Por Franklin Jorge
Este ano Dodora Cardoso não se apresentou na Festa de Santana. Um dos motivos dessa ausência seria o valor do cachê pago pelo prefeito Bibi Costa, míseros seiscentos reais, o que não pagaria as despesas com músicos, hospedagem e transporte. Um agravo aos artistas locais.
Devota de Sant´Ana, durante dois anos seguidos cantou de graça nessa festa que atrai milhares de seridoenses, e financiou as despesas do próprio bolso. Também contou com o apoio de amigos, como Núbia Albuquerque, que hospedou os músicos em sua casa da Boa Passagem. Este ano, porém, resolveu não cantar mais de graça, ao saber que a prefeitura estava pagando 50 mil reais a bandas de outros estados, em detrimento dos artistas locais, alguns tão melhores do que os forasteiros, mas desqualificados pelo fato de serem da terra.
Dodora é a agitação em pessoa. Ela se diz “barra pesada e sem o rabo preso com ninguém’’. Muito intensa em tudo o que faz e diz, é sinônimo de inquietação e irreverência, parecendo estar em toda a parte com essa tremenda energia que a anima e faz dela, Dodora Cardoso, um fenômeno humano.
Ouvindo-a, pareço ouvir os versos que Hölderlin consagrou a Rousseau [Jean-Jacques]:
… E ele levanta voo, o espírito audacioso, como as águias
Ao encontro das tempestades, profetizando
Seus deuses que chegam…
… E ele levanta voo, o espírito audacioso, como as águias
Ao encontro das tempestades, profetizando
Seus deuses que chegam…
Uma mulher que carrega a energia da vida e não faz conchavos com a falsidade; que canta as canções que em Caicó, especialmente, todos se agradam de ouvir e sentir, a cada nota, impulsionadas por uma pulsão de vida.
Como a conheci? Por acaso, através das ondas do rádio, onde dava uma entrevista e logo me conquistou por sua autenticidade. Ela estava sendo entrevistada por Suerda Medeiros, a quem eu telefonava naquele momento para marcar um encontro. Queria entrevistar a entrevistadora. Ao chegar à Rádio Caicó AM, alguns minutos depois, quem estava saindo do estúdio? A própria, Dodora Cardoso, que trocou algumas palavras comigo. Um pouco mais tarde a encontrei no Restaurante Brilhante e, mais uma vez, um pouco mais tarde, na Boa Passagem, de onde é amiga. Antes, tomamos sorvete – Bento, Dodora Ferreira, Socorro, Janilson Sutero, Núbia… – e eu saí para fazer minhas entrevistas.
Dodora, em sua autenticidade, não suporta hipocrisia e falsidade. Canta o que a encanta. Ela tem o que Garcia Lorca chamava de “o duende”, esse sortilégio que não se pode explicar, presente na visceralidade do seu canto, que ouvi depois em CD.
Recebida com festas nas ruas de Caicó, cidade onde o povo se agita, dança e canta em seus shows, Dodora é popular em toda a região. Uma vez, viajando com um amigo, entraram os dois em uma churrascaria na cidade de São José do Seridó. Enquanto estavam lá, comendo, um homem não parava de olhá-la.
Por fim, veio falar-lhe. Disse que a estava olhando porque tinha a impressão de conhecê-la de algum lugar, de Caicó ou de Cerro Corá. Seria ela, por acaso, cantora? Dodora confirmou. Era a cantora, sim. E ele, sem disfarçar a ansiedade: Não lembra de mim, não? Eu apenado e a ouvi cantando na Penitenciária de Caicó. Eu sou Fulano e estava cumprindo pena por ter matado um homem…
Muito pequena, Dodora ouvia o pai, que era militar, tocando trombone de vara. Desde pequena, tinha o hábito de ouvir a Elis Regina, Ângela Maria, até Glorinha Oliveira. Meus pais nasceram aqui, mas vivemos em vários lugares, como o Rio de Janeiro. Ele, Francisco Omar da Cunha – ou Omar Peitica, como o conheciam -, era músico, militar, juiz de futebol e,por algum tempo, delegado de polícia em Jucurutu. Ela, do coral da Igreja de Sant´Ana de Caicó… Ah, meu pai fez o serviço militar com Elino Julião, de quem sempre foi amigo. A música, como você está vendo, esteve sempre perto da gente. Sempre cantei. Por prazer, principalmente.
Cheguei aqui em 1970. Ontem, como vê… Voltamos do Rio, onde ficamos por cinco anos. Quando meu pai foi assassinado, minha mãe, Rita Cardoso da Cunha, resolveu que era hora de voltar para cá… Comecei fazendo bailes aqui. Minha verdadeira paixão sempre foi as bandas de baile. Nessa época, os jovens de Caicó só bebiam e fumavam. Não havia o que fazer. Eu, que não tinha jeito para fazer cacho em periquita [ficar alisando os pelos pubianos] para passar o tempo, cantava e gostava de cantar. Resolvi, assim, ser cantora…
Dodora costuma dizer que, de perto, não é nada normal. É coisa de família, enfatiza, disparando uma gostosa gargalhada. Uma sua irmã, por exemplo, vive juntando moedas para dar aos garotos que pedem nos cruzamentos. Eu, dou camisinhas. Vou logo dizendo, dinheiro não tenho. Mas tenho essa camisinha com sabor chocolate… “Quê, tia? Camisinha?” Reclamam. Quer ou não quer…? Os garotos ficam aturdidos com minha oferta, mas acabam pegando a camisinha, embora desconfiadíssimos, e vão embora, pensando que sou uma doida..
Leia a continuação desta Série na próxima terça.