quinta-feira, 5 de agosto de 2021

DE OUTSIDERS, EXCÊNTRICOS, DIVERGENTES, TRANSGRESSORES, DESVIANTES OU INCONFORMADOS (Primeira Parte)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

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1.     A Luz e as Trevas, o Bem e o Mal. 

“O caminho que sobe e o que desce é o mesmo” (Heráclito de Éfeso, dito “O Obscuro”).

"- Mas terá que aceitar isso – retrucou Woland, e o sorriso irônico entortou sua boca. – Você mal apareceu no telhado e já disse bobagens, e vou dizer onde elas residem: na sua entonação. Você pronunciou suas palavras de tal maneira como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. Não seria muito trabalho de sua parte pensar na seguinte questão: o que faria a sua bondade se não existisse a maldade, como seria a terra se dela sumissem as sombras?” (Mikhail Bulgákov, O Mestre e Margarida).[1] 

Quem, nos anos 70, gostava de ler, possivelmente teve entre as mãos algum livro de Herman Hesse.

Talvez Sidarta, no qual ele romanceou a vida de Gautama Buda, ou mesmo O Jogo das Contas de Vidro e O Lobo da Estepe, os mais cultuados; quem sabe Demian; Gertrud; Pequenas Histórias; Narciso e Goldmund, para mencionar os mais conhecidos.

É possível que Demian seja considerado um livro menor, assim como Gertrud, sua continuação.[2] Na verdade, a crítica teceu e tece loas à O Jogo das Contas de Vidro e, em menor escala, a O Lobo da Estepe, muito embora o mais famoso seja Sidarta.

Em Demian, Hesse nos apresenta a um enigmático adolescente e sua mãe, mulher bela e misteriosa iniciada em uma seita religiosa, o Cainismo, que fascinam Sinclair, colega dele de escola e relator da história.

O Cainismo foi uma seita gnóstica cristã do século II, considerada herética pela Igreja Católica, que venerava Caim como filho de um espírito superior ao que teria engendrado seu irmão Abel.

Quando essa questão aparece na convivência entre Demian e Sinclair, aquele aponta, como ponto-de-partida para a iniciação do amigo na doutrina, o conhecimento da vida de uma relação de personagens significativos, embora condenados pela história oficial, começando por Eva, depois Caim, irmão de Abel, cujo nome batiza a seita, bem como Judas Iscariotes, dentre outros.

Sabe-se que o Cainismo foi resgatado no século XIX da total obscuridade por Lord Byron, o cultuado e maldito poeta romântico inglês, e hoje é possível que somente exista em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria ocupando estantes empoeiradas no “Cemitério dos Livros Esquecidos” que fica em Barcelona, do qual nos deu a conhecer Carlos Ruiz Zafón, em famosa tetralogia.

Voltando a Demian, a pergunta que ele faz a Sinclair no processo de sua iniciação nos segredos da seita, durante o transcorrer da trama, é se haveria Adão sem Eva; Abel sem Caim; Jesus, sem Judas, e assim por diante. Evidentemente, a verdadeira pergunta, implícita e fundamental, é se haveria a Luz, sem as Trevas.

Não é ousadia supor que o Cainismo seja descendente do Zoroastrismo ou Mazdeísmo, a religião dominante no Império Persa por volta do século VI a.C. até a invasão e dominação, no reinado de Dario III, por Alexandre “O Grande”, rei macedônio.

O zoroastrismo professava uma interpretação dualista do mundo, entendendo-o como governado pelas forças antagônicas do Bem e do Mal. Existiria um deus supremo, criador de dois outros seres poderosos que seriam extensões de sua própria natureza: Ormuzd (ou Ahura-Mazda, ou ainda Oromasdes, segundo os gregos), a fonte de todo o Bem, e Ariman (Arimanes), a fonte de todo o Mal, depois que se rebelou contra seu criador.

Os conflitos entre o Bem e o Mal seriam constantes até o momento em que os adeptos de Ormuzd venceriam, condenando Ariman e os que o seguiam às trevas eternas.

Tampouco é ousadia acreditar que o Maniqueísmo seria parte dessa linhagem herética e gnóstica originada na Pérsia. Muito tempo depois renascida no Império Romano (sécs. III d.C. e IV d.C.), sua doutrina, plena de um dualismo religioso sincretista, consistia em afirmar, também, a existência de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), assim como em localizar a matéria e a carne na escuridão.

Do Maniqueísmo foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho de Hipona, Doutor da Igreja, talvez o mais importante pensador católico, autor da “magnum opus” De civitate Dei (A Cidade de Deus), por quem Santa Mônica, sua mãe, tanto rezou para o converter.

Avançando no tempo, mas ainda na mesma linhagem, essa mesma percepção gnóstica, dualística, da realidade, constituiria o cerne da doutrina do Catarismo, professado pelos Perfeitos, os quais a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França, naquela que seria a Primeira Cruzada da Igreja Católica, liderada por São Luis, o nono Rei da França.

Questões como essa suscitaram debates ardentes durante os famosos e esotéricos anos 60 e 70, quando se questionava o modelo de vida que o capitalismo impunha ao mundo. Havia, então, um inebriante fascínio pelo Oriente misterioso dos zoroastristas, cainitas, maniqueístas, iogues, faquires, dervixes, sadhus, budistas, taoístas e seu estilo de vida, enquanto contraponto à hegemonia da sociedade de consumo e do marxismo ocidental.

Não por outra razão ainda hoje encontramos, em alguns nichos pulverizados que a internet tende a ressaltar, uma preocupação esotérica com a vida que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano ao qual estamos acostumados.

Existem também espaços diminutos, embora alvoroçados, no campo das ideias, resultantes de raízes solidamente firmadas nessa tradição oriental, que se voltam para a tentativa de explicar os fenômenos da antimatéria, física quântica, teoria do caos, em uma perspectiva mais aberta, resvalando para a metafísica, menos atenta ao rigor metodológico ortodoxo próprio da ciência.

Que o diga Fritjof Capra, famoso físico teórico autor de O Tao da Física e O Ponto de Mutação.

Por fim, quanto a Herman Hesse, é possível entender que em Demian e Gertrud, ele tratou obliquamente, ao utilizar o Cainismo como pano de fundo da trama cujo epicentro é a relação entre Demian, Sinclair e Gertrud, da origem e essência do Bem e do Mal.

Mais: ao fazê-lo, trouxe para a claridade, ou pelo menos tentou, a misteriosa seita que seus personagens professavam e, para quem optou por se aprofundar na questão, os mistérios do Zoroastrismo, Maniqueísmo e Catarismo.

Todas essas seitas conectadas pela crença na Realidade enquanto emanação de uma divindade única e suprema, e constituída pela existência concomitante e antagônicas do Bem e do Mal (a Luz e as Trevas), formando a unidade definitiva e primordial de todas as coisas.


[1] BULGÁKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. Rio de Janeiro: Alfaguara. 2003.

[2] HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record. 2015.

sábado, 31 de julho de 2021

NÃO HÁ NADA DE NOVO SOB O SOL

Eugene François Vidocq (Arras, França, 24 de julho de 1775-11 de maio de 1857, Paris, França)

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

"O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol" (Eclesiastes, 1:9).

Não há nada de novo sob o sol.

Seguimos aparentemente em frente, para destino ignorado, permanecendo os mesmos de tanto tempo atrás, enquanto as formas, os instrumentos, os meios, que são nossa criação, para lidar conosco, fenômenos e coisas, dos quais somos reféns, tornam-se cada vez mais complexos e fugazes, em uma espiral, um "vir-a-ser", como diria Nietzche, de proporções incalculáveis.

Essência imutável, forma evanescente.

Leio em Os Crimes de Paris, de Dorothy e Thomas Hoobler, acerca de Vidocq, um personagem maior que sua vida. "Depois de cometer vários crimes na juventude, trocou de lado e se aliou à polícia. Foi o primeiro chefe da Sureté, o equivalente francês da organização civil policial, e modelo para vários personagens da literatura", dizem-me eles.

Fascínio antigo esse meu por Vidocq. Camaleônico, sofisticado, indecifrável, também foi o criador da primeira agência de detetives do mundo, o "Bureau de Reinseignements", ou Agência de Inteligência. Que outro, além de um francês, criaria uma agência de detetives com esse nome?

Inspirou Maurice Leblanc na criação do célebre Arsène Lupin, “O Ladrão de Casaca” que eu lia, fascinado, na adolescência, graças à bondade de um colega de ginásio, na Mossoró que não existe mais. Como inspirou, também, além de muitos outros, tais como Alexandre Dumas, Victor Hugo e Eugène Sue, o ainda mais célebre personagem de Balzac, Vautrin, presente em vários livros da Comédie Humaine.

Em certo momento, lá para as tantas, Vautrin explica o mundo e os homens:

"-E que lodaçal! - replicou Vautrin. - Os que se enlameiam em carruagens são honestos, os que se enlameiam a pé são gatunos. Tenha a infelicidade de surrupiar alguma coisa e você ficará exposto no Palácio da Justiça como uma curiosidade. Furte um milhão e será apontado nos salões como um modelo de virtude. Vocês pagam 30 milhões à polícia e à justiça para manter essa moral... Bonito, não é?"

Dizia minha mãe: “vão-se os anéis, permanecem os dedos...”

quinta-feira, 22 de julho de 2021

CANGAÇO: LONGA VIDA A MELQUÍADES PINTO PAIVA

 * Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Chega o CANGAÇO: segunda e ampla bibliografia comentada de Melquíades Pinto Paiva, com ilustrações de Vlamir de Souza e Silva, dedicado ao saudoso Antônio Amaury Corrêa de Araújo e prefaciado pelo mestre de todos nós, Frederico Pernambucano de Mello.

Fui honrado com generosos comentários do autor acerca de meus dois últimos livros, Histórias de Cangaceiros e Coronéis e Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros, bem como de alguns artigos que ele colheu aqui e acolá, na rede social e revistas especializadas em história da cultura sertaneja nordestina.

Antes, na primeira bibliografia comentada, também foram generosos os comentários acerca de Massilon, nas veredas do cangaço e outros temas afim.

Não sei se os mereço, mas considero uma honra ser agraciado com a atenção que me foi dispensada por quem, hoje, recebe, do alto dos seus muito bem vividos noventa anos de idade, as homenagens e o reconhecimento dos estudiosos do fenômeno do cangaceirismo em todo o Brasil.

Não por outra razão, Frederico Pernambucano de Mello, como sempre muito acertadamente, no prefácio, o nomina de “Farol da Ordem do Cangaço”.

Nada mais justo e verdadeiro.

Longa vida a Melquíades Pinto Paiva!

quarta-feira, 21 de julho de 2021

FILOSOFEMAS: O PARADOXO DA COMUNICAÇÃO MODERNA

 * Honório de Medeiros

Em tempos como estes, frenético e fugazes, precisamos dizer mais, com menos. Cada vez mais com cada vez menos. O certo, mesmo, é dizer tudo, com nada.

Natal, 21 de julho de 2021

sexta-feira, 16 de julho de 2021

VOA, MINHA PASSARINHA, VOA...

 

By @diogomizael

* Honório de Medeiros    

Quando nossa filha finalmente chegou em Montreal com o esposo e seus poucos vinte e três anos, depois de uma longa e cansativa viagem, lá a esperava seu irmão, hoje praticamente cidadão canadense.

Mas não foi possível abraça-lo, até mesmo vê-lo. Cumprindo as regras impostas para o combate contra a pandemia, primeiro foi confinada, por três dias, em um hotel determinado pelo Governo.

Exame de saúde feito, resultado favorável, mudou-se para o apartamento do irmão, que o desocupara, para novo período de confinamento, dessa vez por doze dias.

Impossibilitados de se abraçarem, conversarem, o irmão não hesitou: combinaram postarem-se defronte à janela do apartamento, um dentro e o outro fora, ela afastou a cortina, sorriu, acenaram um para o outro, beijos foram enviados, e o instante foi registrado.

Muito foi dito ali naquele momento, sem uma palavra sequer, e a escrita não consegue expressar!

Se isso não é amor, eu não sei o que isso é.

Voa, minha passarinha, voa...

* O irmão escreveu, abaixo da imagem:
They say:
There is always behind a window
You just need to open it
And I can't wait for that
Love u sis.

domingo, 11 de julho de 2021

DIÁRIO DE VIAGEM: CABACEIRAS, PARAÍBA.

* Honório de Medeiros   

Um templo no meio do nada que é um tudo       

Seu Neco é um herói.

Em 2007, quando tinha quarenta e dois anos, durante mais de cinco horas, madrugada de um sábado para o domingo, precisamente das três às oito e meia da manhã, em Puxinanã, na Paraíba, sozinho, de joelhos, travou uma luta desesperada para não morrer.

Enquanto lutava, ia rezando incontáveis terços, fumando um cigarro após o outro, lembrando-se da família e tapando o buraco do braço arrancado por uma esteira de distribuir ração para galinhas, de onde o sangue vertia feito água de chuva forte, aguardando a chegada de alguém para lhe socorrer.

Manhã alta, chegou o homem que apanhava os ovos postos pelas galinhas, e acionou o corpo de bombeiros.

A máquina levou parte do seu braço. A gangrena, fruto perverso da ração que impedira a saída do sangue, e também lhe envenenou, depois comeu o resto no hospital, mas não dobrou seu espírito. Nem quando saiu do lugar do acidente, entregou os pontos: os bombeiros quiseram leva-lo em uma maca e ele se recusou; foi a pé, segurando o coto.

Depois, começou uma luta medonha que lhe feriu o espírito, tanto quanto o corpo fatigado: obter seus direitos, receber uma indenização, aposentar-se. Foi uma saga inenarrável, misto de desprezo e injustiça.

Quando a narrativa chegou ao fim, ambos estamos soturnos. Pousei o caderno de notas e a caneta. Lá fora, a tarde caia. Ouvi o canto da Seriema longe, bem longe. Eu, por querer assimilar a história em todos seus desdobramentos; ele, por perder-se em recordações ainda bastante dolorosas.

Nosso silêncio foi rompido com uma frase dita muito mais para si, do que para mim, de cabeça baixa, lentamente: “era as galinhas comendo a ração, e a máquina comendo meu braço...”

Estamos em Cabaceiras, no meio do nada, como diziam os antigos das bandas do litoral, onde ficavam as cidades grandes, quando se referiam à Região, ou do tudo, esse infinito delimitado que é o Sertão nordestino profundo, ainda arcaico, no coração dos Cariris Velhos, Paraíba, terra de gente que, em sua maioria, descende de antigos e heroicos homens e mulheres que a desbravaram na época do ciclo do couro.

Aqui, preponderam os carrascais, matacões, algarobas, facheiros, juremas, uma ou outra quixabeira, canafístulas, mussambês, angicos, pinhões, muito xique-xique, palmatória, mandacaru, e ainda reinam, no chão pedregoso, a seriema, o mocó, a jararaca, e, quem sabe, uma ou outra rara onça perdida. Um bioma único, inigualável.

No céu, quase sempre limpo de nuvens, de dia voam os urubus, e os gaviões-de-pé-de-serra, secundados pela passarinhada canora; de noite, voam as rasga-mortalhas amedrontadoras anunciando que, em algum lugar, alguém foi prestar contas de sua vida terrena a São Pedro.

Quando escurece, um mar de estrelas agasalha a terra ressequida e seu povo bom, simpático e educado, pleno daquela gentileza sertaneja nordestina que os tempos atuais parece considerar insultuosa ou mesmo um sinal de fraqueza, quando na verdade é resquício de uma educação fidalga muito antiga, que veio de além-mar.

Até onde a vista alcança, mato e serrotes se estendem à nossa frente pontilhados por uma única ilha destoante, o pequeno e solitário templo religioso que faz contraponto à capela consagrada a São Bento, localizada no extremo oposto do nosso campo visual e construída para esconjurar uma peste de cobras peçonhentas que assolou a região em tempos passados.

A capela consagrada à São Bento

Quando perguntei à zeladora da capela se surtira efeito o ato de devoção, ela respondeu que sim, “as cobras que rastejam foram embora, entretanto ficaram as que tinham pernas, muito mais perigosas...”

Antônio Silvino, cronologicamente o segundo dos grandes cangaceiros – o primeiro foi Jesuíno Brilhante - andou por aqui, mais de uma vez, no começo do século passado, fazendo danação.

Cercado pela polícia, escondeu seu ouro em um buraco, para ser desenterrado quando saísse do aperreio. Preso, cumpriu longa pena, até que foi indultado por Getúlio Vargas. Correu até onde tinha deixado dinheiro, mas o bolso dos homens em quem confiara estavam vazios, e as botijas tinham sido arrancadas e feito a felicidade de quem com elas sonhara.

De outra vez, arrombou as portas da prisão de Cabaceiras e libertou todos, principalmente os dois rapazes que tinham mandado propor a ele um acordo singular: uma vez livres, iriam fazer parte do seu bando. E lá se foram os dois rapazes, Sertão adentro e afora, livres da cadeia de Cabaceiras, mas presos pela palavra dada a um homem temível!

A Região é cheia de lendas, mistérios, segredos, guardados pelo povo e apresentados somente no geral, sem que se consiga descobrir maiores detalhes acerca dos fatos e personagens que os viveram. No máximo vislumbramos alguns indícios, cuidadosamente espalhados ao léu. Todo cuidado é pouco para eles quando conversam, e a sabedoria sertaneja abre as portas da cozinha, mas fecha as portas dos quartos.

Discos Voadores, por exemplo, de vez em quando dão o ar de sua graça, nas noites estreladas, bailando no céu do Sertão profundo e amedrontando os raros passantes, nas horas tardias, transeuntes das veredas que ligam um sítio ao outro.

Houve casos de abdução, mas Noberto Castro, nosso guia, homem lido, misterioso, versado em plantas medicinais, orações fortes e história da Região, além de escritor, avaro em palavras e carnes, nega de pés juntos que isso jamais tenha acontecido.

Norberto Castro, um homem sábio

Daniel, rapaz simpático e atencioso que nos atendeu em um restaurante de comida honesta, farta e legitimamente sertaneja de uma prima de Norberto – todos são parentes entre si, basta cavar um pouquinho - enquanto almoçamos confirma a história, em seguida a nega, mas volta a confirmar, piscando um olho para os ouvintes, por certo para não contraria Noberto.

O que Noberto não esperava era que o Prefeito da cidade, também seu primo, a quem abordamos de supetão, em sua pequena casa na interessante Ribeira, distrito de Cabaceiras, e que nos recebeu com imensa simpatia, confirmasse tudo, nos dando detalhes e nomes, enquanto ria...

O Prefeito, Tiago Castro, por si somente, é um fenômeno: candidato à reeleição em Cabaceiras, teve 93 por cento dos votos possíveis. Seu adversário amargou míseros 7 por cento. Um verdadeiro massacre.

Do Distrito da Ribeira, nos separava, para que nela entrássemos, no fim de uma estrada carroçável, dois cruéis mata-burros, um atrás do outro, uma plantação de palma do lado direito de quem entra, e o leito seco do Rio Taperoá que nos remeteu à lembrança de Ariano Suassuna. Nada mais bucólico.

Na Ribeira, primeiro vimos a arte no couro de Timotinho, que nos recebeu no português cantado dos Ribeirenses, enquanto seus primos, descendentes, como ele, de algum holandês que se aventurou pelos sertões paraibanos, trabalhavam o couro curtido. Todos brancos leitosos, de cabelo liso e olhos azuis, além de longilíneos. Depois, veio a simpatia do “Mano”, tão agradável quanto deliciosa é sua comida puramente nativa, a começar pelo pirão de mocotó de boi.

O melhor pirão de mocotó do mundo!

Depois de gastar muita conversa com Mano, voltamos à “Matuto Sonhador”, um encanto. Deus a conserve assim. Lá, à beira da fogueira, um conjunto formado por sanfoneiro, zabumbeiro e triangulista, este último afinadíssimo e perspicaz, além de gozador, voz de barítono, prometeu ao dono da pousada casar com a bela mulher estátua que pastorava, com olhos arregalados e fixos, suas performances musicais no jardim, enquanto o forró nos embalava a dança. Ficamos de voltar para o casório.

Tempo de ir, começo do tempo de voltar.

Cabaceiras, PB, 25 a 29 de junho de 2021.

terça-feira, 11 de maio de 2021

UMA NOVA PERSPECTIVA PARA A HISTÓRIA: A TRILOGIA DE HONÓRIO DE MEDEIROS, CANGAÇO, PODER E CIÊNCIA

 

Ensaio publicado na Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras Nº66, jan-mar, 2021, p.191-199.

* Gustavo Sobral

                   Este trabalho é uma tentativa de leitura da trilogia de Honório de Medeiros. Trilogia que nasce com a publicação de Massilon, em 2010, perpassa a publicação de História de cangaceiros e coronéis, 2015, e tem o seu desfecho com a publicação de Jesuíno Brilhante, 2020.

                Honório de Medeiros propõe em sua obra um estudo histórico sobre o cangaço a partir das relações de poder, um estudo sobre as relações de poder e uma nova proposta para escrita da história ao considerar que a história deve ser entendida, escrita e explicada por uma perspectiva analítica e interpretativa.

                   Como condição necessária para o trabalho de pesquisa, o autor apresenta uma revisão da literatura preexistente acerca do cangaço, propondo uma classificação em fases, tipos de estudos e tipos de autores, procurando situar nesse contexto a sua proposta de abordagem.


                   
As fases, que trata por ondas, são três: a fase da produção dos fatos, quando se passaram os acontecimentos; a fase da coleta dos fatos, quando os fatos passam a ser registrados; e uma terceira fase, que deve ser a elaboração de teorias.

                   Três também são os tipos de texto: os que fantasiam, os que narram e os que pensam. E considera também a presença de zonas de interseção: narrações que analisam; fantasias que narram etc.

                   Quanto aos autores, reconhece três grupos distintos: um grupo que reúne cantadores de viola, cordelistas, contadores de estórias, xilogravuristas e poetas; um grupo que nomeia de pesquisadores do cangaço, que são aqueles que se debruçam 192 sobre o tema; e o grupo que congrega os pesquisadores acadêmicos sediados nas universidades.

                   A par desse contexto, elege, por sua vez, um caminho próprio de investigação que, considera, deve partir de uma leitura crítica das fontes, aplicando uma metodologia adequada e suportes teóricos condizentes.

                   É essa a proposta que desenvolve na construção da sua trilogia, o que se pode albergar em cinco vertentes de abordagem distribuídas nos três volumes publicados.

                   A primeira vertente é o que se pode considerar estudos sobre os estudos, que seriam os trabalhos em que o autor expõe uma reflexão e uma visão crítica sobre os estudos existentes acerca do cangaço.

                   No primeiro volume, Massilon, é possível identificar os seguintes textos nessa vertente: “Aplicação do método da ciência”; “O cangaço em nova onda”; “A nova onda do cangaço”. No segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis, os capítulos “Epifenômeno do cangaço”, “Tipos de textos sobre o cangaço” e “Sobre história e conhecimento escolar”.

                   Um segundo viés compreende estudos críticos mais aprofundados sobre as teorias e abordagens sobre o cangaço, quais sejam, a teoria do escudo ético, do estudioso Frederico Pernambucano de Melo — ensaio que integra o segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis —; e um estudo crítico sobre Câmara Cascudo e o cangaço, adendo a Jesuíno Brilhante, terceiro volume da série.

                   O terceiro viés se volta para as biografias e os perfis de cangaceiros, coronéis e outras figuras históricas do contexto.

                   Uma quarta abordagem se detém aos episódios e a outros aspectos. Em episódios, o ataque de Lampião a Mossoró; em aspectos, podemos elencar o pacto dos governadores e o Rio Grande do Norte no tempo dos coronéis.

                   A quinta perspectiva, que perpassa todas as anteriores, é o arcabouço metodológico e teórico.

                   A metodologia adotada é plurimetodológica, voltada para uma diversidade de fontes de pesquisa, e envolve levantamento bibliográfico; pesquisa documental, que resulta do acesso a fontes documentais diversas; e pesquisa etnográfica, que é a pesquisa de campo, que alberga a coleta de depoimentos, realização de entrevistas e visita aos locais dos acontecimentos.

                   A pesquisa e o levantamento bibliográfico se concentram em livros: obras gerais de história do Rio Grande do Norte, trabalhos monográficos sobre cangaceiros, biografias, memória, genealogia e estudos teóricos no campo da ciência, filosofia, biologia, sociologia, direito, ciência política etc.; cordéis diversos, que contam a história de cangaceiros e seus feitos; e revistas e jornais de ontem e de hoje.

                   Documentos diversos, compreendendo certidões de batismo e de óbito, inventários; peças jurídicas, como processos, representações, denúncias, pareceres, relatórios; cartas pessoais e cartas abertas (publicadas em jornais). Todos são fontes exploradas e, em sua maioria, reproduzidas a título de citação, adendo ou anexo.

                   Depoimentos, entrevistas e o “Diário de Viagem” — quarta parte do volume Massilon —, que relata o percurso da pesquisa de campo.

                   Há também toda uma preocupação em documentar o trabalho de pesquisa em notas de referência, aditivas e explicativas, em rodapé e/ou ao final de cada volume, referendando as fontes pesquisadas, os depoimentos colhidos e as entrevistas realizadas.

                   A título de anexo, o autor cuida da reprodução de documentos, seja em fac-símile, seja transcrito. Também há a menção, ao final de cada volume, das fontes bibliográficas consultadas.

                   A par de todo esse suporte metodológico, Honório de Medeiros desenvolve a sua teoria, o alicerce para observar e compreender o fenômeno do cangaço e o estudo das relações de 194 poder, e o faz ao apresentar os dados coletados, a análise e a interpretação, refutando hipóteses consagradas pela historiografia e propondo um novo olhar para a história.

                   A invasão de Lampião a Mossoró ganha uma nova proposta de análise que considera as relações de poder e interesse dos coronéis e refuta as premissas postas, construindo um novo paradigma para entender a história.

                   O mesmo acontece ao observar o pacto dos governadores como decorrência dessa relação de poder; e não é diferente quando se debruça sobre a dualidade “cangaceiro, herói ou bandido?”

                   Honório de Medeiros não se julga fiel da balança ou solucionador de questões históricas, mas apresenta prismas analíticos e interpretativos se fiando na base plurimetodológica que adota.

                   A sua tentativa de biografar Massilon esbarra em uma série de dificuldades oriundas dos desencontros e conflitos de informação que permeiam os textos sobre o cangaço e, também, na ausência de dados.

                   O nome é a primeira verdade a encontrar para contar Massilon. Com tantos nomes possíveis e pistas, Honório de Medeiros se encontra diante de um baralho embaralhado: Benevides, Massilon Leite, Massilon Diógenes, Antonio Leite?

                   Uma figura e tantos nomes, qual seria?

                   O pesquisador é aquele que sabe aonde deve ir. E Honório de Medeiros vai em busca dos registros de nascimento e batismo e nada encontra, até que uma pista o leva ao inventário do pai do cangaceiro e lá está o verdadeiro nome de Massilon: Macilon Leite de Oliveira.

                   Mas não se dá por satisfeito, pois sabe que pesquisar é entender as circunstâncias das fontes, e se faz a pergunta que deixa também para o leitor: como saber se o escrivão não se enganou?

                   Honório de Medeiros entende que encontrar uma possível resposta não é dirimir uma dúvida. Assim, o autor também revela mais uma faceta do seu trabalho: um projeto de como se deve construir a história.

                   Honório de Medeiros é aquele que compreende que fazer história é não se contentar com o que está posto e, dessa forma, parte numa viagem em busca de novas fontes, que alimentam novas versões da história, ciente de que só a par de todas elas, é possível analisar e interpretar.

                   O pesquisador é também, para Honório de Medeiros, aquele que reconhece a ausência de fontes de pesquisa e que desconfia, compara, checa e confronta todos os fatos.

                   A construção de Massilon, a biografia, obedece a uma forma de apresentação sistemática que nasce da divisão lógica do autor para a exposição do tema.

                   A primeira parte é dedicada ao motivo (capítulo “A busca por Massilon”) e ao contexto (capítulo “O Rio Grande do Norte e Sertão”).

                   A segunda parte se volta para a descoberta e a revelação do biografado: como se chamava, onde e quando nasceu, quais eram as suas feições — e nesse quesito há toda uma investigação para identificar e recuperar a presença de Massilon em uma fotografia, desvendando, assim, o único retrato possível do cangaceiro.

                   Além disso, o autor aborda temperamento, fatos da vida, registros outros e, por fim, o fim, a morte do biografado.

                   Outro não é o percurso que promove ao biografar Jesuíno Brilhante, tanto nos capítulos que lhe dedica na primeira parte de História de Cangaceiros e de Coronéis, quanto, cinco anos depois, no terceiro e último volume da trilogia, dedicado à história de Jesuíno Brilhante e ao aprofundamento da tese.

                   O ataque de Lampião a Mossoró também ganha contorno em História de Cangaceiros e de Coronéis, seguindo o mesmo caminho de explanação, passo a passo.

                   Honório de Medeiros introduz, apresenta e passa a considerar as hipóteses e os envolvidos, cangaceiros e coronéis, e chega ao campo de análise para, então, propor a sua própria tese para leitura e intepretação.

                   Para tanto, o autor trabalha a construção dos conceitos. É pelo capítulo “Do conceito de cangaço”, na terceira parte do volume Massilon, que ele começa contrapondo as definições de cangaço e de banditismo.

                   Importante nessa conceituação é a definição de Cascudo: “para o sertanejo [cangaço] é o preparo, carrego, aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas, munições, bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, mezinhas tradicionais, uma muda de roupa, etc.”

                   E também estabelece confrontos.

                   Honório de Medeiros refuta a concepção de bandido social proposta pelo historiador Eric Hobsbawm. E vai mais longe: é impossível conceituar e explicar o cangaço em razão das condições geográficas, sociais, econômicas etc.

                   Caldeirão que Honório de Medeiros resumirá como “hipóteses do ambiente social” no seu “Esboço de conclusão”, capítulo de Jesuíno Brilhante. Essa redução é simplista, considera, e não abarca toda a complexidade e singularidade do fenômeno.

                   Em Jesuíno Brilhante, o autor considera novos aportes para a construção do conceito de cangaceiro, levando em consideração que seriam figuras entre a santidade e o banditismo. E sustenta que a teoria do escudo ético, de Frederico Pernambucano de Mello, não é uma leitura que se aplica exclusivamente ao cangaço, e sim ao banditismo de forma geral.

                   Pernambucano teria partido, considera Honório de Medeiros, da noção de fator moral apresentada por Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores, que, por sua vez, teria bebido na fonte de Felipe Guerra, em Ainda o Nordeste.

                   Tanto a noção de escudo ético quanto a noção de fator moral consideram a justificativa moral do cangaceiro para aderir ao cangaço como fator determinante, hipótese que Honório de Medeiros propõe que possa ser substituída por uma teoria mais abrangente.

                   Já no estudo que empreende acerca de Câmara Cascudo e o cangaço — adendo do volume Jesuíno Brilhante —, investiga a construção e o molde do pensamento cascudiano acerca do tema.

                   A perspectiva da ânsia de grandeza e impulso à revolta pessoal, que serve para pensar o cangaço, lerá em Bertrand Russell; como colherá em Albert Camus a noção de homem revoltado, que é aquele que, inconformado, reage, para então propor a leitura da figura do cangaceiro a partir da noção de outsider proposta por Howard S. Becker e Norbert Elias.

                   O outsider é o transgressor, o desviante, o excêntrico que não espera viver com as regras estipuladas pelo grupo. Dessa maneira, Honório de Medeiros propõe entender a figura do cangaceiro pelo prisma do inconformismo.

                   Compreender, e não julgar, alerta o autor. E, assim, vai chegar ao conceito de cangaceirismo: é a história dos inconformados, revoltados, outsiders.

                   Outro conceito macro é o conceito de coronelismo, que está atrelado a uma compreensão da estrutura de poder feudal no Brasil monárquico e republicano. Honório de Medeiros se valerá do conceito de coronelismo traçado por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder.

                   Seria o coronelismo aquela mesma estrutura de poder que se verifica na Europa feudal, um mundo de senhores arbitrários, cuja vontade era a lei, associados ao clero, proprietários de terras e do subjugo dos homens. O coronelismo é, portanto, uma forma de exercício do poder.

                   Outros aportes sustentam a construção do seu pensamento teórico. Honório de Medeiros parte da ciência por uma perspectiva ampla e transdisciplinar como caminho possível.

                   O autor considera o racionalismo crítico do filósofo britânico Karl Popper para construir uma abordagem científica e aplica as regras do método científico para propor uma lógica das informações como forma de validar ou não as hipóteses e, assim, escrever a história.

                   O autor também vai se valer da noção de campo social do sociólogo francês Pierre de Bourdieu, que compreende a realidade como uma malha aberta, cujos pontos de interseção, os atratores sociais, congregam fatos e ações semelhantes, formando uma malha social, ou seja, um campo.

                   Essa compreensão de campo social lhe permite observar cangaço e coronelismo como fenômenos do mesmo campo social, o campo social do poder.

                   Ao considerar o cangaço um fenômeno social, Honório de Medeiros parte do postulado do cientista político, sociólogo e antropólogo francês Émile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico, e equipara fato social a fato natural, ou seja, considera os fatos sociais como passíveis de teste, comprovação e validação.

                   O fenômeno, portanto, pode ser comprovado pelas suas leis de recorrência, e as hipóteses levantadas podem ser testadas. Dessa forma, considera Honório de Medeiros, os fatos são passíveis de serem testados para serem comprovados ou não.

                   Outra contribuição importante no construto da sua proposta é a aplicação da teoria da evolução, do biólogo britânico Charles Darwin.

                   Honório de Medeiros se apropria do darwinismo ao compreender o comportamento humano como uma evolução constante, uma busca pela sobrevivência e adaptação ao meio, e se aproxima da corrente da bio-história.

                   No que tange ao estudo das relações de poder, o referencial é o cientista político, jurista e historiador italiano Gaetano Mosca e sua teoria de classe política. Mosca entende que um fenômeno não deve ser apenas estudado em sua forma concreta ou apenas nas suas manifestações formais. É preciso compreender a dinâmica que se esconde e sustenta as relações de poder e interesse e, assim, compreender que os grupos funcionam a partir dos seus interesses de poder. O cangaço, nessa leitura, apresenta-se como uma manifestação de poder e revolta dos excluídos.

                   É a partir dessa perspectiva e da junção dessas partes que o autor conecta cangaceiros e coronéis e estabelece o cangaço como resultado das relações de poder, e é assim que também escreve uma história do poder.

                   Honório de Medeiros lança nos três volumes de sua trilogia, e em quase duas décadas de pensamento e reflexão, uma nova perspectiva teórica, metodológica e conceitual para a pesquisa e a escrita da história, abrindo as portas da história no Rio Grande do Norte, dos estudos sobre o cangaço e sobre as relações de poder, para uma nova perspectiva no século XXI.

GUSTAVO SOBRAL é jornalista e escritor. Publicou e organizou diversos livros, dentre os quais “As Memórias Alheias” e “Os Fundadores”.

quarta-feira, 17 de março de 2021

"PODER POLÍTICO E DIREITO", SEGUNDA EDIÇÃO, IMPRESSO OU EBOOK, TAMBÉM PELA AMAZON

Eis que chega a segunda edição, desta vez pela Dialética, a quem agradeço o convite para a publicação, devidamente atualizada. Trata das relações entre Poder Político e Direito. Pode ser adquirido diretamente na www.editoradialetica.com ou Amazon.com.br


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

ANJO AUGUSTO

 


Alex Medeiros

Um lampejo do talento de Alex Medeiros:


Anjo Augusto, bisneto do outro I

Eu nasci e cresci como um arbusto

na indiferença transeunte das estradas

um rebento do amor das empregadas

na prenhez ectópica de um susto

sou bisneto daquele outro Augusto

como aponta meu nome de batismo

não morri por um puro preciosismo

da genética e do jogo do destino

fiquei velho sem deixar de ser menino

sou a antítese de todo silogismo


Meu sangue formou-se em nebulosas

transfusões de uma suruba etnia

sou a soma carmática da anarquia

dois pedaços de raças raivosas

atavismo de almas poderosas

duas faces de pútridas feridas

uma vida lembrando de outras vidas

dois sabores de sucos genealógicos

eu sou claro e escuro, sou ilógico

a resposta de perguntas indevidas.


Tenho forte teor de panclastite

misturado no mijo e na saliva

gamogênese por força radioativa

condutora voraz de cervicite

sem antídoto algum pra que evite

minha ardente e sexual pantofagia

provocada por toda hebefrenia

alomórfica, caliente e pueril

tenho orgasmo vandálico e varonil

e amor quiasmático sem valia.


Nunca quis o equilíbrio, sou tumulto

não semeio a paz, eu planto guerra

sou da roda o ferrugem que a emperra

sou sem alma um cadáver insepulto

não me apraz o cortejo, sim o insulto

organizo a inércia num tormento

faço graça onde pede-se um lamento

prego horror onde impera mansidão

rasgo bíblias e incendeio alcorão

sou liberto de todo sentimento.


Anjo Augusto, bisneto do outro II

Há espectros de carnes apodrecidas

flutuando em minha sala de estar

e por estar nesta sala um pop star

não se assombram ninfetas raparigas

voluptuosas, são todas ensandecidas

trepadeiras em flor adolescente

e os fantasmas querendo virar gente

me imploram a mediúnica paixão

mas, sou ateu, prometeu, vate pagão

exorcizo uma gata em cama quente.


Há um odor de entranhas estelares

nos lençóis encardidos dessa moça

marcas de pus e de sangue, uma poça

entre anéis, algemas, cintos, colares

há vestígios de missas e altares

na fumaça de incenso de maconha

ao dormir a devassa morde a fronha

quando acorda se sente messalina

que mistério envolve essa menina

quando mata, morre e quando sonha?


Quis um dia encarnar Gregory Peck

pra beijar muitas divas do cinema

peguei negra, loura e morena

e tracei luluzinhas de pileque

ganhei calos na mão pelas chacretes

nos domingos de mil maracanãs

de quadrinhos, de janes e tarzans

de um Brasil ainda no sossego

sem TV de faustões e descarregos

de amassos inocentes nos divãs.


A Via Lactea é placenta dos planetas

asteróides são tumores pelos céus

poeira cósmica é cocaína de deus

fogo do inferno se exporta em cometas

buraco negro não tem trinco ou maçaneta

e os anjos se escondem nos quasares

no hiperespaço não há tempo ou lugares

não há minuto, não há dia, nem semana

pelo Universo toda a natureza humana

é resumida em micróbios estelares.


Anjo Augusto, bisneto do outro III

O poeta que respe jamais sacoleja

nem gnoma qualquer vai reprovar

ostiariato também não calará

e também governo, partido ou igreja

se vindo a mim o inimigo rasteja

nos meus versos de doce agonia

alquebrados em fina iconoclastia

soçobrando as alcovas ecumênicas

eu colho rimas ricas e blasfêmicas

no epitáfio do que serei um dia


Carraspana litúrgica de otários

patuléia hedionda de girinos

partogênese de burro nordestino

Ilusão maniqueísta de templários

parlamento fungo vivo do erário

baixarias de dogma evangélico

silogismos de mofo aristotélico

pardieiro do pensamento santo

uma santa enforcada pelo manto

na volúpia ecumênica de um clérigo


Discurso gaudério de um guerrilheiro

transmudo em transtorno de um ideal

o doutor milita na vara e no pau

rebelde passado de anti-usineiro

hoje mauricinho montado em dinheiro

vestal pós-burguês senhor veranista

a foice é chibata de neo-comunista

além da vitrine que o dinheiro imprensa

e a vida dilui-se em dogmas e crença

na falsa batalha de uma farsa revista


No meu livro “eu e outras putarias”

onde assisto o velório de um inseto

desmanchei um escriba analfabeto

que tornou-se cupim de livrarias

num futuro de tons de pandemias

tem morcegos vermelhos no inferno

o apóstolo João abre um caderno

revelando uma besta na fuligem

e um doido sem nome sem origem

que se chama influenciador moderno.