sábado, 2 de fevereiro de 2019

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A ELEIÇÃO DE 1934-1935 NO RIO GRANDE DO NORTE


* Honório de Medeiros        

Em uma avaliação muito pessoal penso que a década de 20, no Rio Grande do Norte, acabou quando o Partido Popular elegeu o Governador do Estado após a vitoriosa campanha de 1934-1935 e a aristocracia rural cedeu, assim, o Poder à burguesia mercantil/industrial que se instalava em terras potiguares. 

Esse novo Brasil que surgia após a Revolução de 30 – hoje tão esquecida – e se consolidou na Era Vargas, mas cujo ideário “tenentista” pode ser rastreado até o Golpe de 1964, no Rio Grande do Norte encontrou, quando da redemocratização depois aviltada por Getúlio, uma estranha situação política configurada de forma radical no embate político partidário de 34/35: de um lado, liderado por Mário Câmara, união entre cafeístas, que poderiam ser posicionados à esquerda do espectro político, e coronéis do interior do Estado, proprietários de terras e criadores de gado, acostumados ao mando mais absoluto em seus redutos eleitorais; e, do outro, a burguesia mercantil e industrial cuja base maior, surgida a partir do cultivo e beneficiamento de algodão e exploração do sal, era o Oeste e Alto Oeste do Rio Grande do Norte, com epicentro em Mossoró e liderada pela família Fernandes, e o Seridó, grande plantador e fornecedor do denominado “ouro branco”, liderado pelo ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros. 

Não por outra razão, concluído o pleito, foi eleito Governador do Estado, pela Assembleia Legislativa, Rafael Fernandes, líder político no Oeste e Alto Oeste, em detrimento de José Augusto. 

É deprimente constatar a pouca literatura acerca desse período por demais importante da história do Rio Grande do Norte. Excetuando um ou outro opúsculo, desaparecido das vistas dos pesquisadores e somente encontrados, depois de muita luta, em sebos que como é sabido, primam pela desorganização e falta de higiene, três livros, apenas, bastante antagônicos entre si, jogam alguma luz sobre o período aludido: “A HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, de Edgar Barbosa; “VERTENTES”, autobiografia de João Maria Furtado; e “DO SINDICATO AO CATETE, autobiografia de Café Filho. O primeiro, visceralmente ligado aos líderes do Partido Popular; o segundo, cafeísta histórico. 

Aqui não cabe uma incursão na história dos anos vinte e trinta do Rio Grande do Norte. Não é essa a intenção. O que se pretende, aqui, é mostrar o contexto político de exacerbada violência vivida no Estado naquela época, na qual o coronelismo como conhecido, cuja erradicação era uma promessa de campanha da Revolução de 30, vivia seus últimos esgares.

Essa violência, não esqueçamos, na campanha política de 34-35, foi posterior à invasão de Mossoró por Lampião, fato ocorrido em 1927. 

Para se ter uma ideia, o livro de Edgar Barbosa começa com uma página na qual se lê seu oferecimento e indica fielmente o que há de vir pela frente: 

À MEMÓRIA IMPERECÍVEL DOS SACRIFICADOS NA CAMPANHA DE CIVISMO E REDENÇÃO DO RIO GRANDE DO NORTE; A FRANCISCO PINTO, OTÁVIO LAMARTINE, MIGUEL BORGES, JOSÉ DE AQUINO, FRANCISCO BIANOR, MANOEL DOS SANTOS, LUÍS SOARES DE MACEDO E ADALBERTO RIBEIRO DE MELO; às vítimas da covardia dos cangaceiros, aos seviciados pela barbaria policial, a todos os que sofreram humilhações e injúrias, aos perseguidos, aos ameaçados, aos coagidos no seu trabalho e nos seus lares, aos que morreram com fome e sede de liberdade. Homenagem do Partido Popular. 

Dentre os mencionados na homenagem chama a atenção o nome do Coronel Francisco Pinto, parente, compadre e correligionário político do Coronel Rodolpho Fernandes, a aquela altura já assassinado, e que escapara da morte – ainda hoje não se sabe como – quando da invasão de Apodi em 1927 pelo bando de Massilon([1]), e Otávio Lamartine, ninguém mais, ninguém menos que filho do ex-Governador, deposto pela Revolução de 30, Juvenal Lamartine. 

Não se vai entrar nos meandros dos dois assassinatos. Entretanto é inegável que suas mortes somente aconteceram em decorrência da campanha política de 34-35. 

Mesmo aqueles que se posicionaram em lados opostos ao abordar a questão se negariam a contradizer essa afirmação. 

Outro fato que demonstra a exacerbada violência daqueles tempos é pungentemente narrada por Amâncio Leite em carta dirigida a Sandoval Wanderley, diretor de “O Jornal”, em Natal, aos 20 de janeiro de 1937, publicada em forma de opúsculo pela “Coleção Mossoroense”[2]

Nessa carta famosa, à época, Amâncio Leite, eleito deputado estadual pela situação([3]) na campanha de 34-35, protesta por sua prisão e a de seu colega Benedito Saldanha, acusados de “extremismo” e “comunistas”, acusação essa acatada pela Assembleia Legislativa do Estado em sessão do dia 10 de setembro de 1936 na qual todos os deputados do Partido Popular votaram pelo acatamento, em um claro revide aos seus adversários, tão logo chegaram ao Poder. 

O coronel latifundiário Benedito Saldanha acusado de “comunista”. Ironia do destino... 

A presença da violência, portanto, era algo comum na política daqueles anos. O homicídio em decorrência de disputas pelo Poder, também o era. Como negar esse fato se um pouco mais atrás, em 26 de julho de 1930, o assassinato de João Pessoa por João Dantas deflagara a Revolução de 30? 

Muito embora João Dantas tenha morto João Pessoa em decorrência do aviltamento que sofrera com a publicação em jornal oficial de sua correspondência íntima com Anaíde Beiriz, é fato que isso somente ocorrera porque ambos eram fidagais inimigos políticos. 

E da presença da violência ocasionada por disputas políticas não estava livre, naqueles anos 20, o Rio Grande do Norte.

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[1] Consta que as mesmas lideranças políticas que estavam por trás da invasão de Apodi em 1927 também o estavam em 1934, quando do assassinato do Coronel Chico Pinto.

[2] Série B, nº 768.

[3]Aliança Social, liderada por Mário Câmara. 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

EXERCÍCIO DO PODER

* Honório de Medeiros

Salvo raríssimas e honrosas exceções, todos no exercício do Poder são iguais. Alguns ainda mais que outros.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A ESTRANHA PEREIRO

* Honório de Medeiros

No pequeno cemitério localizado no centro da cidade – o antigo – de Pereiro, cidade duas vezes secular que se estende ao comprido e preguiçosamente entre serras, passeei entre os túmulos, as árvores e as flores com sua guardiã, Dona Maria, procurando o jazigo perpétuo de Décio Hollanda, aquele mesmo que quis tomar Apodi, no Rio Grande do Norte, pelas armas, através da valentia de Massilon, no final dos anos 20 do século passado. 

Ela aponta os túmulos dos Hollanda: “são três; aqueles dois lá e este aqui, mas eu não sei quem é essa pessoa que o senhor está procurando”. 

Voltamos para a entrada naquele caminhar desconexo de quem anda nos cemitérios antigos de cidades pequenas, tomando cuidado para não pisar em algum montículo inesperado que guarde os restos mortais de alguém. 

Eu lhe elogio a limpeza, a arborização, as flores do cemitério. “Obrigada”, diz. “Já faz vinte e cinco anos que estou aqui. Antes de mim era uma senhora com quem aprendi tudo e que também passou vinte e cinco anos.” 

“É muito tempo”, falo quase que para mim mesmo. “Para eles, não”, responde, fazendo um arco amplo com o braço e envolvendo toda a área do cemitério. 

Dona Maria é baixinha, moreno-clara, entroncada. Sexagenária, eu diria. Muito limpa e bem arrumada, nela não há sinal de desmazelo. Os cabelos não guardam qualquer fio branco. Seria pintura? Não, observo de perto. Filhos, netos, todos foram criados através do seu labor contínuo e obscuro entres velas, flores frescas ou murchas e os túmulos de seus conterrâneos. 

“Qual o fato mais estranho que a senhora presenciou neste cemitério?” Ela para. Não hesita ao responder. Talvez a mesma história já tenha sido contada muitas vezes. 

“Uma viúva” – começa, esboçando um olhar distante, “que chega sempre toda de preto para rezar naquele túmulo muito antigo encostado à parede. Ninguém sabe de quem ele é. O tempo já apagou, há muito, suas inscrições. Não temos qualquer documento a respeito. Eu mesma já pesquisei. Ela somente aparece quando não tem ninguém, além de mim, no cemitério. Passa por mim, eu dou bom dia ou boa tarde, respondido com um aceno de cabeça que intimida a gente, vai até o túmulo e reza em pé mesmo. Aí sempre acontece alguma coisa que me distrai e quando olho novamente ela já não está presente.” 

“Alguém mais a viu?” 

“Não, somente eu.” 

Chegamos à entrada. “Espere”, diz. Desaparece por trás de algumas árvores e volta logo depois com uma flor branca entre os dedos. “Tome, é para o senhor”. “Ah, um bogari (jasminumsambac)!” “O senhor conhece?” “Era a flor predileta de minha mãe”. 

Eu agradeço, tocado. Ela nota a minha emoção. Vou me afastando, a flor próxima ao nariz, linda, pura, perfumada. Depois, no mesmo dia, eu a ofereci à Castelã da Casa-Grande da Fazenda Trigueiro, onde Frei Damião procedeu ao ritual exorcista próprio para afastar almas penadas, mas isso é outra história... 

Do final do século XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, diz-nos Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”. 

Peço à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, dará uma noção do tamanho da janela – bem maior que a cozinheira, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Quase o dobro. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais. 

Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida da Suíça na época da construção. 

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem por que, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos. 

“Naquela época”, diz-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia ‘Campo Santo’ (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.”. 

Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, é uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. E o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios”... 

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis?”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, digo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.” 

“Frei Damião esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.” 

“Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado acima. “Ficou tudo resolvido?”, pergunto. “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio, era o canto mais limpo.” 

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da “Fazenda Trigueiro”. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda “Sabe Muito”, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, salvo engano. Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela, tronco ancestral da família Fernandes do Rio Grande do Norte, que se espraiou pelo Alto Oeste, em um sentido, Mossoró, depois Natal, em outro. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

DE VELHICE

* Honório de Medeiros

Dia desses olhei para você e me vi. Um reflexo do outro recortado em cores contra o escuro. Cores que esmaecem, tingidas de prata. Sépia. Como passaram rápidas os dias e as horas! Abismo de tempo, vidas que fluíram. Agora somos silêncio, quase. Ponte para um infinito. Agora nos compreendemos. 

sábado, 26 de janeiro de 2019

DISTORCER PARA MANIPULAR

* Honório de Medeiros

Em "On Liberty", de 1859, Sir John Stuart Mill sugere que "A única liberdade que merece esse nome é a de perseguir nosso próprio bem, à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros de seus bens, ou impedir seus esforços para alcançá-los... O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma correta sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir o mal aos outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificativa suficiente." 

Não é preciso salientar a importância dessa obra para a construção do pensamento liberal. Mas é preciso ressaltar que esse ideário é um dos mitos fundantes do Estado contemporâneo fulcrado em uma Democracia tal qual encontrada nos países ocidentais. 

Tampouco há necessidade de enumerar as críticas existentes a essa Democracia nos moldes ocidentais. São muitas. Algumas corretas. Entretanto vale a pena lembrar Sir Winston Churchill, e sua famosa "boutade": "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas."Também vale a pena lembrar os países ocidentais como aqueles que detêm os melhores índices de desenvolvimento humano. 

As elites políticas sequiosas de obtenção e manutenção do Poder já compreenderam, de há muito, o ponto fraco na argumentação de Sir John Stuart Mill, e o distorceram para manipularem e manterem seu "status quo" de dominação. A chave é "impedir o mal aos outros"

Hoje em dia esse argumento retórico foi substituído por outro mais sofisticado e condizente com os tempos atuais: "a predominância do público sobre o privado".

Ou seja, tudo quanto for oriundo do Estado (daqueles que detêm os aparelhos do Estado em suas mãos) deve ser respeitado e obedecido, já que implica, necessariamente, no interesse do predomínio do público sobre o privado. E a prevalência do público sobre o privado existe única e exclusivamente no intuito de impedir (que se faça) o mal aos outros. 

O que está por trás dessa concepção, quando não se trata única e exclusivamente de BANDITISMO, é a crença que as elites dirigente têm em sua capacidade de saber o que é o certo e o melhor para todos.

As elites dirigentes creem ser, para isso, ungidas pelos deuses, ou pelo conhecimento, ou pelo destino, para imporem, aos comuns dos mortais, as regras que estes devem seguir em Sociedade. 

Nada mais autoritário. Nada mais arcaico. Nada mais atual.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

QUANTO AO ATIVISMO JUDICIAL

* Honório de Medeiros                                                                

Um dos mitos fundantes da nossa concepção de Estado é a do contrato social. Por este, nós cedemos nossa liberdade para que o Estado nos impeça de nos destruirmos uns aos outros. Tal noção, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):

"De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, 'uma garantia mútua de direitos', incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer".

E muito embora um estudioso "outsider" do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

"Bellum omnium contra omnes", guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorre se impera a liberdade absoluta, diz-nos Hobbes no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social - e não houver a criação de um artefato – o Estado –, assegurando-se, assim, a sobrevivência dos homens quando estiverem em contato uns com os outros, pois haverá a submissão da vontade de todos à vontade de um só ou de um grupo, e esta atuará em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz comum.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente a Revolução Americana e Francesa, bem como a ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual surge o Estado, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se mais uma vez, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Há algo de estranho, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal. 

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, na sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição, conforme pregação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, e a atividade judicante de meramente preencher uma “possível” lacuna legal ou mudar o sentido de uma norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença, baseando-se em princípios difusos e indeterminados da Constituição Federal, estratégia empregada na Itália, Alemanha e pelo próprio STF.

“Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos”, diz, arrogantemente, o Ministro do STF Gilmar Mendes.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração a doutrina exposta acima, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

Em que se basearia, qual seria o fulcro dessa atividade de invasão da competência do legislativo ao se criar normas jurídicas através de sentenças, ou modificar o sentido de outras por meio de interpretações? Seria, como deixa transparecer o presidente do STF em suas entrevistas, por que a Constituição Federal tem um “espírito” e somente os integrantes daquela Casa, em última instância, conseguem enxergá-lo em sua essência última?

Que espírito é esse? O mesmo ao qual se refere São Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica”?

Autoritário, tal argumento. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do mito platônico das formas e ideias cuja contemplação é privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia a serviço de uma estratégia de Poder, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no comando, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o certo e o errado, o bom e o mal, o justo e o injusto.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia.

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

JOGOS POLÍTICOS TÁTICOS

* Honório de Medeiros

Tratativas no âmbito das elites políticas, feitas por políticos disputando o Poder, são jogos táticos sendo urdidos a partir de estratégias ocultas das quais, a maioria das vezes, não temos o menor conhecimento.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

VILLAÇA, O ESTILISTA

* Honório de Medeiros


Na cinza das horas, releio “O Livro dos Fragmentos”, de Antônio Carlos Villaça. Soberbo estilista. Quem não lembraria de Novalis e Nietzche, ao lê-lo?

Muito amigo de Franklin Jorge, outro estilista, autor de “O Spleen de Natal”, um livro requintado, prêmio Câmara Cascudo por unanimidade, e de Gerardo Dantas Barreto, o filósofo, dono de uma “passionalidade desgrenhada”, ambos norte-rio-grandenses.

Villaça ficou famoso com “O Nariz do Morto”, de 1970, obra de um niilismo trágico, tão elogiado, que não cheguei a ler, ainda. Foi amigo de Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Lacerda, não o político, o homem, e tantos outros, naqueles anos que começaram com Getúlio Vargas e se encerraram com a agonia do Movimento de 64.

Lembra, lá para as tantas, que Gilberto Amado caracterizava Vargas muito bem: “Getúlio ou a arte de enganar. Enganava não apenas os bobos, o que é fácil e todos fazem. Enganava os sabidos.” E também lembra, em seu livro, Raul Fernandes, não o potiguar, e sim o político e diplomata carioca, que lhe dizia sempre: “ a ênfase é uma improbidade intelectual”. 

Em “O Livro dos Fragmentos” aponta o estranho fenômeno da desaparição de alguns escritores. Cita Osvaldo Alves, Carlos David, Lia Corrêa Dutra, a quem Drummond e Gilberto Amado admiravam e que sumiu da literatura. Villaça especula: “Era uma forma de ceticismo ou de cansaço”. Lembra Maria Teresa Abreu Coutinho, “brilhantíssima. Casou-se com um operário italiano e foi morar no subúrbio. Nunca a reencontrei.”

Nada mais Enrique Vila-Matas.

As obras desses escritores que ele cita ocupam, penso eu, algum escaninho empoeirado do Cemitério dos Livros Esquecidos que Carlos Ruiz Zafón localiza na misteriosa Barcelona, em um beco ao qual me conduziu uma bela guia mineira que, ante o meu espanto com o que me deparei, pôs-se a rir, divertida. O Cemitério não se deixava perceber assim tão fácil... 

Antônio Carlos Villaça, assim como Gerardo Mello Mourão, reconheceu que o Brasil é barroco, uma eterna tensão entre o corpo e a alma. Vivesse hoje, que diria ele? 

Termina seu livro citando Machado, “Iaiá Garcia”: “Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”. Estaria se referindo ao que escrevera?

Tomara.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

VONTADE, LIBERDADE, VERDADE


* Honório de Medeiros

Hannah Arendt nos encaminha, em “Responsabilidade e Julgamento”, à noção de que devemos a Paulo a ideia de “vontade”.

Paulo, crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua “Carta aos Romanos”. 

Lê-se, em Romanos, um momento antológico do processo civilizatório: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço” (7,19-21). 

Terá sido para cumprir esse desígnio que Jesus o interpelou na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6). 

Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha.

Também foi o ponto de partida da Reforma Protestante: Lutero escreveu seu “Comentário aos Romanos”, em 1515, e nele já se encontra seu pensamento acerca da Justificação. 

Arendt nos mostra o percurso intelectual desse conceito no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes” (“Confissões”).

A Vontade decidirá.

Bem como em Nietsche e Kant, além de nos por a par de que o fenômeno da Vontade era desconhecido na Antiguidade, e que sua descoberta deve ter coincidido com a da liberdade enquanto questão filosófica, distinta de um fato político. 

Vontade, Liberdade, Verdade. 

Fundamental.

sábado, 12 de janeiro de 2019

A NOÇÃO DE "ESTRANHAMENTO"

* Honório de Medeiros


Camus, em seu "Diário de Viagem" (Record), lá para as tantas escreve o seguinte acerca de uma cena por ele presenciada no navio em que viajava para o Rio de Janeiro:

"Mais uma vez observo entre eles uma mulher já grisalha, mas de uma classe soberba, um belo rosto altivo e suave, (...) e uma postura sem par. Sempre seguida pelo marido, homem alto e louro, taciturno. Colho algumas informações, ela está fugindo da Polônia e dos russos para exilar-se na América do Sul. É pobre. Mas, ao vê-la, penso nas matronas bem vestidas que ocupam alguns camarotes de primeira classe."

Fico fascinado com esse olhar que distingue, o olhar de Camus, mas não me deixo seduzir pelo fascínio da primeira sensação, a da percepção de um estranhamento que separa, de um lado, a soberba elegância de uma imigrante e, do outro, o trivial, o comum, o banal: as matronas da primeira classe.

Deixo-me seduzir, isso sim, ao constatar que o olhar é o instrumento que permite as ideias apreenderem essa distinção. A ideia é anterior ao olhar. Se assim não fosse o olhar nada constataria dessa distinção que Camus percebeu.

Em outro lugar, escrevi:

"Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento”, um primeiro passo, que passamos a compreender os objetos, as coisas, as ideias, o Ser, enfim."

E o que seria o “estranhamento”? Eis algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual em uma arte marcial refinada, na literatura ou pintura, por exemplo, tornar-se hábil em captar essa desarmonia que extrapola o lugar-comum demanda contínuo exercitar-se até o limite do impossível.

O "estranhamento" antecede o processo de distinção que racionaliza o percebido. Mas somente é possível o "estranhamento" se, em quem observa, existem ideias acerca do que se percebe, uma expectativa de normalidade que não se realiza, que se fragmenta. 

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa, meticulosa  e peculiar da biblioteca de alguém chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “perceber” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer algumas inferências, ou elaborar algumas hipóteses, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norte americana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. A sensação de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, também, essa sensação de estranhamento."

Essa capacidade de sentir a sensação de "estranhamento", e, em seguida, abstraí-la, racionaliza-la, é, penso eu, a base do trabalho, dentre outros dos artistas, filósofos e cientistas.

Outro exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." (O Tango da Velha Guarda; Arturo Pérez-Reverte).

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

PRESTAR ATENÇÃO NO DIFERENTE PARA ENTENDER AS COISAS


* Honório de Medeiros

João de Antônio de Luzia me contou uma história de seu pai que vale a pena relatar. 

Eu me encontrara com ele nas imediações do mercado de Martins, onde fora tomar uma cana velha e tirar o gosto com seriguela no bar de João Catingueira. 

Perguntei por seu pai. “Tá por lá, pastorando o tempo”. Ri. “Alguma história nova?” Ele coçou a cabeça. Sabia quanto eu gostava das coisas do velho. 

“Dias desses me lembrei do senhor", disse, "porque na calçada falaram de uma eleição para prefeito bem antiga.” 

E foi contando: “O povo da calçada todo apoiava um candidato, médico, desmantelado que só ele, tomador de cana braba, caçador de peba, que andava de chinela japonesa, camisa aberta no peito, bucho pela goela, o consultório era um prédio velho e pequeno perto da zona, sujo e caindo aos pedaços, atendia quem o procurava no meio da rua, catando um papel no chão e puxando uma caneta velha do bolso que só escrevia por que Deus tem pena de quem faz caridade, para escrever a receita. Bom médico, por sinal.” 

“Todo dia era a mesma coisa. O povo da calçada dando a eleição como certa, elogiando o médico, falando mal do outro candidato, inventando estórias, fofocando, um disse-me-disse danado, o senhor sabe como é.” 

“Meu pai não dizia uma palavra, como sempre. Um dia, vendo todo aquele silêncio, depois que o povo saiu perguntei a ele: o senhor não vai votar no candidato do pessoal? Ele ficou calado um pedaço e depois me disse que o candidato ia ganhar, mas não ia dar certo como prefeito.” 

“Como é o que o senhor sabe?” 

“Seis meses depois da eleição me pergunte que eu lhe digo.” 

“Pois muito bem, o homem ganhou e menos de um mês depois de eleito todo mundo viu que a coisa ia ser um mal-arrumado de perder de vista, como de fato foi. Nada funcionava. Ele mandava na prefeitura como se ela fosse uma bodega, e ruim.” 

“Deixei o tempo passar, me mordendo de curiosidade. Queria porque queria perguntar ao velho, mas não tinha coragem. Sabia que ele nem responderia, antes da hora certa.” 

“Quando chegou o fim dos seis meses, fui a ele: e aquele negócio que o senhor ficou de me dizer seis meses depois da eleição?” 

“Pois é. Eu lhe pergunto: como é que ele ia cuidar das coisas dos outros que prestasse, se nem das coisas dele, ele cuida? Veja como é que ele anda, atende as pessoas, e o consultório.” 

“E como o senhor chegou a esse entendimento?” 

“As pessoas olham, mas não enxergam. É preciso prestar atenção no que é diferente. É prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.” 

João recusou meu convite para tomar uma, adentrou o mercado e me deixou coçando a cabeça, e lembrando de uma passagem de um conto de Conan Doyle e seu genial personagem Sherlock Holmes. 

Em episódio bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu, à noite. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”. 

Seu Antônio de Luzia tem razão, é prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

DAS PESSOAS QUE SE OFENDEM COM O SILÊNCIO

* Honório de Medeiros

No rumo do remanso na beira da Serra das Almas, passei por Martins para dois dedos de prosa com Seu Antônio de Luzia, que Deus o mantenha tal qual está.

Perguntei como iam as coisas, e ele, naquela voz arrastada e grave, me disse que "do mesmo jeito, só que mais velhas".

Era um final de tarde meio quente, no Sítio Canto. Só vez por outra alguém passava e arriscava um dedo de prosa.

E nós dois, como outras vezes, café tomado, calados, cabeça pousada por inteiro no espaldar das cadeiras de balanço, nos entregávamos à quietude e ao canto dos passarinhos.

Lá para as tantas uma vizinha distante encostou e se danou a falar, contando o caso de uma sobrinha solteira que embuchara pelas bandas dos Cariris Velhos.

Falou, falou, falou tanto que espantou os sabiás que cantavam nos cajueiros do terreno em frente.

Quando se foi seu Antônio, sem olhar para mim, sentenciou: "essa mulher se ofende com o silêncio".

E mais não disse até a hora da coalhada, à boca da noite.

domingo, 6 de janeiro de 2019

CARTA ABERTA À GOVERNADORA FÁTIMA BEZERRA

* Do Blog de Gustavo Negreiros

Carta Aberta à Governadora Fátima Bezerra: “que o sonho jamais se transforme em um pesadelo”

"06.01.2019

Carta aberta do Auditor Fiscal José Arnaldo Fiuza Lima para a governadora Fátima Bezerra.

Nesta primeira semana em que a gestão do governo do RN está nas mãos de uma professora, ex-sindicalista e fundadora do Fórum dos Servidores Públicos do Estado, um forte sentimento de angústia e aflição vem tomando conta de uma parcela significativa do eleitorado potiguar, que sem o seu apoio, certamente, o resultado das eleições de 2018 seria outro e Fátima Bezerra continuaria exercendo funções parlamentares na Câmara Alta, em Brasília.

Tais exordiais sensações advém de declarações não muito felizes e tecnicamente equivocadas de membros do primeiro escalão da nova gestão, entre as quais a que proferiu o próprio Vice-Governador, inferindo, em entrevista, que “… Em 2019, com as receitas administradas pelo novo governo, nós passamos, nós já possamos sinalizar um pagamento que, claro, não será possível corrigir todo o passivo. Este passivo pertence a um outro governo…”.

Ora, não se pode confundir nunca governante com governo, pois o passivo salarial existente perante os servidores do Estado é obrigação a ser adimplida pelo governo do RN, sendo irrelevante juridicamente o fato de que tal dívida, de caráter alimentar, tenha sido contraída no fim da gestão anterior ou já na nova, pois não é um débito pessoal do governante, mas institucional do Estado, no qual o governo (organização que conduz e administra o ente estatal), seja quem for o gestor, deve honrar cronologicamente, i.e, na sequência temporal em que cada um deles foi se constituindo, e não, afrontando aos princípios da continuidade da administração pública e da impessoalidade e ao talante pessoal do governante de plantão, escolher o que deseja inicialmente pagar, os de seu mandato, com recursos ordinários, em menoscabo dos débitos precedentes, e que, erroneamente, ora parece se pretender quitar, exclusivamente, com recursos extraordinários e antecipatórios.

Nas mesmas pegadas tortuosas, o novo Secretário do Planejamento, conforme noticia o Jornal Tribuna do Norte e diversos outros meios de comunicação, afirmou, durante a cerimônia de posse do atual secretariado, que, na próxima semana, vai se definir como se fazer o pagamento de janeiro, “mas sem essas definições de calendário de pagamento e todo o passivo atrasado”.

Vejam, e daí se origina, já nos primórdios da gestão de Fátima Bezerra, uma tensão muito forte com aqueles que são historicamente seus companheiros de luta e que foram imprescindíveis para sua vitória eleitoral, pois o que está sendo construído pela sua equipe econômica nada mais é do que uma praxe velha de se fazer política, onde se constrói uma maqueada imagem, distante da realidade subjacente, ao se pagar em dia os salários da novel gestão e só posteriormente os contraídos sob a batuta do governante predecessor, sem que exista nenhuma justificativa minimamente razoável para tanto, nem jurídica, nem contábil, muito pelo contrário, mas que busca passar à sociedade uma pseudoaparência de normalidade, de “arrumação da casa” e de resolução de um gravíssimo problema pelo qual vivem os servidores públicos, hoje por demais penalizados com até 4 (quatro) salários em aberto, caso de alguns aposentados e pensionistas, e, caso tal infeliz ideia seja adotada, mais ainda sofrerão, com seus bolsos vazios e suas dívidas se multiplicando, numa crescente decepção, agravada ainda mais quando, comparativamente, se remete a era Robinson Farias, de tristes recordações para o funcionalismo, que, mesmo com a intempestividade no pagamento de salários que reinou pelos últimos 36 (trinta e seis) meses, jamais sequer cogitou usar tal artifício, o de iniciar um novo ano pagando salários deste e pulando os dos derradeiros meses do exercício findo, sem buscar quitar com precedência os mais antigos, implementando assim, nobre governadora, já no nascedouro de seu mandato, uma medida absurda, que, indubitavelmente, fomentará revolta nos funcionários do Executivo e instaurará um estado de animosidade entre o governo e o seu corpo funcional, indesejável por ambos.

Dito isto, sem explanar sobre a precedência jurídica do pagamento de salários em relação com as demais dívidas do Estado do RN, em virtude disto ser de cognição da governadora e de toda sua equipe, ou ser irresponsável em cobrar imediata solução para os atrasos salariais, pois todos sabem da impossibilidade fática disto ocorrer a curtíssimo prazo, inobstante, e aí reside o apelo que ora se faz, e já nas pegadas do decidido, de forma unânime, nesta semana, pelas diversas lideranças sindicais que estiveram presentes na reunião do Fórum dos Servidores Públicos do Estado, entidade na qual nossa hodierna governante é uma das fundadoras, que se honre, com a máxima brevidade financeiramente possível, sequencialmente e na medida da entrada de recursos ordinários e extraordinários, o restante do décimo terceiro sálario de 2017, no montante de cerca de R$ 42 milhões, o que falta dos salários de novembro de 2018, de cerca de R$ 96 milhões, quitando, em seguida, o décimo terceiro de 2018 e a remuneração de dezembro de 2018, para só então se pagar a folha salarial de janeiro de 2019, e que também se respeite o Princípio da Isonomia quanto à data de pagamento entre todas as categorias e entre ativos e inativos, pois é inadmissível que se mantenha a odiosa discriminação que vem sofrendo os aposentados e pensionistas do Estado, de serem os últimos a perceber os seus proventos, quando pela avançada idade e suas consequências naturais carecem mais de recursos financeiros para fazer frente às despesas elevadas relacionadas à manutenção da saúde.

Para tanto, como o orçamento do presente exercício ainda está fechado, elidindo-se a possibilidade do governo de fazer pagamento de certas despesas, e inexistindo qualquer razoabilidade em se deixar parado nas contas do Erário o dinheiro que está sendo arrecadado, enquanto os servidores públicos estão passando sérias dificuldades financeiras, e analisando o cronograma e a previsão de receitas do RN, urge trazer ao seu conhecimento e da população potiguar que resta possível que o primeiro pagamento, quanto às pendências salariais apontadas, já possa ser feito agora, entre os dias 07 e 08, com a entrada de recursos próprios na ordem de R$ 115 milhões, que excluída a parte referente ao FUNDEB e aos municípios ainda sobrariam, em caixa, cerca de R$ 77 milhões. O segundo e o início do terceiro pagamento já podem ocorrer até o dia 14, com a entrada da primeira parcela do FPE e de recursos próprios, que até tal data importariam, em valores líquidos, de cerca de R$ 260 milhões, e que, com outras receitas que advirão até o fim deste mês, mesmo com as deduções constitucionais e o repasse dos duodécimos aos Poderes e órgãos com autonomia financeira, possa ser continuado tal pagamento e reduzido, em parte, o montante do atraso salarial, dando esperança, desta forma, a todos os servidores, que a promessa firmada no transcorrer da campanha eleitoral será fielmente cumprida desde os primeiros dias do seu mandato.

Claramente, há esperança nos mais de 100 (cem) mil servidores ativos, aposentados, pensionistas e em todos os seus familiares de que o direito trabalhista à percepção tempestiva de suas remunerações será enfim respeitado, e, para tanto, imprescinde que a nova gestão do Governo do RN, sob a titularidade de uma professora, já nestes primeiros dias do ano, envide todos os esforços possíveis para, urgentemente, minimizar e, no menor tempo possível, pôr um fim nestes reiterados atrasos salariais, efetuando os pagamentos remuneratórios à medida que for entrando recursos no Erário e sem que se desrespeite a cronologia e a isonomia, na forma alhures mencionada.

Por fim, finca-se o sincero desejo de que possam, governo e servidores, caminhar unidos e em harmonia pelos anos da gestão que se inicia, para que o outrora sonho, transmutado hoje em esperança, de um lado, e angústia e aflição por certas declarações emitidas na imprensa, do outro, jamais se transforme em um pesadelo, e assim, coloquem, juntos, finalmente, o Estado do Rio Grande do Norte no patamar econômico e social que a sociedade potiguar almeja e merece.”

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

SÃO AS FINANÇAS QUE MANDAM, CARA!

• Honório de Medeiros

Aqui no RN, o desGoverno de Robinson Faria deixou salários de novembro, dezembro, e 13• de dezembro atrasados. Se a Governadora que assumiu apresentar pelo menos um calendário de pagamento ainda em janeiro, desmoraliza de vez o desGoverno passado.

Aliás, qual um “Espectador Engajado”, para lembrar Raymond Aron, meus olhos estão voltados, quanto aos governos estaduais, para a administração de Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Maranhão.

O primeiro, liberal, Partido Novo; os outros, de esquerda. 

As finanças públicas são uma grande niveladora e transcendem as ideologias, embora enquadradas pelo processo de seleção natural.

Em um mundo onde tudo é evanescente e fragmentado, queiramos ou não a questão é somente uma: o que vamos fazer com nosso dinheiro?

São as finanças que mandam, cara! No nível macro, claro. 

Para dividir o pão, é preciso que haja o dito cujo.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

ROBINSON FARIA: O FIM DE UM CICLO DO QUAL POUCOS SENTIRÃO FALTA

* Honório de Medeiros

A história de homem público de Robinson Faria no Rio Grande do Norte começou em 1986 quando se elegeu Deputado Estadual, cargo que assumiu em 1987 e exerceu durante vinte e três anos seguidos. 

Entre 2003 e 2010, foi Presidente, por dois mandatos, da Assembleia Legislativa do Estado. 

Em 2010 chegou a Vice-Governador, em chapa encabeçada por Rosalba Ciarlini. 

O próximo passo, em sua carreira política, levou-o ao Governo do Estado do Rio Grande do Norte a partir de janeiro de 2015. 

Tentou a reeleição em 2018, mas foi derrotado de forma humilhante pela então Senadora do Partido dos Trabalhadores Fátima Bezerra.

É possível, dando-se crédito a dados objetivos e muitos juízos de valor, que ao entregar o cargo Robinson Faria poderá assumir o pódio de pior de todos os Governadores do Estado do Rio Grande do Norte ao longo do tempo. 
Os números parecem corroborar essa afirmação. 

Em primeiro lugar há um repúdio sem precedentes a sua administração, expresso por intermédio de uma rejeição maciça e permanente, que atingiu níveis estratosféricos no ano em que resolveu se candidatar à reeleição. 

O Blog do Carlos Santos, respeitado e influente, informou, em março de 2018, a partir de levantamento realizado pela 98,9FM e Instituto Consult, que a gestão do Governador era desaprovada por 85% dos norte-rio-grandenses. 

Apenas 7,59% da população aprovava seu governo. 

Em segundo lugar salta aos olhos sua incapacidade de conseguir encaminhar, ao longo do exercício do cargo de governador, uma tentativa de solução plausível e viável para a calamitosa situação financeira do Estado. 

No final do seu mandato o Estado acumulará um passivo de aproximadamente um bilhão de reais em restos a pagar, além de não ter regularizado a folha de pagamento dos servidores públicos estaduais que até este presente momento não receberam, em sua totalidade, o décimo-terceiro de 2017 e não têm esperança, tampouco informação, quanto ao décimo-terceiro de 2018, assim como quanto aos salários de novembro e dezembro. 

Em terceiro lugar pesa sob seus ombros a péssima gestão da segurança pública estadual. 

Acerca desse assunto, o jornal O Globo, entre outros, noticiou em agosto próximo passado que “O Rio Grande do Norte é o estado do país com a maior taxa de mortes violentas por 100 mil habitantes: 68. Foram 2.386 mortes violentas no estado em 2017. Em todo o país foram 63.880 mortes violentas em 2017, o maior número de homicídios da história. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (...)”. 

Mas nada de tudo isso é novidade. 

Em 12 de novembro de 2014, ou seja, antes de sua posse, fiz a seguinte publicação aqui, neste mesmo blog (http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2014/11/rn-de-pacto-social-e-reforma-de-estado.html): 

"Tendo em vista as informações que vão surgindo na mídia acerca da alarmante situação financeira do Estado, não enxergo outra alternativa para o futuro Governador do Estado, a não ser liderar a construção de um novo Pacto Social no Rio Grande do Norte para alavancar a urgente, imprescindível, fundamental, Reforma do Estado. 

Pacto Social, vez que todas as forças da Sociedade, representadas pelos poderes constituídos, precisam participar diretamente, sob a legítima liderança do futuro Governador do Estado, da elaboração de uma Carta de Princípios que nortearia a Reforma de Estado. 

Reforma de Estado que permita a reconstrução do Rio Grande do Norte social, econômica e financeiramente, estabelecendo os parâmetros necessários a serem seguidos por esses poderes, para assegurar o desenvolvimento do Estado. 

Uma vez estabelecidos esses instrumentos fundantes da nova realidade política, social e econômica, todas as medidas necessárias a serem tomadas estarão naturalmente legitimadas e contarão com o apoio da Sociedade. 

É o que se espera de alguém que foi escolhido pelo povo para derrotar todas as forças políticas tradicionais do Estado". 

Em 3 de junho de 2015, alarmado com a situação da tragédia que se vislumbrava, voltei a abordar o tema do "pacto social" 
(http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/06/por-um-novo-pacto-social-para-o-rio.html): 

"O problema fundamental do RN, hoje, é, antes de tudo, antes mesmo do social, do político, e do econômico, de natureza orçamentária e financeira. 

O Governo precisa de dinheiro e não tem de onde tirar. A entrada no Fundo Previdenciário prova isso. E a situação vai piorar, estamos beirando a recessão. Os repasses estão em queda livre. A arrecadação do Estado, com o declínio da atividade econômica, tende a diminuir lenta e inexoravelmente. As demandas dos servidores e da Sociedade tendem a crescer. 

Se eu fosse o Governador Robinson convocaria os Poderes e a Sociedade para um novo Pacto Social. 

Um pacto social no qual a renúncia e o trabalho de cada um, pensando no todo, fosse mais importante que qualquer demonstração de unilateralidade. 

O Governador é o líder institucional apto a convocar e coordenar esse processo. Com os votos que recebeu, na situação em que isso aconteceu, é de se dizer, até mesmo, que deve assumir esse papel. 

E com os pés firmemente fincados no presente, lançar as bases do futuro." 

É sempre bom lembrar que Pacto Social não é o mesmo que Reforma de Estado, assim como Reforma de Estado não é o mesmo que Choque de Gestão. E, principalmente, conhecimento não é o mesmo que opinião.

Há muito mais a ser dito, claro, mas basta. 

Quanto a esse conjunto de fatos, sabença de muitos, que lhe perseguiram ao longo do mandato, o Governador assim se expressou recentemente, ao encerrar a reunião por intermédio da qual se colocou à disposição da Governadora eleita para as tratativas de praxe relacionadas com a transmissão do cargo: 

“O Rio Grande do Norte está falido.” 

E mais não disse nem lhe foi questionado, até onde se sabe. 

Atitude essa pelo menos questionável, a de lançar ao tempo seu próprio fracasso, vez que foi um dos maiores corresponsáveis por isso acontecer. Afinal antes de ser Governador foi Vice, antes de Vice, Presidente de Assembleia, e durante muitos anos Deputado Estadual, como já mencionado. 

O próprio Governador disse, na leitura da Mensagem Anual de 2018 na Assembleia Legislativa, que tinha sido fartamente avisado da crise econômico-financeira existente no Rio Grande do Norte, “mas como era forte, fora pra cima e a enfrentara”

Ao contrário. Nem foi para cima, nem a enfrentou. Ciscou para um lado, ciscou para o outro, e somente levantou poeira, nada mais. 

Ao invés de cuidar das mudanças que o Estado necessitava, quando assumiu, enclausurou-se em uma bolha feérica típica de deslumbrados pelo Poder, e desconhecendo os fundamentos básicos essenciais para governar um Estado, se tornou prisioneiro da própria vaidade e incompetência. 

Não é verdade que tenha enfrentado a crise financeira, repita-se, e o sabemos todos. Quando cuidou, se o fez, era tarde demais, mero teatro para inglês ver, vaudeville canhestro. 

Robinson disse ainda nessa mesma Mensagem, que passou para a história como um grande equívoco de forma e conteúdo: “Vou repetir: não foi o meu governo quem quebrou o estado.” 

Ajudou, e muito, a quebrar. Foi coparticipe. 

E em o tendo quebrado juntamente com outros, assumiu, a sós, o ônus da omissão. 

Não disse ele que fora fartamente alertado acerca da crise financeira? E em o sabendo, desde o início, do que lhe esperava, não é verdade que se eximiu de tomar as medidas duras, profundas e exigíveis, para reverter o problema? As mesmas medidas que Ricardo Coutinho e Flávio Dino tomaram na Paraíba e Maranhão, respectivamente? 

Por que não renunciou, pela impossibilidade de fazê-lo? 

Houve incompetência ou desídia, ou as duas juntas, não sabemos ainda, mas o tempo dirá. O tempo é senhor da razão. 

Incompetência, descaso, desgoverno, má-gestão, quando os há, ferem e deixam cicatrizes políticas terríveis. Cicatrizes que o Governador e seus auxiliares - tão responsáveis quanto ele - carregarão consigo para o resto dos seus dias.

Serão lembrados sempre por essas cicatrizes. 

No mais, a nós, resta rezar. Rezemos, pois. E esperemos juízo nos homens.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

FELIZ NATAL E ANO NOVO

* Honório de Medeiros

Quando vi essa imagem pela primeira vez, ela tinha sido postada por minha querida amiga Camila Cascudo.

Hoje me lembrei dela e não resisti: aí está para vocês.

Na primeira vez e todas as outras que a vi, senti uma vontade muito forte de pegar essa criança no colo, abraça-la, cuidar dela, tentar manter esse sorriso lindo permanentemente em seu rosto.

É esse abraço que eu mando para todos vocês, enquanto um Feliz Natal e Ano Novo!

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A VISITA DA BRUXA MALDITA

* Isabel Sena

A bruxa maldita me visitou hoje.

Soprou no meu rosto e se divertiu com o desânimo que tomou conta de minha alma.

Riu da minha dor, da estranha dor que a alma às vezes sente, da sensação de que fui e sou um fracasso, um desajeitado traste inútil que não suporta mais viver com suas máscaras cotidianas.

Quando ela vem mergulho de ponta no centro da melancolia e embora me debata, sinto que me afogo num oceano de insegurança, e que na próxima vez afundarei como uma pedra imensa, mas, nem assim, vou me ver livre dessa bruxa maldita.

Quando ela me visita não suporto a companhia dos outros. Não quero conversar. Sinto nojo do contato físico. Quero ficar sozinho, longe de tudo e de todos.

O que me resta agora é fazer de conta que ela não está me olhando, de que se vai, que logo, logo, tudo volta ao normal.

Depois, de fato, ela se vai.

Mas cada vez demora menos a vir. E cada vez demora mais a ir.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

PARA QUE SERVEM AS PALAVRAS

* Honório de Medeiros                


"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", diz Raduam Nassar em "Cantigas d'amigos", Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna. 

Ariano, entrevistado pelo Cadernos, em certo momento: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo."

Retruca o Cadernos: "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada." 

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média.

Assim é, assim será, dado o caráter dos tempos atuais, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo e as palavras, mesmo se delírios, manjar para poucos.

Aqui a palavra é arte. 

Relendo "O Crime do Padre Amaro" do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário:

- Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma."

Recordo que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante.

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo.

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo a que dá existência aos nossos delírios.

Natal, em 7 de março de 2015.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

APENAS FAGULHAS NA NEBLINA

* Honório de Medeiros

"O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade" ("A Morte de Ivan Ilitch", Tolstoi).

Esse pequeno trecho de uma das mais expressivas novelas do grande escritor russo nos mostra como o homem e as relações são os mesmos, malgrado o tempo e a distância.

Aqueles momentos nos quais o homem parece romper com seu destino comum são fagulhas, e elas logo desaparecem na névoa da rotina.

Como se fôssemos livres para nadar no rio, desde que dele não saíssemos, e sempre terminássemos no mar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

NEGAR O HUMANO QUE HÁ EM NÓS

* Honório de Medeiros

Lidar com as pessoas exclusivamente a partir do seu filtro ideológico é pobreza de espírito. Ideologia é um conjunto de valores que cada um construiu para si. Valores são relativos. Uma ideologia imposta é a negação do humano que há em nós. Persuadir, convencer, sim, impor, nunca. Negar o humano é próprio do pensamento totalitário, seja de esquerda ou direita, e contra tudo quanto a humanidade construiu de relevante ao longo do processo civilizatório.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

UMA HISTÓRIA MARAVILHOSA DA ÉPOCA DOS CORONÉIS

De Laurence Nóbrega, grande amigo meu e do famoso escritor Florentino Vereda, recebi o bilhete abaixo:

"Mando anexo um arquivo em word, com a transcrição que fiz, de uma história contada por Trajano Pires da Nóbrega, no seu estudo da genealogia da família Nóbrega, da qual eu sou um dos menos ilustres membros.

Trata-se da fuga da filha do Capitão Justino Alves da Nóbrega, mais conhecido como Cap. Justino da Salamandra, o mesmo que atacou a cidade de Santa Luzia e libertou o primo Liberato Cavalcanti de Carvalho Nóbrega, preso injustamente por inimigos políticos. Não sei se este é o cangaceiro a quem você se referiu na nossa conversa recente. Caso queira pesquisar mais a respeito dele, consulte as “fotocópias” que lhe enviei ou, se preferir, diretamente no livro de Trajano.

Um bom fim de semana.

Laurence

"Sunila" 

“Ouvi a seguinte história acerca do casamento de Marcionila Bezerra da Nóbrega (Sunila), com Braz Cavalcante, que me foi narrada por Severino Duarte Pinheiro, neto do seu irmão Martinho Alves da Nóbrega. “Marcionila, filha do Cap. Justino Alves da Nóbrega, ou Cap. Justino da Salamandra, chefe do Partido Conservador em Santa Luzia, tinha o gênio forte e voluntarioso como o do pai. Foi pedida em casamento por Brás Cavalcante, rapaz de Sapé que andou em Santa Luzia, pedido que, apesar de ser do seu agrado, foi definitivamente repelido pelo pai. Não se conformando com esta recusa, a moça deliberou fugir, o que chegou ao conhecimento do pai, que logo decretou a sentença de morte da filha, caso pusesse em prática o seu plano de fuga. Nada intimidou a moça, que, seguindo o hábito paterno, usava constantemente pistola e punhal ocultos na própria roupa. 

Sentindo que a filha seria capaz de realizar o seu plano, o Cap. Justino passou a manter constante e ativa vigilância. Como que de propósito, a casa só tinha duas aberturas acessíveis à moça, uma porta e uma janela, esta no oitão da casa. Intensificando a vigilância, o velho admitiu um auxiliar, que era um rapaz de confiança, que sempre mantinha em uma casa na fazenda, à frente da casa grande. Enquanto, à noite, o velho dormia perto da porta, o rapaz dormia perto da janela. 

Não havia outra saída. 

Em uma noite, porém, de grossa invernada com forte trovoada, coincidiu que o rapaz auxiliar da vigilância faltou; mas o velho dobrou o cuidado. A moça, que mantinha secreta correspondência com o noivo, tinha assentado fugir na primeira noite de tempestade que houvesse. Aquela seria a tal. 

Da sala de jantar, ficou observando, ocultamente, os menores movimentos do pai. Viu-o deitar-se, mas sempre atento à chuva. A certa hora o velho levantou-se o foi abrir a porta para olhar a chuva do alpendre. Compreendendo o gesto paterno, a filha a filha abriu a janela no mesmo instante em que o velho abriu a porta, de modo a confundir os dois em um só ruído. E deu certo. O pai não percebeu que a janela tinha sido aberta e que, por ela, sem perder um instante sequer, a moça se passara para fora, saindo para a chuva e a escuridão, não tardando a encontrar-se com o noivo, que a aguardava a pequena distância, com o cavalo de prontidão. Correram até a vila de Santa Luzia, onde chegaram alta madrugada, procurando abrigo na casa de residência do chefe político do Partido Liberal, adversário e inimigo do Cap. Justino. Aí foram guardados, trancados em um quarto, de modo a não serem pressentidos por ninguém, pois o velho Justino era geralmente temido. 

Ao amanhecer o dia, o Cap. Justino foi surpreendido com a realidade. A filha tinha fugido, realizando o plano que tentava frustrar com tanto empenho. E a revolta, na sua alma voluntariosa, que não admitia tal indisciplina, principalmente por uma filha, não teve limite. Determinou imediata perseguição ao casal de fugitivos, até encontrar para matar ambos, sangrados ou fuzilados. Convocou, no mesmo instante, todos os seus homens, e deu ordens severíssimas para saírem em perseguição ao casal, até encontrar e matar. Mas a chuva grossa da noite havia desfeito todos os rastros. Não era possível descobrir o rumo seguido pelos fugitivos. 

Mandou, então, gente em todas as direções; mas nada de notícias, ninguém vira os fugitivos nem deles tivera notícias. Parecia que a terra os havia engolido. 

Depois do terceiro dia, continuando as indagações e as ameaças, cada vez mais terríveis, o chefe da casa que lhes havia dado guarida, temeu pela segurança dos seus e pediu ao rapaz que se retirasse com a moça. Aguardaram a noite e fugiram a cavalo, por volta da meia noite. Tomaram rumo ignorado, o que foi fácil porque ninguém suspeitava que os fugitivos permaneciam em Santa Luzia. 

Cerca de um mês depois chegou a primeira notícia da filha; sem se denunciar onde permanecia oculta, mandou pedir ao pai autorização para casar-se, o que era indispensável na época. Não só recusou o pedido, como intensificou a perseguição, embora sempre improfícua, pela impossibilidade de ser localizado o casal fugitivo. 

Em face desta intransigência do velho pai, a moça passou a fazer vida marital com o noivo, mesmo sem o casamente, o que tinha evitado até aquele dia, com o seu rigoroso senso de honra. Houve diversos filhos desta situação. A perseguição, ou melhor, a ideia de perseguição continuou sem esmorecimento ao longo de 12 anos de vida que ainda teve o Cap. Justino Alves da Nóbrega. Sentindo a proximidade da morte, deixou ao filho mais velho, Martinho, a incumbência de manter a perseguição, por toda a vida. Mas, de ânimo moderado, Martinho Alves da Nóbrega, logo que o velho pai havia desaparecido, relaxou a recomendação, combinando em que a irmã se casasse como desejava. 

O casal veio a residir nas proximidades dos irmãos, perto da Salamandra, da Malhada do Umbuzeiro, da Noruéga, que eram as principais propriedades da família, herdadas do rancoroso pai. Viveram muitos anos. D. Marcionila, já viúva, ainda era viva até há poucos anos, tendo falecido depois de 1950”.

'A FAMÍLIA NÓBREGA' 

Autor: Trajano Pìres da Nóbrega 

1ª edição: 1956 

Pgs. 578 a 580"