sábado, 24 de dezembro de 2016

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

* Honório de Medeiros

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema:
“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.”
“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.”
“Em sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.”
“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.”
“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.”
“Qual a decisão de vocês?”
Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo submeter a linha na qual estavam menos homens à possibilidade do choque.
Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?
Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.
Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo.
É nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”.
Mlodinow é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.
Em “Subliminar” Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo:
“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.
Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia.
(...)
Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O 
resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.”
Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.
Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões.
A Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.
A pergunta seguinte: a partir de quê os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”.

Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:
“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.”M
“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.”
“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.”
Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)”
Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada...
Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.
Isso quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".
E quanto ao mundo jurídico?

Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

domingo, 18 de dezembro de 2016

ATIVISMO JUDICIAL OU HIPERGARANTISMO

* Honório de Medeiros

Um dos mitos fundantes que norteiam a nossa concepção liberal de Estado é a do contrato social. Por esse mito cedemos a liberdade que supostamente nos é inerente para que o Estado impeça que nos destruamos uns aos outros.

Homo homini lupus, escreveu Thomas Hobbes, o homem é o lobo do homem, o primeiro dos grandes contratualistas. Frase de Plauto, em “Asinaria”, textualmente Lupus est homo homini non homo, expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social: em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie.

Caso não aconteça o pacto social, bellum omnium contra omnes, guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, diz-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão.
  
Essa noção, de pacto ou contrato social, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):
De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, “uma garantia mútua de direitos”, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.

E muito embora um estudioso outsider do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.
                                     
Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após Hobbes e John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente as revoluções Americana e Francesa, bem como o surgimento da idéia de Estado conforme a concebemos ainda hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual emana o Estado após o pacto social, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social, detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: são atos da vontade geral, exclusivamente; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo, que detém a soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37 do Curso, lê-se:

Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Ou seja, o exercício do poder é do povo, que em não o exercendo diretamente, o faz por intermédio de representantes seus eleitos. Eleitos, sublinhe-se. De onde se infere algo absolutamente trivial: enquanto, digamos assim, os parlamentares são o povo, os juízes são servidores do Estado, essa emanação da Sociedade.

Há algo de absurdo, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal.

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, reelaborando e reinterpretando continuamente a Constituição, conforme afirmação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, criando normas jurídicas, seja através da “mutação constitucional”, na qual a forma permanece, mas o conteúdo é modificado, seja por intermédio da identificação de lacunas inexistentes no Ordenamento Jurídico, sempre, em ambos os casos, com fulcro em uma onisciência jurídica que expressa um vaidoso e preocupante subjetivismo, formalizada via uma retórica calcada em princípios abstrusos, confusos e difusos, indeterminados e nada concretos, da nossa Constituição Federal.

Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos, disse, arrogantemente, o então presidente do STF Gilmar Mendes, supondo que fora do “habitat” jurídico, estreito por nascimento e vocação, aqueles que têm alguma formação filosófica possam aceitar que em pleno século XXI a Corte Constitucional seja, para os cidadãos, o que a Igreja foi na Idade Média, quando se atribuiu o papel de intérprete do pensamento e da vontade de Deus.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração o que acima se expõe, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

É autoritário o cerne do argumento que norteia o ativismo judicial. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do “mito platônico das formas e idéias” cuja contemplação e apreensão é privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no lugar certo, e na hora certa, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o bom e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia, como nos lembra Marilena Chauí em “Convite à Filosofia”:

A autoridade apostólica não se limita ao batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e Dele desliga-los, quando lhes disse, através de Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra, será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu’. Essa passagem do Evangelho de Mateus será conhecida como ‘princípio petríneo das Chaves’ e com ela está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus (é o Filho quem dá poder a Pedro); e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca (idem).

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A SUBJUGAÇÃO DO STF AGUDIZA A TENSÃO DO SISTEMA?

* Honório de Medeiros


Os sistemas vivos são totalizantes. Todos eles buscam a própria expansão. Sua sobrevivência depende dessa lógica, que lhe é inerente. Basta pensar em um câncer e na metástase. Seu possível limite é sempre outro sistema que lhe possa confrontar (1).

A elite política não é diferente. É um sistema dentro de outro sistema maior, que o envolve e engloba. Luta para se expandir, como qualquer outro. E busca sua coesão interna, para sobreviver.

No processo pelo qual passa o Brasil o último reduto da elite política que estertora em busca de coesão interna para resistir e sobreviver no âmbito de outro sistema maior, formado por parcela significativa da Sociedade, a se manter até então a salvo embora sob ataque, era o judiciário.

Era.

Com a capitulação do STF ante Renan Calheiros, Presidente do Senado Federal, ontem, dia 7 de dezembro de 2016, o judiciário passou a fazer parte da coalização contra essa parcela significativa da Sociedade.

Dentro de cada sistema há subsistemas que entram em choque uns com os outros, buscando sua própria expansão. Nada disso é novidade. A realidade é o que emerge desse imenso processo, como sabemos.

Que há de acontecer? Ou a atual elite política vence e manieta essa parcela significativa da Sociedade que vem tolhendo sua expansão, ou consegue derrotá-la, ou surge uma solução de compromisso que posterga, mas não elimina tudo quanto está tensionando o sistema.

A subjugação do STF aparentemente encaminha o processo para uma solução de compromisso, mas na realidade pode agudizar a tensão no sistema. 

É esperar para ver.

(1) Leia: http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2011/10/o-sistema-joga-sujo.html

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

É PRECISO RESPEITO AO SERVIÇO E SERVIDOR PÚBLICO

* Honório de Medeiros


Há uma nítida distinção, em termos ontológicos, entre serviço público e iniciativa privada.

No primeiro caso, o paradigma que norteia a ação pública (iniciativa pública) é cumprir as expectativas da Sociedade, definidas constitucionalmente; no segundo, a ação privada é impulsionada pelo objetivo do lucro.

A própria Constituição Federal, embora estabeleça como princípio constitucional a livre iniciativa e o modelo capitalista de organização da economia, ressalva o caráter social da propriedade. Essa característica, segundo a melhor hermenêutica, referenda o primado de que o público está acima do privado, como o corrobora, também, a própria legislação infraconstitucional: assim são as previsões de intervenção do Estado na Ordem Econômica sem que, entretanto, se anatematize o lucro.

Quando tratamos de ações voltadas para a Sociedade, do primado do público sobre o privado, temos que convir que dada a especificidade dessa demanda de natureza essencialmente complexa, não somente quanto ao aspecto ético, político e social, mas, também, quanto a quantidade (a Sociedade) e a qualidade, elas necessariamente são, no mínimo, de médio prazo, não obstante as demandas emergenciais, enquanto as ações privadas, por serem pautadas pelo lucro são, essencialmente, instáveis e voláteis.

Se a ação pública se desenvolve, o mais das vezes, a médio e longo prazo, torna-se fundamental a preservação da sua memória, ou seja, qual o recurso humano nela envolvida e a consequente experiência advinda no trato com a questão trabalhada. Sem a preservação dessa memória não é possível a continuidade das políticas públicas, e a consequência é o comprometimento das ações estatais.

E somente é possível a preservação da memória aludida com o respeito ao serviço público, ao servidor público e a sua carreira diferenciada, assegurando-se-lhe o direito de ser credor do investimento de Estado em sua vida profissional, através de aposentadoria distinta, remuneração razoável e estabilidade na carreira. Trocando em miúdos: o serviço e o servidor público devem ser um investimento do Estado, dadas as peculiaridades do exercício da função pública, que exige sacrifícios indiscutíveis.

Por quê essas políticas públicas – aquelas consistentes – demandam tempo para serem implementada? Porque envolvem parcela significativa da Sociedade durante um longo tempo. É o caso, por exemplo, da erradicação do analfabetismo. As ações públicas que ao longo do tempo efetivamente originaram melhoria na qualidade de vida da Sociedade foram desenvolvidas sob o prisma da permanência, para além dos humores político-partidários.

Podemos comprovar essa afirmação analisando o segmento da Saúde e Educação em países comprovadamente desenvolvidos. Acresça-se outra assertiva: o desenvolvimento – não o econômico, mas, sim, o da qualidade de vida - desses países foi decorrente de políticas públicas, nunca privadas (lembremos a Escandinávia).

Mesmo no Brasil, onde faltam políticas de Estado, embora abunde as de Governo, muitos avanços foram obtidos graças a políticas públicas permanentes. Na área de saúde, citemos, o Brasil é referência mundial não somente no que concerne à erradicação definitiva de algumas moléstias como, também, em relação ao combate preventivo à AIDS.

Parece óbvio que, no caso do Brasil, os parâmetros estabelecidos pelo Consenso de Washington que originaram o cânone neoliberal encontraram solo fértil na tradicional ojeriza da Sociedade à utilização do serviço público e burocracia como instrumentos de obtenção e manutenção de privilégios de classe. É certo, também, que faz parte da cultura brasileira – embora a raiz possa ser rastreada até Portugal, como lembra Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” – a construção dessa histórica instrumentalização do aparelho estatal por parte do estamento burocrático.

É certo, ainda, que o capital internacional considera a presença do Estado na economia como um obstáculo à sua desenvoltura, bem como anatematiza a concepção de desenvolvimento econômico por ele impulsionado. A conclusão, portanto, errada, do senso comum e das elites atrasadas, é a crença de que o servidor e o serviço público, são alavancas do atraso.

Entretanto, a verdade é bem outra. Podemos desconsiderar o diagnóstico apresentado pelo senso comum da sociedade e teóricos do neoliberalismo em relação ao serviço público brasileiro em seus fundamentos; podemos e devemos criticar veementemente a causa por eles encontrada dos descaminhos específicos do Brasil. O Estado não é um mal em si mesmo. Com efeito, condenar o Estado, o serviço e o servidor público na sua totalidade, pelos desacertos da elite governamental, seria como propor igual condenação do Capital pelas falências e concordatas inerentes à iniciativa privada.

Contra esse ideário quase consensual que se tornou lugar comum no Ocidente, e que nos legou a permanente fragilidade de nossas instituições, e a favor da compreensão do papel fundamental do serviço e servidor público na obtenção do bem-estar social almejado pela Sociedade, argumenta Jânio de Freitas, em seu artigo intitulado “O Bolso e a Vida”, publicado na Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2003: “A iniciativa privada não faz um país, no sentido de vida social e econômica organizada. Só o serviço público pode fazê-lo.

Os estudos sobre a recuperação da Europa, da devastação do pós-guerra ao bem-estar de hoje, sem igual no mudo, demonstram que o êxito não se explica pelo Plano Marshall, mas pelo papel decisivo do serviço público e pela função atribuída ao Estado naqueles novos ou restaurados regimes democráticos”. 

Não levar em consideração tal princípio pode nos levar a passarmos por cima do legado histórico de políticas públicas que foram extremamente úteis à Sociedade brasileira e que, com certeza, não poderiam ser implementadas pela iniciativa privada: um exemplo banal é a informatização das eleições no Brasil. As políticas públicas foram possíveis graças à preservação, governo após governo, qualquer que tivesse sido seu matiz, da memória das instituições. 

Esta somente é possível quando o servidor público tem respeitada sua diferença com o privado e a exclusividade de suas atribuições, tal como não trabalhar em nada além daquilo para o qual foi investido (seu cargo) – o que seria um desvio de função -, e que é uma garantia de Estado.

Por fim, da mesma forma como deve ter acontecido ao longo do processo histórico pelo qual passaram países altamente desenvolvidos e nos quais a participação do Estado foi fundamental - lembremo-nos da Dinamarca, Suécia, Canadá, França, Noruega, Japão -, para que o serviço e o servidor público sejam devidamente respeitados, necessário é combater a burocracia, a corrupção, e a ineficiência. Em o fazendo, asseguramos passaporte para um futuro melhor, capitaneado por um Estado que reflita os anseios da Sociedade.

Pois, afinal, o Estado não é um mal em si mesmo.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

A NOITE E OS MOSQUITOS

* Honório de Medeiros

Fui visitar Seu Antônio de Luzia. 

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: "tá falando muito pouco e escutando demais."

"Por que?"

"Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca."

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

"Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?".

"Boa tarde!"

E eu me danei a falar e ele só escutando, olhando e calando.

Lá para as tantas, perguntei: "o Senhor perdeu o gosto de falar?"

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: "tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas." 

Parou, pigarreou, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro da rua do Sítio Canto, e rematou: "O pouco que sei faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d'água no poço..." João só olhava.

Mais não disse.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos.

domingo, 13 de novembro de 2016

TRAGÉDIA, FARSA E VICE-VERSA

* François Silvestre
Na Coluna Plural, do Novo Jornal. 
Todas as ciências são de origem natural. Menos uma. Sim, porque há uma ciência de origem cultural. Isto é, criada pela ação humana. E mesmo assim essa criação humana não ocorre de forma controlada ou consciente. É a História.
Não se confunda História com historiografia. A História é o resultado da ocorrência das relações humanas; que vão desde os desdobramentos das conquistas naturais, sociais, políticas, de conhecimento, de arte e do pensamento. A historiografia é uma disciplina histórica, narradora, limitada pelo ponto de observação do historiador. A História produz o fato. A historiografia narra ou interpreta o fato histórico.
Possuir leis e disciplinas é a marca configuradora das ciências. A numismática, a heráldica e a historiografia são algumas das disciplinas da História. A imutabilidade do fato ocorrido é uma lei da ciência histórica.
Na História, o fato ocorrido é único e imutável. Na historiografia, um mesmo fato pode acolher várias versões. Dizia Thomaz de Aquino que “contra o fato ocorrido nem a interferência de Deus tem eficácia”.
O mais que se pode fazer contra o fato ocorrido é conjecturar. Imaginar ou supor consequências diferentes caso o fato houvesse sido outro e não o que realmente aconteceu.
Exemplos de conjecturas? Se Lott houvesse vencido Jânio Quadros, em 1960, não teríamos tido uma Ditadura militar. Se JK houvesse sido eleito, em 1965, o Brasil seria outro país.
Hegel afirmou que fatos e personagens da História repetem-se em épocas diferentes. Marx, na abertura d’O 18 Brumário, confirma essa assertiva de Hegel, mas observa que na repetição, de fatos ou pessoas da História, esta se dá com o segundo fato ou personagem sendo a farsa do primeiro, que foi a tragédia.
A redemocratização advinda pelo fim da ditadura Vargas deu-se com sucessivos fatos trágicos. Dentre eles, o suicídio de Getúlio, a renúncia de Jânio, a deposição de Jango. Foi a tragédia.
A redemocratização nascida da negociação de milicos, pelegos, raposas e similares, é a farsa. Vivemos a farsa de hoje, que repete uma caricatura da tragédia de ontem.
Na tragédia, estabeleceu-se um governo provisório para preparar a democracia. Foi o Presidente do Supremo, José Linhares, que governou por três meses.
Na farsa, o governo provisório durou cinco anos. Sarney foi a farsa de Linhares. Collor, a farsa de Jânio. Temer é a farsa de Itamar Franco. Lula é a farsa de JK. Ninguém ainda quis ser a farsa de Getúlio.
O Congresso Nacional de 1964 foi vencido pela força dos tanques e pelo conluio do fascismo civil com os quartéis politizados. O de hoje é a quitanda das “leis”.
A farsa nem sempre é mais suave. A Ditadura de 64, farsa do Estado Novo, fez da tragédia uma imagem pífia. A farsa, neste caso, pariu a tragédia da farsa que somos. Té mais.

sábado, 12 de novembro de 2016

UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO

* Honório de Medeiros

"APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele." 


Que o ensino, no Brasil, é completamente ultrapassado, basta cada um de nós recordar seus tempos de estudante e a ênfase dada, em cada Escola ou Faculdade, ao primado da INFORMAÇÃO sobre o CONHECIMENTO.

Em texto publicado anteriormente dissemos qual a distinção entre SE INFORMAR OU SER INFORMADO e CONHECER (http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/09/aprender-aprender.html).

Pois bem, o ensino tal qual é praticado hoje, no Brasil, com esse viés de INFORMAR, é anterior à presença, no País, dos jesuítas. Melhor, é anterior à Alta Idade Média, onde o ensino ocorria por intermédio do estímulo ao debate, à discussão, como nos mostra Jacques Le Goff em “OS INTELECTUAIS NA IDADE MÉDIA”:

"Com base no comentário de texto, a LECTIO, análise em profundidade que parte da análise gramatical, a qual produz a letra (LITTERA), ergue-se a explicação lógica que fornece o sentido (SENSUS) e termina pela exegese que revela o contéudo da ciência e do pensamento (SENTENTIA).

Mas o comentário provoca a discussão. A dialética permite ultrapassar a compreensão do texto para ir aos problemas que levanta, faz com que o texto se apague diante da busca da verdade. Um extensa problemática substitui a exegese. De acordo com procedimentos próprios, a LECTIO se desenvolve em QUAESTIO. O intelectual universitátio nasce a partir do momento em que põe em questão o texto, que não é mais do que uma base, e então de passivo se torna ativo. O mestre deixa de ser um exegeta, torna-se um pensador. Dá suas soluções, cria. Sua conclusão da QUAESTIO, a DETERMINATIO, é a obra de seu pensamento."

A partir de 1599 a Companhia de Jesus colocou em vigor o famoso Ratio Studiorum, uma espécie de coletânea privada, que surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante da explosão do número de colégios confiados aos jesuítas.

O modelo jesuítico, presente desde o início da colonização do Brasil pelos portugueses, apresentava os passos fundamentais de uma aula: preleção do conteúdo pelo professor, levantamento de dúvidas dos alunos e exercícios para fixação, cabendo ao aluno a memorização para a prova.

Como se pode depreender falta, ao ensino, no Brasil de hoje, comparando com a época dos portugueses, o estímulo ao levantamento de dúvidas, à crítica, por parte dos alunos. As aulas são preleções e nada mais...

Bachelard, comentando o cenário dos obstáculos epistemológicos à obtenção do conhecimento, em “A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO”, lembra que:

"No decurso de minha longa e variada carreira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico. O educador não tem o SENSO DE FRACASSO justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda."

Como aprendemos quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele, as preleções, meras exposições, podem até nos INFORMAR, mas, com certeza, em nada contribuem, além de fomentar o tédio, para o nosso CONHECIMENTO.

Aliás, é bom que saibamos distinguir entre APRENDER e CONHECER.

Que nós conhecemos quando aprendemos, quanto a isso não há qualquer dúvida. Se aprendemos, conhecemos; se conhecemos, aprendemos. Entretanto, por uma questão pedagógica, costumamos distinguir o APRENDER do CONHECER no sentido de que, no primeiro caso, nos referimos, tecnicamente, a aquilo que resulta da busca deliberada de conhecer.

Aqui, o “deliberada” faz a diferença, na medida em que podemos CONHECER sem que tenhamos nos encaminhado para isso, bem como podemos CONHECER enquanto resultado desejado, buscado, e alcançado.

Não por outra razão, se eu digo “eu aprendo”, estou me referindo ao processo por intermédio do qual eu obtenho o conhecimento. Se eu digo “eu conheço”, significa que compreendo, entendo, apreendo aquilo acerca do qual me refiro.

Ou seja, o APRENDER decorre do processo de aprendizado, que é algo que se busca conscientemente. Nesse sentido, o CONHECER engloba o APRENDER, vez que o CONHECER tanto pode ocorrer desde que queiramos, quanto pode ocorrer mesmo que não o queiramos.

No sentido utilizado neste texto, todavia, não há distinção a ser feita. Aqui, APRENDER tem o sentido de CONHECER, e o conhecimento é alcançado, no sentido que se deve almejar nas escolas e universidades, na medida em que problematizamos a realidade, ou seja, enquanto alunos, criticamos sistematicamente, vigorosamente, a informação que nos é ofertada por intermédio das preleções dos professores.

Recordemos Popper, em “CONJECTURAS E REFUTAÇÕES”:

"- Cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos..”

E Bachelard, em obra acima mencionada”:

"No fundo, o ato de conhecer dá-se CONTRA um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos (...)"

Ainda:

"Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas."

E, por fim:

"Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediatamente, melhor questionar."

Portanto o estímulo a essa crítica sistemática e vigorosa, ao debate, à discussão, por parte dos alunos, às informações veiculadas pelos centros de saber deve ser um postulado fundamental do ensino que pretenda alcançar níveis superiores de excelência.

Na verdade, esse estímulo deveria se constituir numa verdadeira “PAIDÉIA”, um ideal de civilização, algo intrínseco à nossa Sociedade, principalmente hoje em dia, com a permanente ameaça à Liberdade por parte do Estado, dos seus aparelhos de controle, e daqueles que o usam em proveito próprio.

O limite ao Estado foi, é, e sempre será, a Sociedade livre e não-alienada.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A "JUSTIÇA" DOS DEUSES

* Honório de Medeiros

Os fenômenos físicos, sua repetição, o padrão idêntico de suas conseqüências uma vez presentes as mesmas causas, quando apreendidos, são expressos através de uma fórmula – uma abstração – em uma linguagem sofisticada, a matemática.

Não precisamos descrever uma mesa para construir sua imagem ante nossos olhos; não é necessário fazê-lo em relação ao ferro que, colocado ao sabor do fogo, torna-se maleável e origina uma espada.

A certeza da inalterabilidade do fenômeno físico originou a consciência da causalidade pelo mecanismo da associação de idéias: não pode haver chuvas sem nuvens. E a expectativa de que todos os fenômenos ocorram da mesma forma, tanto na Grécia quanto no Egito, ontem como hoje, pertence ao mesmo gênero.

Esses fenômenos ocorreriam em virtude da “Justiça” dos deuses, entendida esta como “ordem”, “desígnio”, “determinação”, em um mundo na aurora de sua história.

Mas os deuses precisavam de intérpretes, de intermediários. Assim, foi fácil, para os mais espertos, fazer uso da confusão entre um fenômeno físico e um fenômeno que é conseqüência da vontade do homem, tal qual a proibição de matar, e se colocarem como representantes dos deuses na Terra. Ainda hoje há quem creia que os terremotos são punições divinas.

Hoje esses “deuses” foram substituídos por abstrações, como a “vontade do povo”, “moral média da Sociedade”, e assim por diante. Permanecem os intérpretes e intermediários. E os inocentes-úteis, aptos a serem manipulados. Ou seja, permanecem os lobos e as ovelhas.

Obviamente esse processo atende ao anseio da elite dirigente que o acentuava (e o havia criado).

Impressiona que se creia em Direito Natural quando qualquer conhecedor da história do Homem pode constatar, ao ler as primeiras compilações de leis escritas da humanidade, que sua existência se deve, única e exclusivamente, à necessidade de impor a ordem dos dirigentes.

Isso sem mencionar que, com certeza, na pré-história do Direito, apenas a necessidade de sobrevivência do clã originava a imposição de condutas, nunca algo abstrato quanto a idéia de Justiça.

Se se acreditar – é possível que alguém o faça – que esse ordenamento jurídico natural estaria à espera da maturidade da humanidade para ser colocado à sua disposição, bem, também se pode acreditar em Saci Pererê. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A RETÓRICA DOS OBJETOS

* Honório de Medeiros

“Ser é perceber” (George Berkeley, 1685-1753).

Os objetos falam, por assim dizer.

Existe uma diferença entre “ver” e “enxergar”, sabemos disso[1]. Quando “vemos”, percebemos.

Os objetos, se percebidos, dizem-nos muito.

Imagine que você seja um advogado que foi introduzido na biblioteca de um potencial cliente para discutir com ele acerca de um futuro contrato de honorários. Você não se preparou para o encontro, seja porque não teve tempo, seja porque confia em sua capacidade de persuasão.

Ao aguardar a chegada do seu possível futuro cliente em sua (dele) biblioteca se admira com a organização reinante: livros limpos, organizados por tema e, nesses nichos, os autores postados em ordem alfabética.

A biblioteca condiz com o ambiente no qual ela repousa. Os outros objetos do espaço circundante também primam pela limpeza e organização: não há nada fora do lugar.

Esses objetos dizem que seu dono é alguém, portanto, organizado, até mesmo meticuloso.

Qual a probabilidade de você convencê-lo nesse encontro para o qual não está devidamente preparado com dados, documentos, legislação, jurisprudência e, até mesmo, doutrina?

Quase nenhuma.

Existe uma retórica dos objetos, chamemo-la assim, na falta de uma denominação melhor. O que se quer dizer é que “os objetos dizem, expressam algo”, dependendo de seu contexto. E é fundamental conhecê-la para quem se interessa em “decifrar” o meio com o qual interagimos.

Ramo da Retórica dos Objetos é a publicidade. Usa a técnica da Retórica dos Objetos para induzir associações de idéias que promovam o consumo.

Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento” que decodificamos os objetos.

E o que seria o “estranhamento”? É algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual uma arte marcial, tornar-se hábil em captar essa desarmonia demanda contínuo exercitar-se até o limite do possível.

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa e meticulosa da biblioteca do cliente chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “ver” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer alguma inferência, ou elaborar alguma hipótese, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norteamericana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. Mas como essa câmera filmava através do espelho? Patrick sabia que os ilusionistas usam muito um tipo de espelho que permite a quem está por trás visualizar através dele. A noção de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, ali, essa sensação de estranhamento.

Um exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." ("O Tango da Velha Guarda"; Arturo Pérez-Reverte).

[1] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/ver-e-enxergar-acionam-regioes-diferentes-do-cerebro-diz-estudo.html

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

DE GRATIDÃO INTELECTUAL

* Honório de Medeiros

Tenho gratidão intelectual a dois grandes amigos, a quem considero os mais inteligentes de minha geração. 

Eduardo Jorge Maciel Pinheiro me presenteou, meados dos anos 70, com "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos", de Sir Karl Raymund Popper.


Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, logo depois, me iniciou na filosofia de Gaston Bachelard.


Ambos os autores atemporais. Enquanto houver civilização como conhecemos, eles serão referências.

Popper foi o último grande filósofo do século XX: matemático, músico, lógico, sociólogo, epistemólogo, cientista político. Bachelard, um homem diurno, a pensar a ciência, e noturno, a pensar a arte, com a intensidade de um gênio.

Gostaria de ser lembrado por alguns dos meus ex-alunos como alguém que lhes apresentou um autor ao qual se vincularam intelectualmente pelo resto dos seus dias.

Muita pretensão, claro, mas sonhar é livre e não custa nada.

Aos professores Eduardo Maciel e Gilson Pereira, minha gratidão.