruda também poderia ser retirado, levando-se em consideração o seguinte: ele não chamou Lampião a Aurora, pois vinha sendo pressionado insistentemente pelo Governador do Estado, José Moreira da Rocha, o “Moreirinha”, seu aliado, para se afastar de cangaceiros e jagunços. “Moreirinha”, por sua vez, sofria intensa pressão do Governo Federal nesse sentido.

Mas é notória a participação do Coronel no ataque a Apodi, em 10 de maio de 1927. Como é notório o viés político desse ataque: Coronéis cearenses, paraibanos e potiguares agiram em conjunto, nas sombras, contra a liderança do Coronel Chico Pinto, em crime executado por Massilon.

Então, é de se supor que o Coronel Isaías Arruda não chamou Lampião, mas aproveitou a oportunidade de sua chegada repentina.

Dizemos que aproveitou a oportunidade porque, aparentemente, o projeto de invadir Mossoró já existia há algum tempo e, para tanto, Massilon já recrutava cangaceiros pelo Sertão paraibano, provavelmente em comum acordo com o Coronel.

Existem dois fatos que asseguram a forte ligação entre o Coronel Isaías Arruda e Massilon, fundada em interesses mútuos:

a) em junho de 1926, Massilon e José Gonçalves de Figueiredo mataram João Vieira, em uma emboscada cujo objetivo era eliminarem integrantes da família Paulino, inimigos figadais do Coronel Isaías Arruda. Isso significa que Massilon era da mais estrita confiança do Coronel[1];

b) em maio de 1927, Massilon atacou Apodi, executando projeto do Coronel Isaías Arruda e seu sobrinho José Cardoso, a pedido de Décio Holanda, genro de Tylon Gurgel, chefe da oposição ao Coronel Chico Pinto naquela cidade.

O recrutamento de cangaceiros por Massilon, no intuito de invadir Mossoró, pode ser indiretamente comprovado: antes de Lampião chegar inesperadamente a Aurora, ele não sabia, mas o projeto de invadir Mossoró já existia. É o que se lê às folhas 30, da quarta edição de A Marcha de Lampião[2], Raul Fernandes, no item 2, do 1º Capítulo:

"Em dezembro de 1926, Joaquim Felício de Moura, sócio da firma Monte & Primo, em Mossoró, viajava pelo interior da Paraíba. Na cidade de Misericórdia, encontrou-se com o destacado comerciante e fazendeiro Antônio Pereira de Lima, que lhe falou da acirrada perseguição do bandido Virgulino Ferreira a sua família. Sem maiores rodeios, contou-lhe o plano de Jararaca, Sabino, Massilon e Lampião de assaltarem Mossoró com quatrocentos homens. Adiantou ser impossível reunirem tanta gente. Advertiu-o, porém, sobre o costume de mandarem espiões disfarçados de feirantes, mendigos e cantadores, aos lugares previamente escolhidos. Conversou sobre a possibilidade de defesa da cidade e pediu-lhe levar esses fatos ao conhecimento do Prefeito Rodolpho Fernandes.

Daí por diante os boatos se sucederam. Na última quinzena de abril, 27, a notícia veio à luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal, escreveu ao compadre Rodolpho Fernandes sobre a pretensão do chefe dos bandidos. Dos remotos sertões de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa empreitada".

Em “Notas” (p. 40) ao 1º Capítulo, Raul Fernandes observou:

"Afonso Freire de Andrade e inúmeras outras pessoas conheceram a carta. Mossoró (RN), 23.12.1971. - Informações prestadas ao autor. 
Obs.: Ouvi de meu pai referências à missiva"[3]

Quanto a Argemiro Liberato, no meu Histórias de Cangaceiros e Coronéis[4] (p. 119), transcrevo artigo de Kydelmir Dantas, Cofundador e ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), intitulado Cartas e Bilhetes Antes de Lampião, no qual se lê o que segue:

“Esta carta[5] foi levada ao conhecimento dos amigos de confiança do prefeito, por este, que estavam preparando a estratégia para a formação das trincheiras nos pontos principais da resistência. Dentre estes, Joaquim Felício de Moura, Afonso Freire de Andrade e outras pessoas mais chegadas confirmaram tê-la visto nas mãos do ‘coronel Rodolpho’.

Para a família, dias após o ataque, Rodolpho Fernandes fez referências sobre esta missiva do amigo paraibano de Pombal.

Outra confirmação do envio desta carta está no artigo “Major Argemiro Liberato de Alencar: o amigo de Rodolpho Fernandes”, escrito pelo seu neto Geraldo Alves de Alencar, hoje residente em São Luiz do Maranhão, que cita o seguinte sobre o avô: ‘Era fazendeiro, proprietário da Fazenda Estrelo, situada em sua cidade natal. Exercia também a profissão de comerciante, trazendo da Paraíba algodão transportado em costas de burros e vendido em Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. O principal comprador era a firma cujo maior acionista era seu amigo e compadre o Cel. Rodolfo Fernandes. Em suas viagens como almocreve retornava a Pombal com sal e outros gêneros. Mesmo tendo um sobrinho nas hostes do cangaço, o qual atendia pelo nome de Ulisses Liberato de Alencar, Argemiro era profundamente contra o banditismo rural, chegando inclusive a avisar ao Cel. Rodolfo Fernandes, quando este era prefeito de Mossoró em 1927, que o cangaceiro tencionava atacar a cidade considerada capital do oeste potiguar. Declaradamente anti-Lampiônico, Argemiro Liberato de Alencar nunca chegou a ser perseguido pelo “rei do cangaço” porque Lampião sabia da amizade existente entre ele e o Padre Cícero.’

Evidentemente o aviso não era acerca de um futuro ataque de Lampião, mas, sim, de um futuro ataque de cangaceiros”.

Provavelmente Joaquim Felício estivesse errado quanto a José Leite de Santana, o Jararaca. Como nos assevera Frederico Pernambucano de Mello[6], a área de atuação do cangaceiro a área de atuação do cangaceiro eram as ribeiras do Moxotó e Pajeú, em Pernambuco. E o próprio Jararaca, declarou, quando preso em Mossoró, além de outros cangaceiros, que Lampião nunca pensara em atacar a cidade[7].

Já Sabino Gomes de Góis, embora atuasse nos arredores do município de Cajazeiras, Paraíba, estava, naquele momento, integrado ao bando de Lampião, desde o ataque à Souza, no mesmo Estado, em 27 de julho de 1924, do qual não se separará até sua morte (dele), em fevereiro de 1928, após o conhecido tiroteio de Piçarra, em Porteiras, Ceará.

Ora, se Sabino tinha intenção de aventurar-se até Mossoró, é evidente que Lampião seria o primeiro a sabê-lo. Repita-se, entretanto: Lampião nunca teve a intenção de invadir o Rio Grande do Norte. Sequer sabia da existência desse projeto. Os escritos acerca da história da invasão de Mossoró são consensuais quanto a isso, a partir dos depoimentos de vários cangaceiros, dentre eles, Jararaca.

Ainda a favor dessa hipótese, a de que o ataque foi idealizado bem antes de sua realização há, também, além da correspondência de Argemiro Liberato e do recado de Joaquim Felício, a notícia veiculada pelo “O Mossoroense” de 15 de maio de 1927, de que na invasão de Apodi, por Massilon, o projeto de invadir Mossoró já existia, insinuando, sem rodeios, que essa pretensão, a ocorrer em dias vindouros, integrava empreitada de grande vulto, e dele dera conhecimento, ao Coronel Rodolpho Fernandes, a carta de Argemiro Liberato.

Observe-se que essa edição de “O Mossoroense”, jornal dirigido por Rafael Fernandes, primo e correligionário do Coronel Rodolpho Fernandes, veio a lume cinco dias após a invasão de Apodi por Massilon. Basta, então, darmos a devida importância à ligação entre essa matéria do jornal e a anterior correspondência de Argemiro Liberato encaminhada ao Prefeito, bem como ao recado de Joaquim Felício.

Se assim o é, se de fato o Coronel Isaías Arruda e Massilon trabalharam juntos nessa empreitada antes da chegada de Lampião, desde, pelo menos, meados de 1926, se a ambos podemos atribuir todo o planejamento do projeto, a pergunta, agora passa a ser outra: foram eles que idealizaram (arquitetaram) o projeto da invasão a Mossoró?

É muito difícil acreditar que Massilon recrutasse cangaceiros e jagunços pelo Sertão, sem que disso soubesse o Coronel Isaías Arruda.

Outra questão: por que Mossoró? Por que não Cajazeiras, Souza, Patos ou Pombal, na Paraíba? Caicó, Currais Novos, São Miguel, Pau dos Ferros ou Martins, no Rio Grande do Norte, ou as cidades do Vale do Jaguaribe, no Ceará, se o objetivo fosse meramente arrancar dinheiro?

E se o objetivo era meramente arrancar dinheiro, por que o alvo do ataque foi a residência do Coronel Rodolpho Fernandes, e, não, a agência do Banco do Brasil ou o comércio da cidade?

Então, cabe perguntar: quem, na verdade, idealizou (arquitetou) o ataque a Mossoró?

Qualquer que seja a resposta, de tudo quanto se disse algo fica claro: o Coronel Isaías Arruda e Massilon foram os grandes responsáveis pela invasão de Mossoró. Principalmente Massilon, que planejou com o Coronel, e executou com Lampião. 

Ele é o personagem principal desse drama épico, e somente é possível uma história de tudo quanto aconteceu, uma história que tenha causas e efeitos, e não apenas a descrição horizontal do acontecimento em si, se o investigarmos, bem como suas conexões com os coronéis da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, para os quais “jagunçou”, mas sempre como chefe de bando.

[1] Conforme Vida e Morte de Isaías Arruda; TAVARES CALIXTO JÚNIOR, João. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora; 2019.

[2] Natal: Editora Universitária, 1982.

[3] Raul Fernandes era filho do Coronel Rodolpho Fernandes. 

[4] MEDEIROS, Honório de. Natal: Sebo Vermelho, 2015. 

[5] A de Argemiro Liberato para o Coronel Rodolpho Fernandes. 

[6] “GUERREIROS DO SOL”; 2a. edição; A Girafa; 2004; São Paulo, SP. 

[7] No “Auto de Perguntas” feitas a Jararaca consta, também, a seguinte declaração sua: “que saíram em dias do mês de maio findo, do Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano”. Antes de Lampião, Jararaca, ainda segundo seu depoimento, estava no Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade, com a Coluna Potiguara (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).

 

Massilon