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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ARIANO SUASSUNA: A ARISTOCRACIA PELO ESPÍRITO

poemia.wordpress.com

Ariano Suassuna

Ariano Suassuna: Madrugada alta. Casa de Eriberto Suassuna, meu compadre, em Pau dos Ferros, primo do autor de "A Pedra do Reino". Acabei de ler a apresentação que o maior escritor nordestino, uma ilha de qualidade no universo literário brasileiro, fez da obra de outro parente seu, Raimundo Suassuna, acerca da genealogia da família que lhes deu o sobrenome.

Ariano, a quem Raimundo Suassuna pedira que fizesse uma apresentação "simpática", de seu livro, praticamente escreveu um ensaio onde, entre outras coisas, abordou duas coisas que me chamaram a atenção: na primeira delas conta de seu orgulho por ser um "Suassuna"; e, na segunda, estabelece o seu conceito de "aristocracia".

É preciso que se diga que o orgulho de Ariano com o fato de pertencer a essa lendária família nordestina é decorrente da intensa, profunda, ligação que ela tem com o Sertão, naquilo que lhe é mais peculiar, e é onipresente na bela e estranha produção literária e postura existencial do mais (ou talvez único) "gauche" dos nossos escritores membros da Academia Brasileira de Letras.

Aristocracia: Ariano Suassuna entende que existe uma aristocracia pelo espírito, que é profundamente diferente daquela resultante de títulos nobiliárquicos. Ele estabelece essa diferença confrontando o "homem", na sua acepção mais densa, com o "cortesão". Neste caso, chega a manifestar, implicitamente ou não, um verdadeiro asco dos títulos comprados, recebidos por favores prestados através de subserviência, barganhados, ou oriundos de qualquer outra forma utilizada por serviçais do poder que caracterizam, em última instância, o comportamento dos alpinistas sociais.

A verdadeira aristocracia, para Ariano, é aquela adquirida pelo espírito. Essa nobiliarquia, na sua concepção, é decorrente de uma postura moral ilibada, aliada a um exponencial senso de honra e vocação pública. Aristocrata, então, seria Albert Schweitzer, Gandhi, Albert Sabin, entre outros. Nunca Churchill, Kennedy ou outros menos ilustres.

Titãs morais, verdadeiros cavaleiros da távola redonda, homens sem mácula e sem medo, sempre à disposição dos injustiçados ou a serviço de causas mais que nobres. Individualidades poderosas, que se recusaram ser conduzidas, cooptadas, amordaçadas. Não aceitam ser a folha que o rio leva para o mar; muito antes, pelo contrário, assemelham-se às represas que domam a marcha das águas.

Essa aristocracia pelo espírito de Ariano é fecundada, em termos ideológicos, por um socialismo que lembra o cristianismo primitivo em sua perspectiva ética. É como se ele cresse que a verdadeira revolução seria aquela promovida através da encampação da dignidade como único fulcro da conduta humana, legitimando-a.

É um contraponto dialético da ética burguesa que, exposta a olho nu por suas contradições básicas, mostra a conduta humana amesquinhada por obra e graça da lógica do capitalismo. Esse burguês, caricato, cortesão, jamais diria: "ao Rei tudo, menos a honra", mas, sim, "à elite tudo, até o bolso".

Trata-se de uma crítica ética ao capitalismo. A busca do lucro, revestida pelo fetiche ideológico da "competição", da "livre concorrência", amesquinha o homem que aceita participar de tal jogo. Um aristocrata pelo espírito, cuja conduta é calcada na honra, no senso de justiça pública, recusa-se a aceitar uma competição cujo resultado final seja a obtenção de um ideal tal como, por exemplo, a obtenção de lucro.

Talvez haja algo de quixotesco na dimensão humana de Ariano Suassuna. É interessante, entretanto, observar o quanto sua concepção filosófica, nesse aspecto, aproxima-se daquela professada por Saint-Exupèry, aristocrata pelo espírito e por genealogia, conde, em seus escritos de "Cidadela".

E, por outra, do "bushido", o caminho do samurai. Note-se que Yukio Mishima, em seu comentário acerca do "Hagakure", um manual escrito por um samurai, para samurais, critica asperamente os nobres por ele chamados de "aristocratas de contas de despesas". Ou seja, tanto para Ariano, quanto para Saint-Exupèry e Mishima, o homem, assim considerado, é aquele que transcendeu o apequenamento, o amesquinhamento inerente à ética do capitalismo, da qual nos fala Max Weber, e tornou-se um aristocrata pelo espírito.

Aristocrata pelo Espírito: Não considerei correto o título "aristocrata do espírito". Difícil dizer por quê. Acho que "aristocrata pelo espírito" expressa com maior clareza a idéia de uma nobreza obtida através do espírito - tudo aquilo que caracteriza o humano, como a razão, incluindo, inclusive, o seu pendor místico.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

ANTÔNIO FRANCISCO

blogdojottapaiva.blogspot.com

Antônio Francisco, de camiseta branca, aguarda o momento declamar

Antônio Francisco, essa alma gentil, me prometeu uma cópia de poema seu que acabara de recitar para nós, maravilhados ouvintes, no café ao lado do Teatro Municipal de Mossoró. Um belíssimo poema alegórico, pleno de imagética, ritmo e rima, como diria Jarbas Martins, nosso bissexto poeta maior, acerca da Justiça – essa mesma, com “J” maiúsculo – que mora enquanto anseio no coração dos homens, e não aquela que jaz aviltada nas esquinas das ruas e nas estradas dos campos. Mas Antônio Francisco, esse gênio tardio, que nos humilha e enleva com seu talento hoje inigualável até agora não cumpriu sua promessa! Coisas de poeta, do tipo de artista que ele é, antenado no presente que lhe põe a funcionar sua criatividade em qualquer instante e em qualquer lugar e lhe mantém afastado da burocracia do futuro – compromissos, papéis – essa remota condição do existir ansioso.



Eu queria de Antônio Francisco esse poema por que há tempos ando tentando escreve um pequeno ensaio – algo mínimo, se possível – acerca da idéia de Justiça na poesia popular. É claro que preciso ter todo cuidado do mundo com tal projeto. Por exemplo: o que é “poesia popular?” Quais seus limites? Haveria uma tentativa de enquadrar a idéia de Justiça encontrada nesse tipo de poesia nos parâmetros teóricos acerca da sua construção entre os gregos – esses que foram os pilares sobre os quais edificamos nossa civilização ocidental.


Talvez Antônio Francisco esteja desconfiado do propósito ao qual eu pretendo – ou pretendia – destinar seu poema, e muito sabiamente resiste. Por que, e isso é uma verdade incontornável, há sempre uma resistência por parte de quem produz o belo em aceitar qualquer tentativa de dissecação e enquadramento acadêmicos – naturalmente antipático – daquilo que nasceu para ser livre, uma obra aberta, (re)construída por cada intérprete, na medida de sua fruição. A esse argumento somente posso contrapor a resposta óbvia: meu caríssimo e admirado Antônio Francisco, poeta telúrico, de gênio indomável, suas crias, seus rebentos artísticos, suas obras de arte já não lhes pertencem desde que ganham o mundo; eles são nossos, da humanidade, para nosso deleite e sua glória.



Assim, Antônio Francisco, todo esse preâmbulo foi para lhe dizer que atenda, se possível, esse apelo meio que canhestro e entregue a “Seu Chico”, o quanto antes, cópia do belíssimo poema que nos recitou por que, fosse eu alguém merecedor de ser honrado com a possibilidade de pedir uma graça, teria pedido a meu padrinho São Francisco me desse a de ter uma memória privilegiada para gravar, definitivamente, com todos os detalhes, qualquer belíssimo poema tão logo estivesse a ouvi-lo, mas como não sou, o jeito é depois ter que incomodá-lo e lhe lembrar a promessa feita e testemunhada.

Deus o abençoe e a seu talento.



P.S. Somente para esclarecer: após saber deste apelo, o grande Antônio Francisco deixou, com Seu Chico, o belo poema prometido. O ensaio é que ainda não saiu...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

UMA PEQUENA HOMENAGEM

Seu Chico Honório e a neta, Bárbara

Para Seu Chico Honório.

Quando meu pai finalmente concordou em receber o título de cidadão mossoroense impôs uma condição: se tivesse que falar eu o faria em seu lugar. Aceitei por que tinha consciência que sua humildade não lhe permitiria ocupar, deliberadamente, o centro das atenções.

Depois, ao longo das minhas caminhadas diárias, enquanto não chegava o dia da cerimônia, compus vários discursos. Em um, eu começava falando de sua infância difícil, sem a presença do pai, tendo que tanger jumentos que conduziam água dos barreiros para as casas a troco de quase nada; em outro eu concluía comentando sua velhice serena, tocada pela melancolia que a doença de sua companheira de toda uma vida suscitara. Nada me agradava. Sentia que mesmo com toda a minha experiência, estava tão emocionalmente envolvido com o tema do discurso que não conseguiria realizar meu intento de ser fiel ao perfil que desejava projetar.

Não adiantaria, naquele momento, seguir o conselho antigo e precioso: “fale com o coração”. Ao contrário, pensava com meus próprios botões, “preciso é de razão.”

Finalmente lembrei-me de perguntar a mim mesmo o que, em sua existência mossoroense, chamara a atenção daqueles que o homenageavam. A resposta era fácil: sua fé, que o transfigurara e o colocara distante de nós, católicos reticentes ou descuidados, por que lhe trouxera a brandura de coração e aquele olhar compassivo de quem, por tudo compreender, é capaz de sempre perdoar. Os anos, então, passaram ante os olhos da minha mente e eu recordei e pensei em transmitir para quem quisesse ouvir imagens esmaecidas de há muito tempo atrás, que mostravam uma família unida em torno do terço puxado diariamente por meu pai; as missas dominicais para as quais nos levava em nossas melhores roupas; as longas e confortantes conversas presenciadas de longe e pouco compreendidas, entre ele e quem o procurava – e eram muitos; o convívio com os companheiros de fé quando a Igreja os chamava; os últimos anos, ajudando a celebrar a Santa Missa e ministrando a Eucaristia na pequena Capela de São Vicente; a entrega amorosa e paciente à missão de cuidar da degradação física e mental do grande amor de sua vida...

Então seria por esse caminho. Eu não precisaria contar de uma paixão que lhe acalentara a meninice desde quando, para ganhar uns cobres a mais, cantava repentes na feira de São João do Sabugi – a viola. Não precisaria lembrar sua viagem solitária, a cavalo, nos idos dos anos 40, da mesma São João à Alexandria, em busca de dias melhores; não precisaria falar de seus anos na Estrada de Ferro, onde fora chefe de trem; não precisaria lembrar sua luta – já maduro – para concluir o curso técnico de contabilidade, nem dos anos vividos à sombra do radicalismo político de Mossoró, que tanto nos fizera sofrer. Principalmente não precisaria dizer como lhe calaram a viola por não compreenderem o valor de sua arte, nem de sua resignação, tudo aceitando por amor à família.

Talvez, no final, eu resolvesse dizer quanto nós, seus filhos, somos felizes em tê-lo como pai; quanto nosso caráter foi moldado pelo seu exemplo e quanto nos orgulhamos de perceber, na cidade que escolheu para casar, ter e criar seus filhos, o reconhecimento de seus pares a um homem de fé, simples e bom.

Não foi necessário, graças a Deus. Outro falou pelos demais. Como nada disse naquele dia, e acho que falaria mais para ele que para os outros que ali estavam, resolvi publicar este artigo.

Para que ele saiba.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"SEO" CHICO PIU E A TEORIA DA EVOLUÇÃO


Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais um Honório de Medeiros magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele mágico passeio a cavalo até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo. Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de amargor toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, dizem os franceses.

Naquela tarde conheci Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular. Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo o seu cacique. “Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que mais impressionava eram seus pés. Eles, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, havia sido em tempos idos, segundo suas próprias palavras. Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, descia descalço até mesmo para a cidade, aonde raramente ia. E não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura.

“Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as... Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro. Vivesse no Sertão nordestino e tivesse aqui terra e gado como aqueles seria um homem de posses, por assim dizer. No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida.

Mas tudo que é bom dura pouco.

Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua. Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula que me conduzia, apontou para mim e quase como para si próprio, refletindo, e me disse ter o tempo lhe ensinado que a vida era como uma serra da qual cada um que descia era por que o outro que subia lhe tomara o lugar. Dito isso, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros incomodados com o sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, a todo meu conhecimento sorvido dos livros de teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele deduzira somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

"SEU LULA"


starchildrens.blogspot.com

Ali e acolá, em livros que somente alguns lêem, seja por que deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida nos quais eles aparecem sem que saibamos como nem muito menos a razão, me deparo com seu nome. Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo, incidentalmente, fugazmente. Recentemente, ao reler a literatura norteriograndense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, para trazer expressões próprias do jogo de xadrez, que amava tanto, até o cotidiano.
 
Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar. Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida por castigo ou doença. E brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, na pequena casa onde Lula Nogueira - “Seu Lula” - vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.
 
“Seu” Lula morava em uma casinha branca com área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a sala, saleta, salinha que era de visita e jantar ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho. A sala dava para uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano. Tudo muito normal, tudo muito comum não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton” para os embates enxadrísticos.

Embora possa me lembrar de “Seu Lula nas calçadas de nossa rua conversando, principalmente na roda de “Seu Napoleão”, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, essas incursões eram raras. Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional. Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.
 
Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez. Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.









sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

DONA EFIGÊNIA

Por Honório de Medeiros

Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei. Gorda, imensa, um pouco surda – talvez por puro cálculo – passava o dia sentada em uma cadeira de balanço na ampla sala de estar que dava para um jardim lateral e o portão de ferro batido, pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo, em sua casa antiga, senhorial, de esquina. Sempre perfumada, penteada e bem vestida ficava o dia inteiro colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias na qual reinavam, incontestes, o telefone e o rádio. “Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam mais a vontade”.

Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la tantas vezes fosse a sua cidade. E tenho certeza que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente. Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustraria alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente interessante por que revelava um agudo poder de observação e análise.

Por que Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável que o falecido lhe deixara, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns. Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone. Devo ter esquecido alguns, óbvio. Mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela quase sempre em silêncio escutando até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo que ficava estrategicamente perto de sua cadeira de balanço e cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava particular era dada por encerrada.

Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam estes que tudo aquilo não passava de fofocas de viúva velha. Depois de algum tempo compreendi que ela mesma criara essa camuflagem. Era assim que queria que os outros lá fora a enxergassem! Essa camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária. Através da colheita de informações ela ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno: alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado...

Então Dona Efigênia entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar, realizando um metódico, complexo e minucioso bordado social.

Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor. Seu enterro foi algo inesquecível. Houve muitas flores, muitas lágrimas de saudade e gratidão. Dela ficou, em mim, a lembrança de alguém extremamente inteligente. De alguém extremamente bom, no antigo sentido do termo. Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua. Invariavelmente paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada na cadeira de balanço, pego no seu breviário que eu herdei, e me ponho a ler e é essa minha oração saudosa por ela.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

CORTEZ PEREIRA


chagasilva.com
Cortez Pereira

Por Honório de Medeiros

Conheci Cortez Pereira pessoalmente quando, Presidente do Centro Acadêmico do curso de Direito, convidei-o para proferir palestra acerca das relações entre marxismo e jusfilosofia em um dos seminários que nós regularmente promovíamos. Na ocasião, dentre as críticas ao marxismo por ele esgrimidas estava a do descompasso entre as previsões de Marx quanto ao surgimento da revolução socialista na Inglaterra – único país, naquela época, que cumpria a necessária etapa do aprofundamento das contradições da classe burguesa através da revolução industrial, e o fato de o processo revolucionário ter acontecido na Rússia feudal. Perguntei-lhe se a teoria de Lênin acerca da tensão revolucionária queimar a etapa da ascensão da burguesia não seria correta, ao que ele me redargüiu que a tese carecia de comprovação histórica.

É difícil explicar nosso fascínio juvenil por Cortez Pereira, pois ele era um liberal e havia sido Governador através do Movimento de 64 enquanto nós, no verdor de nossa carreira intelectual, ávidos para salvarmos o Brasil e o mundo, pertencíamos a algum dos matizes da esquerda tupiniquim. Talvez a sombra de sua retórica envolvente, misto de conhecimento técnico e arroubo poético, o eco de sua difícil e romanesca vitória no concurso para professor de Introdução ao Estudo do Direito da Universidade Federal, suas memoráveis defesas de projetos e programas de Governo e, principalmente, sua imolação no altar da ditadura, através de uma cassação hipócrita, tivesse construído essa aura de respeito que lhe tributávamos.

Pouco depois, ainda no tempo em que todos os cursos da Universidade Federal colavam grau juntas e o orados das turmas concluintes era escolhido por concurso, nós o tivemos como paraninfo – salvo engano a primeira homenagem pública pós-cassação. Quando terminou de nos falar pediu ao cerimonial que me trouxesse a sua presença para confirmar se eu, “de fato, pelo que pude perceber do seu discurso, não era mais marxista”. Disse-lhe que estava em fase de transição, ele me abraçou dizendo baixinho: “também eu sonhei seus sonhos”.

Entretanto, o mais emocionante dos momentos que vivi através de Cortez Pereira ocorreu quando assisti seu depoimento em “Memória Viva”. Várias vezes meus olhos se encheram de lágrima – uma delas mais intensamente: ele nos contava, aos seus interlocutores e espectadores, qual o instante mais intenso que vivera no Governo, aquele no qual, no final de uma tarde, pleno pôr-do-sol, arriou a Bandeira do Brasil do seu mastro saudado por quase uma centena de cantadores de viola que tinham vindo até o Palácio Potengi prestar-lhe uma homenagem.

Agora, na maturidade, ainda permaneço fascinado pela concepção estratégica de seu plano de governo e sua capacidade de agregar valores humanos no seu entorno. Tão importante é sua contribuição, nesse aspecto, que ela permanece como referência aos políticos e administradores públicos.

Honro sua memória com essas lembranças quase esmaecidas e o respeito que alguém intelectualmente superior sempre nos suscita, quaisquer que tenham sido seus erros.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

RAFAEL NEGREIROS, OU DE UM POEMA QUE SE PENSOU QUE FOSSE DE BORGES


Rafael Negreiros e Ivonete Paula

Por Honório de Medeiros

Alguns anos atrás eu e Franklin Jorge resolvemos lançar um jornal em Pau dos Ferros que cobrisse, para o Estado, todo o Alto Oeste. Seria ele semanal e iria para as bancas aos sábados.
Foi algo insano, mas naquela época não tínhamos noção acerca da aventura na qual nos meteríamos, e a história da “Folha do Alto Oeste” será contada, um dia, através de “perfis”, “sueltos” e “bicos-de-pena” como somente Franklin sabe fazer.
O que importa é ter sido Rafael Negreiros nosso primeiro e mais importante colaborador e, já no terceiro ou quarto número ter criado, com a iconoclastia que o caracterizava, a figura do “ombudsman” jornalístico – isso mesmo que a Folha de São Paulo viria fazer anos depois se arrogando pioneira sem saber que no Sertão do Rio Grande do Norte essa experiência já existira.
Naquele artigo Rafael desancou o jornal com tiradas tipicamente suas: ironias cortantes entremeadas por observações pertinentes e oportunas acerca do exercício do jornalismo. Artigo que ele enviou para publicação e divertiu-se com nosso possível constrangimento. Publicamos, claro, e graças a ele fizemos história.
Essa talvez tenha sido a única vez que mantive um contato mais estreito com ele, apesar de sempre tê-lo conhecido. O final da minha infância e início da adolescência – os últimos anos nos quais morei em Mossoró – foi cheio daquilo que chamávamos de “as histórias de Rafael”, casos que eram contados em todas as esquinas da província e maravilhavam a nós pela rebeldia, sem que disso tivéssemos noção.
Víamos Rafael – pelo menos eu via – como alguém que tinha coragem de tomar posições. Para mim não importava que posições fossem essas, mas, sim, o destemor com que elas eram assumidas e defendidas, além do torrencial volume de erudição que envolvia cada escrito seu.
Anos depois acompanhei, via Fernando Negreiros, seu filho caçula e amigo meu de infância, seu distanciamento da turbulência que o caracterizava. O tempo, esse domador de homens, cumprira seu papel como sempre deslealmente, por que escolhera para cúmplice anões morais com os quais Rafael se recusava a compartilhar a experiência de sorver a vida daquela forma tão sua e tão peculiar.
Era o fim de uma era de titãs. Homens símbolos. Os contemporâneos dos seus últimos dias – imberbes arrogantes e pragmáticos, desletrados e vazios – sequer sabiam, quando o conheciam, ou dele ouviam falar, com que graça esdrúxula, humor derruidor, Rafael desmontava as armadilhas da mediocridade cotidiana. E hoje, com raras e honrosas exceções, lembram-no eles por seu talento menor – o humor, a excentricidade – desconhecendo, lamentavelmente, que se a coragem de firmar opinião usando, como veículo, a iconoclastia, tivesse nome ele seria, com certeza, Rafael Negreiros.
Mas existe ainda uma outra faceta de Rafael que eu considero ímpar. É ela que me lembra um poema atribuído a Borges. Nele, em tom confessional, o autor ou a autora lamenta-se, olhando para o próprio passado e adivinhando a morte, não ter desperdiçado a vida com coisas pueris. Algo como um banho de chuva, um banho de mar, gargalhadas... Não importa caro autor ou autora, Rafael Negreiros fez isso por você.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

UM HERÓI MOSSOROENSE



Manoel Duarte

Por Honório de Medeiros

Então um preciso tiro de fuzil ecoou no final de tarde nublado do dia 13 de setembro de 1927, e, aproximadamente cem metros além, atingiu o meio-da-testa de um caboclo puxado para o negro aparamentado com a indumentária típica do cangaceiro, prostando-o na terra nua, de barriga para cima, a contemplar com olhos fixos e vazios o céu acima, ali onde a Avenida Rio Branco cruza a Rua Alfredo Fernandes, bem onde, na quina, fica a famosa Igreja de São Vicente cuja efígie, do seu nicho decenal, tudo contemplava. Era o começo do fim. No alto da casa do Prefeito Municipal - o líder que começara a epopéia, no telhado, o atirador viu quando um outro cangaceiro, de um trigueiro carregado, aproximou-se rastejando e disparando da vítima e começou a rapiná-la, retirando freneticamente, de seus bolsos, munição, dinheiro e jóias. Calmamente, mirou e aguardou. Pressentindo o perigo iminente o feroz bandoleiro ergueu o tronco elevando os olhos até o telhado fatídico da casa cuja frente fora tomada por fardos de algodão prensados. Foi apenas um momento, mas foi fatal. Outro tiro de fuzil ecoou e, no mesmo local onde seu companheiro jazia sem vida mais um cangaceiro foi atingido. O violento impacto da bala derrubara-o momentaneamente e desenhara, em seu tórax, uma rosa de sangue. Começou a debandada. Enquanto os resistentes começavam a perceber que a ameaça fora sustada e o recuo dos cangaceiros era generalizado, o atirador recolhia o fuzil e fitava a cidade no prumo que tinha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição como limite. Olhava e pensava. Ele tinha morto um cangaceiro e ferido mortalmente outro. Não havia dúvida quanto à importância desse fato para a vitória. Mas cangaceiros são vingativos, cangaceiros são ferozes, cangaceiros são cruéis. Cangaceiros são dissimulados e não esquecem nunca, matutava ele com seus botões. Se ele aceitasse passivamente as homenagens que lhe seriam tributadas a partir daquele momento tudo poderia, no futuro, desandar no gosto amargo causado pela retaliação de algum anônimo, talvez até mesmo em algum parente, como era prática comum na vida cangaceira. Não que fosse medroso. Ao contrário. Todos quantos lhe conheciam podiam atestar sua coragem e perícia com as armas, que já ficavam lendárias. Mas era melhor precaver-se. Era melhor silenciar. Não seria o caso de negar veementemente, por que não era homem para esse tipo de extroversão. Mas ia silenciar. Não ia comentar nada. O que estava feito estava feito e era de acordo com seu temperamento reservado. Se lhe perguntassem, mudaria de assunto. Se comentassem de alguma roda da qual estivesse fazendo parte, sairia de mansinho. Guardaria a verdade consigo e a contaria apenas para alguns escolhidos, por muito e muito tempo. Até que...

Até que naquele dia banal, sozinho com seu neto de dez anos de idade, sentiu vontade de contar aquilo que nunca contara a ninguém. Era uma necessidade da alma, um anseio de perpetuar um feito honroso, um gesto de heroísmo que o mostrava tão diferente daqueles que tinham fugido em direção ao mar quando os cangaceiros ciscavam nas portas de Mossoró, um gesto que lhe orgulhava por que defendera sua família e sua cidade a um custo alto, que era o de tirar a vida de alguém. Olhou para o neto e compreendeu que ali estava o interlocutor perfeito. Não questionaria, não interromperia, não esqueceria. Guardaria a lembrança do dia e do relato. Assim sendo começou a contar-lhe todo o episódio, detalhe por detalhe. O neto apenas olhava intensamente e sentia que estava sendo transmitido, para ele, algo muito importante e que somente no futuro seria plenamente entendido. Acalmou sua inquietude de menino. Não desgrudou o olho do seu avô, aquele homem reservado e pouco propenso a confidências. No final, quando toda a história havia sido contada, compreendeu que devia guardá-la consigo, até mesmo esquecida, por muito tempo. Guardada até que...

Até que em um final de tarde tipicamente mossoroense, de muito calor, em um café, o neto aproximou-se de uma roda de estudiosos do cangaço e percebeu que discutiam a participação do seu avô na invasão da cidade pelo bando de Lampião. Uns diziam que havia sido ele o autor dos disparos. Outros negavam e apontavam nomes. Quase oitenta anos haviam passado do episódio. O neto, agora, era cinquentão. Sentiu que ali estava o momento certo para contar a história, a sua história, a história do seu avô. Aquela platéia saberia ouvi-lo e entenderia plenamente as razões do silêncio da família. Contou tudo. Fechou-se o ciclo. Dezenas de anos depois já não há mais dúvidas. O atirador postado no alto da casa de Rodolfo Fernandes, o homem que praticamente abortara a invasão lampiônica, o herói entre heróis fora MANOEL DUARTE. Essa é a verdade, como o sabe sua família e a contou seu neto, Carlos Duarte, jornalista, muitos anos depois, a mim, a Kidelmir Dantas e Paulo de Medeiros Gastão, estes últimos dirigentes da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.

É verdade, dou fé.


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

I. F. STONE, UM D. QUIXOTE QUE DEU CERTO


Por Honório de Medeiros



I. F. Stone

I. F. Stone, “Izzy”, tinha 45 anos quando deu o passo mais arriscado de sua vida, conta-nos Sérgio Augusto em “Uma pedra no caminhos dos poderosos”, apresentação da obra “O Julgamento de Sócrates”, escrita aos 77 anos pelo ícone do jornalismo, depois de aposentado e após uma jornada intelectual que o levou, na investigação acerca da liberdade de pensamento, a pesquisar as duas grandes revoluções inglesas do século XVII, a Reforma Protestante, os pensadores ousados da Idade Média, a redescoberta de Aristóteles, a Atenas da Antiguidade, e aprender o Grego Antigo.



Em 1952, Stone viu-se desempregado depois de ter granjeado fama nos Estados Unidos e Europa de mucraking, jornalista especializado em revolver casos de corrupção e abuso de autoridade trabalhando às margens das redações e desconfiando que qualquer governo tudo faz para esconder verdades incômodas, após trabalhar em vários jornais do eixo Nova Jersey – Filadélfia – Nova York, inclusive o Daily Compass e o New York Post.



Com a indenização do Daily Compass criou uma newsletter sem nada semelhante na imprensa do mundo. Conta-nos Sérgio Augusto: “Dispondo da lista de assinantes de três publicações para as quais havia trabalhado, assegurou de saída 5.300 leitores. O primeiro número do I. F. Stone’s Weekly chegou aos seus assinantes no dia 17 de janeiro de 1953. Pouco antes de virar quinzenal, em 1968, o alternativo mais bem informado do planeta ultrapassou a barreira dos 40 mil leitores”.



Qual não seria a influência de Izzy hoje, em tempos de aldeia global!



“Os primeiros anos foram solitários”, Stone recordaria na última edição do jornal, em dezembro de 1971. “Meus leitores me sustentaram” – dentre eles Bertrand Russel, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt. O I. F. Stone’s Weekly fechou por que Izzy não tinha mais forças, vitimado por uma angina de peito. Seu artigo de despedida foi comovente: “Tenho podido viver de acordo com minhas convicções. Politicamente, acredito que não pode existir uma sociedade decente sem liberdade de crítica: a grande tarefa do nosso tempo é uma síntese de socialismo e liberdade. Filosoficamente, creio que a vida do homem se reduz, em última análise, a uma fé – cujos fundamentos estão além de qualquer prova – e que esta fé é uma questão estética, um sentimento de harmonia e beleza. Acho que todo homem é o verdadeiro Pigmalião de si próprio. E em recriando a si próprio, bem ou mal ele recria a raça humana e o futuro”.

“O Julgamento de Sócrates” tornou-se uma obra de referência, apesar do nariz torcido de alguns membros da comunidade acadêmica. Stone fez com Sócrates o que Karl Raymund Popper fez com Platão em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”: demoliu sua imagem oficial. Ao longo das páginas do seu ensaio esmaece o Sócrates “santificado” por Platão e Xenofonte a partir de um julgamento que o condenou à morte, e qual aquelas pinturas ocultas pela poeira do tempo, surge, aos poucos, um legado: todos seus seguidores concordavam em uma questão - tratavam a democracia com condescendência ou desprezo.



Como disse o próprio Stone: “Nas Memoráveis, Sócrates afirma que seu princípio básico de governo é que ‘cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer’. O que exigia não era o consentimento dos governados, mas sua submissão. Trata-se, certamente, de um princípio autoritário, rejeitado pela maioria dos gregos, e em particular pelos atenienses”.



Em um governo assim, não há espaço para a liberdade de expressão. Esta questão é o fio condutor da obra: Sócrates não quis calcar sua defesa no conceito de liberdade de expressão, tão caro aos gregos do seu tempo – está em Ésquilo, Sófocles, e, principalmente em Eurípedes, para não comprometer seu visceral e antigo desdém com a democracia, escolhendo conscientemente a imortalidade que seu martírio iria originar.



Stone: “Xenofonte afirma que Sócrates queria ser condenado, e fez o que pode no sentido de hostilizar o júri”.



Quando faleceu, em junho de 1989, I. F. Stone, “Izzy”, era uma lenda viva. Mesmo assim continuava sarcástico: “Não consigo me acostumar com o lado dos vencedores”. Seu radicalismo, seu espírito outsider ainda inspiram muitos. Sua postura firme contra a intolerância o torna um ícone para os libertários de todos os credos. E sua história de vida o credencia a tornar-se um exemplo a ser usado pelos que ainda acreditam na espécie humana.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

ERCÍLIO PINHEIRO


Eercílio Pinheiro


“Um dom dado por Deus”. Assim Seu Chico Honório começou a me falar de sua amizade com o grande cantador de viola e repentista Ercílio Pinheiro, de quem foi amigo pessoal, nascido em Luis Gomes, Rio Grande do Norte, no Sítio Arapuá, no dia 13 de novembro de 1918, e morto tão prematuramente em 9 de abril de 1958, aos quarenta anos de idade.

Ercílio, desde pequenino, versejava batendo em uma lata “desafiando” sua irmã. Cedo aprendeu as técnicas de sua arte através de Inocêncio Gato, com quem fez sua primeira cantoria. E cedo, também, veio morar em Mossoró, onde exerceu a atividade de locutor da Rádio Tapuyo até se entregar totalmente à viola.

Seu Chico recorda suas primeiras cantorias – com Antônio de Lelé, na casa de Zé Honório, em São João do Sabugi; com Justo Amorim, na casa de Cabo Palmeira, patrocinada por Zuza Patrício; com Chico Monteiro na fazenda de Sinhozinho Crisóstomo, a cinco léguas de Alexandria, todas tiradas a cavalo, no novenário de Santo Izidro. Eu o deixo divagar mergulhado nas lembranças de quase setenta anos atrás. Ele, entretanto, não demorada a repetir: “Ercílio foi um dom de Deus.”

“Hospedei Ercílio e Dimas Batista em Mossoró. Ercílio era um homem correto, digno, honesto. Transpirava honestidade. Morreu dezessete dias antes de você nascer. Foi o melhor cantador de viola do Brasil em sua época. Respeitava todos seus companheiros, mas, os superava em muito. A grande teima, naqueles anos, era qual dos dois cantadores era o melhor: Ercílio ou Dimas. Houve um desafio célebre, na década de cinqüenta, entre os dois, um desafio real, não esses de hoje, onde tudo é combinado, que começou de tarde, varou a noite e ganhou a madrugada e somente parou por que o juiz da cidade – Taboleiro do Norte, Ceará – deu por encerrada a peleja, dando-a como empatada.”

“Ercílio era irmão de João Pinheiro e seu sócio no bar “Irmãos Pinheiro” aqui em Mossoró. Esse bar é tradicional ponto de encontro de comerciantes, políticos, advogados, ainda hoje, mas a maioria de seus familiares mora em Taboleiro do Norte, no Ceará. Ercílio tinha entre um metro e setenta e um a um metro e setenta e seis. Era muito magro. Branco, calvo, cabelos finos, usava óculos com grau muito forte por que era quase cego em conseqüência de uma miopia. Fumava cigarro de palha ou de fumo cortado.”

“Eu o conheci quando era chefe de trem na linha Mossoró-Sousa. Como era seu admirador, terminei fazendo amizade com ele por conta das viagens que ele fazia para ir cantar. Na verdade devo a Ercílio minha vinda para a Igreja Católica. Um dia, quando já estávamos perto de Mossoró, ele me perguntou: Chico, você já fez sua Páscoa? Respondi-lhe que nunca tinha me crismado nem feito Páscoa. Ele me ofereceu os livros que eu tinha que estudar e me disse que ia me levar a Frei Luis. Esse Frei Luis era um terror. No dia seguinte fui me confessar com Frei Luis, a mando de Ercílio, e lhe disse que nunca tinha me confessado. Levei um grande carão e ganhei uma penitência de sete padres-nossos de joelho. Até que não foi muito pesada. A segunda confissão foi com Frei Damião. Ercílio foi quem encaminhou. Novo carão e novas penitências.”

“Quando Ercílio vinha a Mossoró eu já sabia: de manhã, lá pelas dez horas, nós nos encontrávamos e a outros amigos na praça do Pax, para conversar sobre cantoria, repente, cantadores, viola. Ercílio era muito admirado, entre outras qualidades, por ter o que os entendidos chamam de “pulmão limpo”, ou seja, sem pigarro, um canto claro e bonito. Uma vez, não me contive: Ercílio, quem é o cantador que você teme em uma disputa? Não temo ninguém, respondeu. Aliás, continuou, não disputo com ninguém, só comigo mesmo. Mas eu sempre me fiz respeitado na minha profissão. Agora respeito e sou respeitado por Dimas Batista.”

“Assim é o gênio”, conclui Seu Chico. “Estudou à luz de lamparina, mas seu dom, esse não tem como aprender, Ercílio nasceu com ele.”







sexta-feira, 6 de novembro de 2009

PADRE HUBERTO, OU A VITÓRIA DA VIRTUDE

Final da década de sessenta. Pelas ruas mal iluminadas de Mossoró um homem muito alto, magro, de aparência ascética, portando uma sotaina cinza clara, candeeiro a gaz na cabeça, puxa, sotaque forte, estranho, ante meus olhos infantis, a procissão em louvor a Santa Luzia. As formas têm contornos imprecisos, gerados pela luz parca e o hino, cantado em ritmo monocórdico, entremeado de aves-marias e pai-nossos, costura, em minha imaginação, uma auréola de mistério em torno do sacerdote já famoso por sua austeridade.

A imagem que minha memória havia guardado foi a que primeiro me veio aos olhos da mente quando meu pai me disse, tempos atrás, em tom de pesar, pelo telefone, que Pe. Huberto "descansara".

Até então éramos, mesmos os mais ausentes dos mossoroenses, cúmplices em uma mesma liturgia: sabermos notícias da sua saúde. Agora, ao nos encontrarmos, trocamos impressões, lembramos fatos... Porque, no final das contas, todos os de nossa geração, além dos muitos que nos antecederam, de uma forma ou de outra, em algum momento, estiveram sob o alcance daquele olhar claro, firme, pouco complacente.

Talvez ninguém venha expressar, como Emery Costa o fez, o sentimento de Mossoró por Pe. Huberto. Em uma sua coluna diária, nos contou como o mossoroense reagiu a sua morte. E observou, no final, emocionado com a demonstração de afeto que ele recebera quando do velório e do sepultamento: "ainda vale a pena ser bom".

É verdade. Eu apenas diria que mais que bom, Pe. Huberto foi virtuoso. Claro, todos nós sabemos que a bondade é uma virtude. Entretanto, ele foi mais que bom, porque viveu aquilo no qual acreditava, e sua vida foi um exemplo de coerência entre discurso e prática.

Assim, não sucumbia a qualquer tentativa de ser portador de uma "bondade" tipicamente nordestina, ou mesmo brasileira, relaxada, condescendente. Aquela mesma que é uma fuga aos compromissos com a verdade que liberta, fiel aos princípios morais.

Não que deixasse, ao molde de Spinoza, compreender, para não rir nem chorar, e tal compreensão fosse integrada pela bondade, como objetivo evangélico para melhor servir aos desígnios da Igreja. Mas em sua alma cartesiana, estudiosa, culta, de formação quase jesuítica, o rebanho de Deus também precisava de disciplina para escapar às tentações do mal. E, em assim sendo, a bondade não é apenas o afago do perdão, mas também o látego da advertência.

Mossoró se despediu de Pe. Huberto tendo entendido, dentro de si, aceito e respaldado, esse ser virtuoso que o caracterizava tão bem. Acompanhou seu caixão como se além da saudade, fosse conviver com a ausência de uma referência. Estabeleceu, como que fazendo um contraponto, a diferença entre o singelo, o humilde, o honrado que se ia, e a escória que fica e nos envilece como seres humanos. E o sepultou nos fazendo crer que há alguma esperança no gênero humano quando distingue tão claramente quais dos seus devem ser homenageados na hora da despedida final.