quinta-feira, 22 de julho de 2021

CANGAÇO: LONGA VIDA A MELQUÍADES PINTO PAIVA

 * Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Chega o CANGAÇO: segunda e ampla bibliografia comentada de Melquíades Pinto Paiva, com ilustrações de Vlamir de Souza e Silva, dedicado ao saudoso Antônio Amaury Corrêa de Araújo e prefaciado pelo mestre de todos nós, Frederico Pernambucano de Mello.

Fui honrado com generosos comentários do autor acerca de meus dois últimos livros, Histórias de Cangaceiros e Coronéis e Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros, bem como de alguns artigos que ele colheu aqui e acolá, na rede social e revistas especializadas em história da cultura sertaneja nordestina.

Antes, na primeira bibliografia comentada, também foram generosos os comentários acerca de Massilon, nas veredas do cangaço e outros temas afim.

Não sei se os mereço, mas considero uma honra ser agraciado com a atenção que me foi dispensada por quem, hoje, recebe, do alto dos seus muito bem vividos noventa anos de idade, as homenagens e o reconhecimento dos estudiosos do fenômeno do cangaceirismo em todo o Brasil.

Não por outra razão, Frederico Pernambucano de Mello, como sempre muito acertadamente, no prefácio, o nomina de “Farol da Ordem do Cangaço”.

Nada mais justo e verdadeiro.

Longa vida a Melquíades Pinto Paiva!

quarta-feira, 21 de julho de 2021

FILOSOFEMAS: O PARADOXO DA COMUNICAÇÃO MODERNA

 * Honório de Medeiros

Em tempos como estes, frenético e fugazes, precisamos dizer mais, com menos. Cada vez mais com cada vez menos. O certo, mesmo, é dizer tudo, com nada.

Natal, 21 de julho de 2021

sexta-feira, 16 de julho de 2021

VOA, MINHA PASSARINHA, VOA...

 

By @diogomizael

* Honório de Medeiros    

Quando nossa filha finalmente chegou em Montreal com o esposo e seus poucos vinte e três anos, depois de uma longa e cansativa viagem, lá a esperava seu irmão, hoje praticamente cidadão canadense.

Mas não foi possível abraça-lo, até mesmo vê-lo. Cumprindo as regras impostas para o combate contra a pandemia, primeiro foi confinada, por três dias, em um hotel determinado pelo Governo.

Exame de saúde feito, resultado favorável, mudou-se para o apartamento do irmão, que o desocupara, para novo período de confinamento, dessa vez por doze dias.

Impossibilitados de se abraçarem, conversarem, o irmão não hesitou: combinaram postarem-se defronte à janela do apartamento, um dentro e o outro fora, ela afastou a cortina, sorriu, acenaram um para o outro, beijos foram enviados, e o instante foi registrado.

Muito foi dito ali naquele momento, sem uma palavra sequer, e a escrita não consegue expressar!

Se isso não é amor, eu não sei o que isso é.

Voa, minha passarinha, voa...

* O irmão escreveu, abaixo da imagem:
They say:
There is always behind a window
You just need to open it
And I can't wait for that
Love u sis.

domingo, 11 de julho de 2021

DIÁRIO DE VIAGEM: CABACEIRAS, PARAÍBA.

* Honório de Medeiros   

Um templo no meio do nada que é um tudo       

Seu Neco é um herói.

Em 2007, quando tinha quarenta e dois anos, durante mais de cinco horas, madrugada de um sábado para o domingo, precisamente das três às oito e meia da manhã, em Puxinanã, na Paraíba, sozinho, de joelhos, travou uma luta desesperada para não morrer.

Enquanto lutava, ia rezando incontáveis terços, fumando um cigarro após o outro, lembrando-se da família e tapando o buraco do braço arrancado por uma esteira de distribuir ração para galinhas, de onde o sangue vertia feito água de chuva forte, aguardando a chegada de alguém para lhe socorrer.

Manhã alta, chegou o homem que apanhava os ovos postos pelas galinhas, e acionou o corpo de bombeiros.

A máquina levou parte do seu braço. A gangrena, fruto perverso da ração que impedira a saída do sangue, e também lhe envenenou, depois comeu o resto no hospital, mas não dobrou seu espírito. Nem quando saiu do lugar do acidente, entregou os pontos: os bombeiros quiseram leva-lo em uma maca e ele se recusou; foi a pé, segurando o coto.

Depois, começou uma luta medonha que lhe feriu o espírito, tanto quanto o corpo fatigado: obter seus direitos, receber uma indenização, aposentar-se. Foi uma saga inenarrável, misto de desprezo e injustiça.

Quando a narrativa chegou ao fim, ambos estamos soturnos. Pousei o caderno de notas e a caneta. Lá fora, a tarde caia. Ouvi o canto da Seriema longe, bem longe. Eu, por querer assimilar a história em todos seus desdobramentos; ele, por perder-se em recordações ainda bastante dolorosas.

Nosso silêncio foi rompido com uma frase dita muito mais para si, do que para mim, de cabeça baixa, lentamente: “era as galinhas comendo a ração, e a máquina comendo meu braço...”

Estamos em Cabaceiras, no meio do nada, como diziam os antigos das bandas do litoral, onde ficavam as cidades grandes, quando se referiam à Região, ou do tudo, esse infinito delimitado que é o Sertão nordestino profundo, ainda arcaico, no coração dos Cariris Velhos, Paraíba, terra de gente que, em sua maioria, descende de antigos e heroicos homens e mulheres que a desbravaram na época do ciclo do couro.

Aqui, preponderam os carrascais, matacões, algarobas, facheiros, juremas, uma ou outra quixabeira, canafístulas, mussambês, angicos, pinhões, muito xique-xique, palmatória, mandacaru, e ainda reinam, no chão pedregoso, a seriema, o mocó, a jararaca, e, quem sabe, uma ou outra rara onça perdida. Um bioma único, inigualável.

No céu, quase sempre limpo de nuvens, de dia voam os urubus, e os gaviões-de-pé-de-serra, secundados pela passarinhada canora; de noite, voam as rasga-mortalhas amedrontadoras anunciando que, em algum lugar, alguém foi prestar contas de sua vida terrena a São Pedro.

Quando escurece, um mar de estrelas agasalha a terra ressequida e seu povo bom, simpático e educado, pleno daquela gentileza sertaneja nordestina que os tempos atuais parece considerar insultuosa ou mesmo um sinal de fraqueza, quando na verdade é resquício de uma educação fidalga muito antiga, que veio de além-mar.

Até onde a vista alcança, mato e serrotes se estendem à nossa frente pontilhados por uma única ilha destoante, o pequeno e solitário templo religioso que faz contraponto à capela consagrada a São Bento, localizada no extremo oposto do nosso campo visual e construída para esconjurar uma peste de cobras peçonhentas que assolou a região em tempos passados.

A capela consagrada à São Bento

Quando perguntei à zeladora da capela se surtira efeito o ato de devoção, ela respondeu que sim, “as cobras que rastejam foram embora, entretanto ficaram as que tinham pernas, muito mais perigosas...”

Antônio Silvino, cronologicamente o segundo dos grandes cangaceiros – o primeiro foi Jesuíno Brilhante - andou por aqui, mais de uma vez, no começo do século passado, fazendo danação.

Cercado pela polícia, escondeu seu ouro em um buraco, para ser desenterrado quando saísse do aperreio. Preso, cumpriu longa pena, até que foi indultado por Getúlio Vargas. Correu até onde tinha deixado dinheiro, mas o bolso dos homens em quem confiara estavam vazios, e as botijas tinham sido arrancadas e feito a felicidade de quem com elas sonhara.

De outra vez, arrombou as portas da prisão de Cabaceiras e libertou todos, principalmente os dois rapazes que tinham mandado propor a ele um acordo singular: uma vez livres, iriam fazer parte do seu bando. E lá se foram os dois rapazes, Sertão adentro e afora, livres da cadeia de Cabaceiras, mas presos pela palavra dada a um homem temível!

A Região é cheia de lendas, mistérios, segredos, guardados pelo povo e apresentados somente no geral, sem que se consiga descobrir maiores detalhes acerca dos fatos e personagens que os viveram. No máximo vislumbramos alguns indícios, cuidadosamente espalhados ao léu. Todo cuidado é pouco para eles quando conversam, e a sabedoria sertaneja abre as portas da cozinha, mas fecha as portas dos quartos.

Discos Voadores, por exemplo, de vez em quando dão o ar de sua graça, nas noites estreladas, bailando no céu do Sertão profundo e amedrontando os raros passantes, nas horas tardias, transeuntes das veredas que ligam um sítio ao outro.

Houve casos de abdução, mas Noberto Castro, nosso guia, homem lido, misterioso, versado em plantas medicinais, orações fortes e história da Região, além de escritor, avaro em palavras e carnes, nega de pés juntos que isso jamais tenha acontecido.

Norberto Castro, um homem sábio

Daniel, rapaz simpático e atencioso que nos atendeu em um restaurante de comida honesta, farta e legitimamente sertaneja de uma prima de Norberto – todos são parentes entre si, basta cavar um pouquinho - enquanto almoçamos confirma a história, em seguida a nega, mas volta a confirmar, piscando um olho para os ouvintes, por certo para não contraria Noberto.

O que Noberto não esperava era que o Prefeito da cidade, também seu primo, a quem abordamos de supetão, em sua pequena casa na interessante Ribeira, distrito de Cabaceiras, e que nos recebeu com imensa simpatia, confirmasse tudo, nos dando detalhes e nomes, enquanto ria...

O Prefeito, Tiago Castro, por si somente, é um fenômeno: candidato à reeleição em Cabaceiras, teve 93 por cento dos votos possíveis. Seu adversário amargou míseros 7 por cento. Um verdadeiro massacre.

Do Distrito da Ribeira, nos separava, para que nela entrássemos, no fim de uma estrada carroçável, dois cruéis mata-burros, um atrás do outro, uma plantação de palma do lado direito de quem entra, e o leito seco do Rio Taperoá que nos remeteu à lembrança de Ariano Suassuna. Nada mais bucólico.

Na Ribeira, primeiro vimos a arte no couro de Timotinho, que nos recebeu no português cantado dos Ribeirenses, enquanto seus primos, descendentes, como ele, de algum holandês que se aventurou pelos sertões paraibanos, trabalhavam o couro curtido. Todos brancos leitosos, de cabelo liso e olhos azuis, além de longilíneos. Depois, veio a simpatia do “Mano”, tão agradável quanto deliciosa é sua comida puramente nativa, a começar pelo pirão de mocotó de boi.

O melhor pirão de mocotó do mundo!

Depois de gastar muita conversa com Mano, voltamos à “Matuto Sonhador”, um encanto. Deus a conserve assim. Lá, à beira da fogueira, um conjunto formado por sanfoneiro, zabumbeiro e triangulista, este último afinadíssimo e perspicaz, além de gozador, voz de barítono, prometeu ao dono da pousada casar com a bela mulher estátua que pastorava, com olhos arregalados e fixos, suas performances musicais no jardim, enquanto o forró nos embalava a dança. Ficamos de voltar para o casório.

Tempo de ir, começo do tempo de voltar.

Cabaceiras, PB, 25 a 29 de junho de 2021.

terça-feira, 11 de maio de 2021

UMA NOVA PERSPECTIVA PARA A HISTÓRIA: A TRILOGIA DE HONÓRIO DE MEDEIROS, CANGAÇO, PODER E CIÊNCIA

 

Ensaio publicado na Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras Nº66, jan-mar, 2021, p.191-199.

* Gustavo Sobral

                   Este trabalho é uma tentativa de leitura da trilogia de Honório de Medeiros. Trilogia que nasce com a publicação de Massilon, em 2010, perpassa a publicação de História de cangaceiros e coronéis, 2015, e tem o seu desfecho com a publicação de Jesuíno Brilhante, 2020.

                Honório de Medeiros propõe em sua obra um estudo histórico sobre o cangaço a partir das relações de poder, um estudo sobre as relações de poder e uma nova proposta para escrita da história ao considerar que a história deve ser entendida, escrita e explicada por uma perspectiva analítica e interpretativa.

                   Como condição necessária para o trabalho de pesquisa, o autor apresenta uma revisão da literatura preexistente acerca do cangaço, propondo uma classificação em fases, tipos de estudos e tipos de autores, procurando situar nesse contexto a sua proposta de abordagem.


                   
As fases, que trata por ondas, são três: a fase da produção dos fatos, quando se passaram os acontecimentos; a fase da coleta dos fatos, quando os fatos passam a ser registrados; e uma terceira fase, que deve ser a elaboração de teorias.

                   Três também são os tipos de texto: os que fantasiam, os que narram e os que pensam. E considera também a presença de zonas de interseção: narrações que analisam; fantasias que narram etc.

                   Quanto aos autores, reconhece três grupos distintos: um grupo que reúne cantadores de viola, cordelistas, contadores de estórias, xilogravuristas e poetas; um grupo que nomeia de pesquisadores do cangaço, que são aqueles que se debruçam 192 sobre o tema; e o grupo que congrega os pesquisadores acadêmicos sediados nas universidades.

                   A par desse contexto, elege, por sua vez, um caminho próprio de investigação que, considera, deve partir de uma leitura crítica das fontes, aplicando uma metodologia adequada e suportes teóricos condizentes.

                   É essa a proposta que desenvolve na construção da sua trilogia, o que se pode albergar em cinco vertentes de abordagem distribuídas nos três volumes publicados.

                   A primeira vertente é o que se pode considerar estudos sobre os estudos, que seriam os trabalhos em que o autor expõe uma reflexão e uma visão crítica sobre os estudos existentes acerca do cangaço.

                   No primeiro volume, Massilon, é possível identificar os seguintes textos nessa vertente: “Aplicação do método da ciência”; “O cangaço em nova onda”; “A nova onda do cangaço”. No segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis, os capítulos “Epifenômeno do cangaço”, “Tipos de textos sobre o cangaço” e “Sobre história e conhecimento escolar”.

                   Um segundo viés compreende estudos críticos mais aprofundados sobre as teorias e abordagens sobre o cangaço, quais sejam, a teoria do escudo ético, do estudioso Frederico Pernambucano de Melo — ensaio que integra o segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis —; e um estudo crítico sobre Câmara Cascudo e o cangaço, adendo a Jesuíno Brilhante, terceiro volume da série.

                   O terceiro viés se volta para as biografias e os perfis de cangaceiros, coronéis e outras figuras históricas do contexto.

                   Uma quarta abordagem se detém aos episódios e a outros aspectos. Em episódios, o ataque de Lampião a Mossoró; em aspectos, podemos elencar o pacto dos governadores e o Rio Grande do Norte no tempo dos coronéis.

                   A quinta perspectiva, que perpassa todas as anteriores, é o arcabouço metodológico e teórico.

                   A metodologia adotada é plurimetodológica, voltada para uma diversidade de fontes de pesquisa, e envolve levantamento bibliográfico; pesquisa documental, que resulta do acesso a fontes documentais diversas; e pesquisa etnográfica, que é a pesquisa de campo, que alberga a coleta de depoimentos, realização de entrevistas e visita aos locais dos acontecimentos.

                   A pesquisa e o levantamento bibliográfico se concentram em livros: obras gerais de história do Rio Grande do Norte, trabalhos monográficos sobre cangaceiros, biografias, memória, genealogia e estudos teóricos no campo da ciência, filosofia, biologia, sociologia, direito, ciência política etc.; cordéis diversos, que contam a história de cangaceiros e seus feitos; e revistas e jornais de ontem e de hoje.

                   Documentos diversos, compreendendo certidões de batismo e de óbito, inventários; peças jurídicas, como processos, representações, denúncias, pareceres, relatórios; cartas pessoais e cartas abertas (publicadas em jornais). Todos são fontes exploradas e, em sua maioria, reproduzidas a título de citação, adendo ou anexo.

                   Depoimentos, entrevistas e o “Diário de Viagem” — quarta parte do volume Massilon —, que relata o percurso da pesquisa de campo.

                   Há também toda uma preocupação em documentar o trabalho de pesquisa em notas de referência, aditivas e explicativas, em rodapé e/ou ao final de cada volume, referendando as fontes pesquisadas, os depoimentos colhidos e as entrevistas realizadas.

                   A título de anexo, o autor cuida da reprodução de documentos, seja em fac-símile, seja transcrito. Também há a menção, ao final de cada volume, das fontes bibliográficas consultadas.

                   A par de todo esse suporte metodológico, Honório de Medeiros desenvolve a sua teoria, o alicerce para observar e compreender o fenômeno do cangaço e o estudo das relações de 194 poder, e o faz ao apresentar os dados coletados, a análise e a interpretação, refutando hipóteses consagradas pela historiografia e propondo um novo olhar para a história.

                   A invasão de Lampião a Mossoró ganha uma nova proposta de análise que considera as relações de poder e interesse dos coronéis e refuta as premissas postas, construindo um novo paradigma para entender a história.

                   O mesmo acontece ao observar o pacto dos governadores como decorrência dessa relação de poder; e não é diferente quando se debruça sobre a dualidade “cangaceiro, herói ou bandido?”

                   Honório de Medeiros não se julga fiel da balança ou solucionador de questões históricas, mas apresenta prismas analíticos e interpretativos se fiando na base plurimetodológica que adota.

                   A sua tentativa de biografar Massilon esbarra em uma série de dificuldades oriundas dos desencontros e conflitos de informação que permeiam os textos sobre o cangaço e, também, na ausência de dados.

                   O nome é a primeira verdade a encontrar para contar Massilon. Com tantos nomes possíveis e pistas, Honório de Medeiros se encontra diante de um baralho embaralhado: Benevides, Massilon Leite, Massilon Diógenes, Antonio Leite?

                   Uma figura e tantos nomes, qual seria?

                   O pesquisador é aquele que sabe aonde deve ir. E Honório de Medeiros vai em busca dos registros de nascimento e batismo e nada encontra, até que uma pista o leva ao inventário do pai do cangaceiro e lá está o verdadeiro nome de Massilon: Macilon Leite de Oliveira.

                   Mas não se dá por satisfeito, pois sabe que pesquisar é entender as circunstâncias das fontes, e se faz a pergunta que deixa também para o leitor: como saber se o escrivão não se enganou?

                   Honório de Medeiros entende que encontrar uma possível resposta não é dirimir uma dúvida. Assim, o autor também revela mais uma faceta do seu trabalho: um projeto de como se deve construir a história.

                   Honório de Medeiros é aquele que compreende que fazer história é não se contentar com o que está posto e, dessa forma, parte numa viagem em busca de novas fontes, que alimentam novas versões da história, ciente de que só a par de todas elas, é possível analisar e interpretar.

                   O pesquisador é também, para Honório de Medeiros, aquele que reconhece a ausência de fontes de pesquisa e que desconfia, compara, checa e confronta todos os fatos.

                   A construção de Massilon, a biografia, obedece a uma forma de apresentação sistemática que nasce da divisão lógica do autor para a exposição do tema.

                   A primeira parte é dedicada ao motivo (capítulo “A busca por Massilon”) e ao contexto (capítulo “O Rio Grande do Norte e Sertão”).

                   A segunda parte se volta para a descoberta e a revelação do biografado: como se chamava, onde e quando nasceu, quais eram as suas feições — e nesse quesito há toda uma investigação para identificar e recuperar a presença de Massilon em uma fotografia, desvendando, assim, o único retrato possível do cangaceiro.

                   Além disso, o autor aborda temperamento, fatos da vida, registros outros e, por fim, o fim, a morte do biografado.

                   Outro não é o percurso que promove ao biografar Jesuíno Brilhante, tanto nos capítulos que lhe dedica na primeira parte de História de Cangaceiros e de Coronéis, quanto, cinco anos depois, no terceiro e último volume da trilogia, dedicado à história de Jesuíno Brilhante e ao aprofundamento da tese.

                   O ataque de Lampião a Mossoró também ganha contorno em História de Cangaceiros e de Coronéis, seguindo o mesmo caminho de explanação, passo a passo.

                   Honório de Medeiros introduz, apresenta e passa a considerar as hipóteses e os envolvidos, cangaceiros e coronéis, e chega ao campo de análise para, então, propor a sua própria tese para leitura e intepretação.

                   Para tanto, o autor trabalha a construção dos conceitos. É pelo capítulo “Do conceito de cangaço”, na terceira parte do volume Massilon, que ele começa contrapondo as definições de cangaço e de banditismo.

                   Importante nessa conceituação é a definição de Cascudo: “para o sertanejo [cangaço] é o preparo, carrego, aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas, munições, bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, mezinhas tradicionais, uma muda de roupa, etc.”

                   E também estabelece confrontos.

                   Honório de Medeiros refuta a concepção de bandido social proposta pelo historiador Eric Hobsbawm. E vai mais longe: é impossível conceituar e explicar o cangaço em razão das condições geográficas, sociais, econômicas etc.

                   Caldeirão que Honório de Medeiros resumirá como “hipóteses do ambiente social” no seu “Esboço de conclusão”, capítulo de Jesuíno Brilhante. Essa redução é simplista, considera, e não abarca toda a complexidade e singularidade do fenômeno.

                   Em Jesuíno Brilhante, o autor considera novos aportes para a construção do conceito de cangaceiro, levando em consideração que seriam figuras entre a santidade e o banditismo. E sustenta que a teoria do escudo ético, de Frederico Pernambucano de Mello, não é uma leitura que se aplica exclusivamente ao cangaço, e sim ao banditismo de forma geral.

                   Pernambucano teria partido, considera Honório de Medeiros, da noção de fator moral apresentada por Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores, que, por sua vez, teria bebido na fonte de Felipe Guerra, em Ainda o Nordeste.

                   Tanto a noção de escudo ético quanto a noção de fator moral consideram a justificativa moral do cangaceiro para aderir ao cangaço como fator determinante, hipótese que Honório de Medeiros propõe que possa ser substituída por uma teoria mais abrangente.

                   Já no estudo que empreende acerca de Câmara Cascudo e o cangaço — adendo do volume Jesuíno Brilhante —, investiga a construção e o molde do pensamento cascudiano acerca do tema.

                   A perspectiva da ânsia de grandeza e impulso à revolta pessoal, que serve para pensar o cangaço, lerá em Bertrand Russell; como colherá em Albert Camus a noção de homem revoltado, que é aquele que, inconformado, reage, para então propor a leitura da figura do cangaceiro a partir da noção de outsider proposta por Howard S. Becker e Norbert Elias.

                   O outsider é o transgressor, o desviante, o excêntrico que não espera viver com as regras estipuladas pelo grupo. Dessa maneira, Honório de Medeiros propõe entender a figura do cangaceiro pelo prisma do inconformismo.

                   Compreender, e não julgar, alerta o autor. E, assim, vai chegar ao conceito de cangaceirismo: é a história dos inconformados, revoltados, outsiders.

                   Outro conceito macro é o conceito de coronelismo, que está atrelado a uma compreensão da estrutura de poder feudal no Brasil monárquico e republicano. Honório de Medeiros se valerá do conceito de coronelismo traçado por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder.

                   Seria o coronelismo aquela mesma estrutura de poder que se verifica na Europa feudal, um mundo de senhores arbitrários, cuja vontade era a lei, associados ao clero, proprietários de terras e do subjugo dos homens. O coronelismo é, portanto, uma forma de exercício do poder.

                   Outros aportes sustentam a construção do seu pensamento teórico. Honório de Medeiros parte da ciência por uma perspectiva ampla e transdisciplinar como caminho possível.

                   O autor considera o racionalismo crítico do filósofo britânico Karl Popper para construir uma abordagem científica e aplica as regras do método científico para propor uma lógica das informações como forma de validar ou não as hipóteses e, assim, escrever a história.

                   O autor também vai se valer da noção de campo social do sociólogo francês Pierre de Bourdieu, que compreende a realidade como uma malha aberta, cujos pontos de interseção, os atratores sociais, congregam fatos e ações semelhantes, formando uma malha social, ou seja, um campo.

                   Essa compreensão de campo social lhe permite observar cangaço e coronelismo como fenômenos do mesmo campo social, o campo social do poder.

                   Ao considerar o cangaço um fenômeno social, Honório de Medeiros parte do postulado do cientista político, sociólogo e antropólogo francês Émile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico, e equipara fato social a fato natural, ou seja, considera os fatos sociais como passíveis de teste, comprovação e validação.

                   O fenômeno, portanto, pode ser comprovado pelas suas leis de recorrência, e as hipóteses levantadas podem ser testadas. Dessa forma, considera Honório de Medeiros, os fatos são passíveis de serem testados para serem comprovados ou não.

                   Outra contribuição importante no construto da sua proposta é a aplicação da teoria da evolução, do biólogo britânico Charles Darwin.

                   Honório de Medeiros se apropria do darwinismo ao compreender o comportamento humano como uma evolução constante, uma busca pela sobrevivência e adaptação ao meio, e se aproxima da corrente da bio-história.

                   No que tange ao estudo das relações de poder, o referencial é o cientista político, jurista e historiador italiano Gaetano Mosca e sua teoria de classe política. Mosca entende que um fenômeno não deve ser apenas estudado em sua forma concreta ou apenas nas suas manifestações formais. É preciso compreender a dinâmica que se esconde e sustenta as relações de poder e interesse e, assim, compreender que os grupos funcionam a partir dos seus interesses de poder. O cangaço, nessa leitura, apresenta-se como uma manifestação de poder e revolta dos excluídos.

                   É a partir dessa perspectiva e da junção dessas partes que o autor conecta cangaceiros e coronéis e estabelece o cangaço como resultado das relações de poder, e é assim que também escreve uma história do poder.

                   Honório de Medeiros lança nos três volumes de sua trilogia, e em quase duas décadas de pensamento e reflexão, uma nova perspectiva teórica, metodológica e conceitual para a pesquisa e a escrita da história, abrindo as portas da história no Rio Grande do Norte, dos estudos sobre o cangaço e sobre as relações de poder, para uma nova perspectiva no século XXI.

GUSTAVO SOBRAL é jornalista e escritor. Publicou e organizou diversos livros, dentre os quais “As Memórias Alheias” e “Os Fundadores”.

quarta-feira, 17 de março de 2021

"PODER POLÍTICO E DIREITO", SEGUNDA EDIÇÃO, IMPRESSO OU EBOOK, TAMBÉM PELA AMAZON

Eis que chega a segunda edição, desta vez pela Dialética, a quem agradeço o convite para a publicação, devidamente atualizada. Trata das relações entre Poder Político e Direito. Pode ser adquirido diretamente na www.editoradialetica.com ou Amazon.com.br


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

ANJO AUGUSTO

 


Alex Medeiros

Um lampejo do talento de Alex Medeiros:


Anjo Augusto, bisneto do outro I

Eu nasci e cresci como um arbusto

na indiferença transeunte das estradas

um rebento do amor das empregadas

na prenhez ectópica de um susto

sou bisneto daquele outro Augusto

como aponta meu nome de batismo

não morri por um puro preciosismo

da genética e do jogo do destino

fiquei velho sem deixar de ser menino

sou a antítese de todo silogismo


Meu sangue formou-se em nebulosas

transfusões de uma suruba etnia

sou a soma carmática da anarquia

dois pedaços de raças raivosas

atavismo de almas poderosas

duas faces de pútridas feridas

uma vida lembrando de outras vidas

dois sabores de sucos genealógicos

eu sou claro e escuro, sou ilógico

a resposta de perguntas indevidas.


Tenho forte teor de panclastite

misturado no mijo e na saliva

gamogênese por força radioativa

condutora voraz de cervicite

sem antídoto algum pra que evite

minha ardente e sexual pantofagia

provocada por toda hebefrenia

alomórfica, caliente e pueril

tenho orgasmo vandálico e varonil

e amor quiasmático sem valia.


Nunca quis o equilíbrio, sou tumulto

não semeio a paz, eu planto guerra

sou da roda o ferrugem que a emperra

sou sem alma um cadáver insepulto

não me apraz o cortejo, sim o insulto

organizo a inércia num tormento

faço graça onde pede-se um lamento

prego horror onde impera mansidão

rasgo bíblias e incendeio alcorão

sou liberto de todo sentimento.


Anjo Augusto, bisneto do outro II

Há espectros de carnes apodrecidas

flutuando em minha sala de estar

e por estar nesta sala um pop star

não se assombram ninfetas raparigas

voluptuosas, são todas ensandecidas

trepadeiras em flor adolescente

e os fantasmas querendo virar gente

me imploram a mediúnica paixão

mas, sou ateu, prometeu, vate pagão

exorcizo uma gata em cama quente.


Há um odor de entranhas estelares

nos lençóis encardidos dessa moça

marcas de pus e de sangue, uma poça

entre anéis, algemas, cintos, colares

há vestígios de missas e altares

na fumaça de incenso de maconha

ao dormir a devassa morde a fronha

quando acorda se sente messalina

que mistério envolve essa menina

quando mata, morre e quando sonha?


Quis um dia encarnar Gregory Peck

pra beijar muitas divas do cinema

peguei negra, loura e morena

e tracei luluzinhas de pileque

ganhei calos na mão pelas chacretes

nos domingos de mil maracanãs

de quadrinhos, de janes e tarzans

de um Brasil ainda no sossego

sem TV de faustões e descarregos

de amassos inocentes nos divãs.


A Via Lactea é placenta dos planetas

asteróides são tumores pelos céus

poeira cósmica é cocaína de deus

fogo do inferno se exporta em cometas

buraco negro não tem trinco ou maçaneta

e os anjos se escondem nos quasares

no hiperespaço não há tempo ou lugares

não há minuto, não há dia, nem semana

pelo Universo toda a natureza humana

é resumida em micróbios estelares.


Anjo Augusto, bisneto do outro III

O poeta que respe jamais sacoleja

nem gnoma qualquer vai reprovar

ostiariato também não calará

e também governo, partido ou igreja

se vindo a mim o inimigo rasteja

nos meus versos de doce agonia

alquebrados em fina iconoclastia

soçobrando as alcovas ecumênicas

eu colho rimas ricas e blasfêmicas

no epitáfio do que serei um dia


Carraspana litúrgica de otários

patuléia hedionda de girinos

partogênese de burro nordestino

Ilusão maniqueísta de templários

parlamento fungo vivo do erário

baixarias de dogma evangélico

silogismos de mofo aristotélico

pardieiro do pensamento santo

uma santa enforcada pelo manto

na volúpia ecumênica de um clérigo


Discurso gaudério de um guerrilheiro

transmudo em transtorno de um ideal

o doutor milita na vara e no pau

rebelde passado de anti-usineiro

hoje mauricinho montado em dinheiro

vestal pós-burguês senhor veranista

a foice é chibata de neo-comunista

além da vitrine que o dinheiro imprensa

e a vida dilui-se em dogmas e crença

na falsa batalha de uma farsa revista


No meu livro “eu e outras putarias”

onde assisto o velório de um inseto

desmanchei um escriba analfabeto

que tornou-se cupim de livrarias

num futuro de tons de pandemias

tem morcegos vermelhos no inferno

o apóstolo João abre um caderno

revelando uma besta na fuligem

e um doido sem nome sem origem

que se chama influenciador moderno.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE

 

Por Bárbara Lima

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com).

Desde 2010 venho publicando alguns livros que compõem uma trilogia por mim denominada "CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE".

Em 2010 publiquei Massilon:

"Este livro não é uma obra científica, muito embora eu tenha tido a cautela de utilizar a metodologia apropriada quando possível, e parte do que possa ser lido tenha o rigor de pequenos ensaios. Também não é literatura, apesar das crônicas nele contidas. A bem da verdade é um livro, apenas. Sem adjetivos.

Apesar de seu tema central ser Massilon, não houve uma preocupação minha em me limitar. Ao contrário. Deliberadamente extrapolei. E não há razão objetiva para tal. Apenas senti o impulso de fazê-lo: somente assim posso explicar a presença de algumas divagações acerca do conceito de cangaço e outras quaisquer. Também foi opção pessoal transcrever, ao invés de interpretar, muitos dos textos que serão encontrados no livro, embora todos estejam conectados entre si. Preferi, ao fazer essa opção, que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões a partir da transcrição do texto.

A prova inconteste da minha despreocupação com os limites do tema é o “Diário de Viagem”, constituído de crônicas escritas nos locais por onde andei em busca do rastro de Massilon. Nessas viagens tudo foi gratificante: as pessoas, os lugares, os fatos. Aprendi muito, ensinei alguma coisa, aproximei-me de pessoas e me afastei de outras. Revi conceitos e posturas. Construí perspectivas inesperadas. Vivi".

Em 2015, lancei Histórias de Cangaceiros e Coronéis:

"Passados dez anos do lançamento, no Cariri cearense, de “Massilon – Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins”, eis que Honório de Medeiros nos entrega “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, o segundo volume de sua trilogia acerca desse tema fascinante.

Desta vez o livro é dividido em três grandes eixos: no primeiro, “Jesuíno Brilhante, Herói ou Bandido”, o autor, com base em farta documentação, em primeiro lugar nos apresenta uma face mais visível do pouco conhecido, mas muito famoso em sua época, José Brilhante, o “Cabé”, tio materno do único cangaceiro potiguar conhecido, e que foi personagem do romance “Os Brilhantes”; e, em segundo lugar, mostra o quanto talvez seja equivocada a percepção romântica, calcada no mítico Robin Hood, tanto do senso comum quanto dos escritores que se dedicaram a escrever acerca do primeiro dos grandes bandidos rurais do ciclo do cangaço, Jesuíno Brilhante.

No segundo eixo trata do famoso ataque de Lampião a Mossoró analisando-o a partir de uma perspectiva inédita e com informações até então desconhecidas da literatura específica acerca do tema. Aparece, por exemplo, pela primeira vez na história do cangaço, identificado inclusive com imagem, a “oposição oficial” ao Coronel Rodolpho Fernandes e que a ele se contrapôs veementemente nos dias que antecederam a invasão da cidade.

Por fim, no terceiro eixo, constituído de crônicas acerca de temas diversos do cangaço e do coronelismo, trata, por exemplo, de uma misteriosa amante de Antônio Silvino, bem como acerca da famosa “teoria do escudo ético”, ou mesmo do “pacto dos governadores para eliminar os cangaceiros”, dentre outros, que se colocam para o leitor como textos menos densos, mas, nem por isso, menos instigantes.

Como dito outrora, na orelha do “Massilon”, e ainda válido hoje, o que o Autor pretende, e não há razão para que não ocorra da forma como ele deseja, este livro é “nada tão sério que pareça maçante, tampouco tão leve que pareça desfrute”.

Finalmente, encerrando a trilogia, veio a tona Jesuíno Brilhante, o Primeiro dos Grandes Cangaceiros:

"Naquelas noites, no Sertão, a escuridão tomava conta do Sítio onde, à luz do lampião, no terreiro, meu Compadre – eu, menino, o tratava assim, e ele assim me tratava – reunia, no seu entorno, a família e os amigos, para ouvirem as estórias que faziam parte da antiga tradição oral dos nossos antepassados sertanejos, acompanhadas de uma xícara de café quente, coado na hora, e bolachas pretas.

Às vezes havia lua e o mar de prata criava imagens fantasmagóricas nos arbustos, lá fora, confins da luz; ao vê-las, instintivamente nos aproximávamos um pouco mais do círculo dos adultos, e somente relaxávamos quando a gargalhada do meu Compadre pontuava suas estórias. Até então, ele tinha nos deixado, a todos, em permanente suspense, por um tempo aparentemente sem fim.

Decerto, nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo e a um desses “causos” que ele nos contou. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento, “parente distante”, que para fugir de uma obrigação social, jurou, por intermédio de um bilhete, estar em casa, de repouso, por motivo de doença. Ao voltar de um forró onde se esbaldara a noite inteira, em outra localidade, mal apeou do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos – ela, sua esposa, jazia, muito doente, nos braços das filhas.

Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia sobrenatural daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto sinistro dos rasga-mortalhas.

Eram estórias de amores; assombrações; gestas; valentias; honras; ódio entre famílias; cangaceiros; botijas, descobertas por intermédio de sonhos que precisaram de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente; raptos consensuais ou não; caçadas às onças, nas quais somente a habilidade espantosa do caçador o fez escapar com vida; pescarias milagrosas; recuperações da saúde através de feitiços, poções ou orações de benzedeiras e curandeiros; vidências; estórias de maus-olhados e mandingas; secas e invernadas desmedidas; justiças divinas a corrigirem desmandos humanos; feitos com armas; aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado; relatos dos segredos da Serra das Almas, onde foram encontradas as ossadas de vários homens ao lado de espadas, escudos, elmos, pepitas de ouro e outros apetrechos do tempo em que o Brasil era recém-nascido; e tantas outras...

Na forma arrastada com a qual meu Compadre as contava havia uma magia que prendia nossa atenção, uma sabedoria antiga da qual ele era herdeiro e na qual era mestre; havia alguém que cultivara a tradição, o dom de contar um “causo”, uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa para o encadear das frases engastadas com palavras que o mestre Luís da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial, e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de “matutês”, por pura ignorância.

O desfecho sempre apresentava uma lição de vida e, não raro, belas conclusões a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.

Meu Compadre não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos herdeiros daquela raça de titãs que colonizara o Sertão, alguém dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, a quem eu escutava embevecido; também era uma fonte inspiradora, a principal delas quando penso na cultura sertaneja, como se tudo quanto eu lesse acerca do tema precisasse ser confrontado com a memória de sua existência, para, em mim, adquirir a necessária credibilidade.

Passaram-se os anos, muitos, desde então, até que resolvi escrever uma história do cangaço no Rio Grande do Norte, a partir de uma perspectiva muito pessoal, em três volumes.

Eu desejei fazê-lo, primeiro, porque nasci no Sertão, e sou filho de um cantador de viola que muito cedo abandonou a profissão, mas, enquanto pôde, participou ativamente de associações de violeiros, congressos de cantadores, seja como espectador, seja como juiz, e foi amigo pessoal de grandes artistas do ramo, tais como Ercílio Pinheiro e Dimas Batista, verdadeiros gênios, a quem hospedou em sua residência, em Mossoró.

Desde muito cedo percebi que as cantorias, assim como toda a tradição oral, das quais fui testemunha maravilhado em minha infância, meninice e adolescência, são sempre um dizer acerca de tudo quanto nos cerca e envolve, formando uma complexa teia de conhecimento e memória na qual os fios que descrevem a realidade estão emaranhados com aqueles outros cuja consistência têm a dimensão do imaginário, das fabulações, mitos, lendas, e são consequências das reflexões, ansiedades, perplexidades e desejos mais profundos da alma humana.

Isso sempre me fascinou.

O segundo motivo diz respeito a uma perene insatisfação com as explicações acerca do surgimento do cangaceirismo.

Treinei-me desde muito cedo para contra-argumentar ante as explicações aparentemente fáceis, óbvias, desde as mais simples até as mais complexas, mesmo se em silêncio a mim mesmo imposto, quando minha fragilidade, tão humana, sucumbia à pressão externa.

As explicações fáceis, singelas, óbvias, existentes acerca do cangaceirismo não me convenciam.

O terceiro e último motivo diz respeito a descobertas que fiz enquanto analisava a trajetória de Massilon, o grande responsável pelo ataque de Lampião e seu bando a Mossoró, no Rio Grande do Norte, bem como, no caso de Jesuíno Brilhante, quando encontrei algumas fontes fundamentais para a elaboração de uma imagem diferente do grande cangaceiro potiguar, que se contrapunha, como em uma composição chiaroscuro, à do “cangaceiro romântico”, “Robin Hood”, do “bem”, onipresente, desde há muito, no imaginário nordestino sertanejo, assim como entre os estudiosos do assunto.

Não que ele tenha sido ruim, no sentido em que o senso comum percebe Lampião e Corisco, mas, com certeza, não foi aquilo que a tradição oral e o talento de Câmara Cascudo construíram ao longo do tempo.

Ou seja, talvez, quem sabe, no caso de Jesuíno Brilhante, o senso comum estivesse errado.

Então escrevi Massilon, uma história de vida, uma biografia, mas não somente. Depois, Histórias de Cangaceiros e Coronéis, na qual apresentei algumas hipóteses acerca das causas ocultas que motivaram a invasão a Mossoró, até hoje incontestadas. Finalmente, escrevi Jesuíno Brilhante, o Primeiro dos Grandes Cangaceiros, este livro, o último da trilogia, um misto de biografia e ensaio acerca do cangaceirismo.

A imagem de Jesuíno Brilhante é bem um produto cultural do Sertão Arcaico. É quase consensual a lenda de que ele foi um cangaceiro diferente, mas, enquanto fato, isso provavelmente não é verdade. Creio que a Luís da Câmara Cascudo devemos, em grande parte, a construção dessa imagem de cangaceiro “romântico”, a ele atribuída.

Entretanto, antes de partirmos para qualquer opinião mais complexa, e enquanto tributo pago à Academia e seus métodos, ouso apresentar, desde logo, a hipótese de que Jesuíno Brilhante foi um homem do seu tempo, nada mais, nada menos.

Que se abra, pois, o debate!

Nunca podemos julgar quem quer que seja, se não for possível fugir de julgamentos, com os olhos de um observador onisciente. Essa é uma tarefa para os deuses, se é que eles existem.

Não por outra razão uma verdadeira história do cangaceirismo precisa começar com uma pergunta que jaz à disposição de quem se proponha enfrentar o desafio de escrevê-la segundo as regras da ciência, fugindo do “achismo” próprio das opiniões superficiais: o que levou alguns homens a não se conformarem com o papel que lhes destinavam suas circunstâncias, e ousarem tomar seus destinos com as mãos, construindo suas próprias histórias?

De outra forma: por que surgiram homens como Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, para ficar na senda do cangaceirismo?

Tarefa ousada, a ser desenvolvida por muitas mãos apropriadas. Resolvi dar o primeiro passo questionando a imagem consagrada de Jesuíno Brilhante. Trazendo-o do cume à planície, se for o caso, apresentando, a seguir, uma conjectura ousada como resposta.

Na medida em que escrevia este livro e apresentava, através de fatos, um Jesuíno Brilhante diferente daquele que nos acostumamos a conhecer ou mesmo imaginar e pensava acerca do surgimento do cangaceirismo, quando o cansaço tomava conta de mim ante tão árdua tarefa, e a vontade de largar tudo queria assumir o controle, eu me lembrava daquelas noites no Sertão, e do quanto meu Compadre gostaria de escutar essas minhas histórias (ou estórias), à luz da fogueira.

Pois se ele, quando se foi, há muito tempo, imaginasse que um dia alguém ia lembrar daquelas noites no terreiro de sua casa, no Sítio, Encanto, beiradas da Serra das Almas, à luz das estrelas, da lua, e de uma fogueira bruxuleante, daria uma grande risada e ficaria muito satisfeito.

Então tal livro também é, além do fecho de uma trilogia, a homenagem que posso fazer ao Sertão da minha infância e meninice, personificada na lembrança que tenho do meu Compadre, e materializada nesse relato acerca de uma de suas lendas mais significativas, a de Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros.

Finalizo lembrando que os textos que iniciam os capítulos são história ou estórias tendo Jesuíno Brilhante como personagem principal, e foram colhidas no estuário esplêndido da tradição oral nordestina sertaneja, por Gustavo Barroso, Câmara Cascudo, Raimundo Nonato, Alicio Barreto e José Gregório. Não têm um autor, são construções coletivas. O meu trabalho consistiu em cruzá-las umas com as outras e transcrevê-las, mudando um pouco a forma, mas mantendo o conteúdo. O objetivo foi mostrar como Jesuíno Brilhante era (e é) “percebido” pelos sertanejos nordestinos. Aos pesquisadores que me antecederam, minha gratidão.

Deus tenha a todos em sua infinita bondade".

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

LÊNIN: QUASE UM SÉCULO DE SUA MORTE

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Estou pensando em Lênin, o genocida, cuja morte completa 97 anos.

Michiko Kakutani, prêmio Pulitzer de 1998, crítica literária do “The New York Times”, por mais de quarenta anos, em A Morte da Verdade (Notas Sobre a Mentira na Era Trump), conta que Steve Bannon, estrategista e conselheiro de Trump, certa vez descreveu a si mesmo como um “leninista”. 

O mesmo Bannon, ainda segundo Kakutani, teria dito o seguinte: “Lênin queria destruir o Estado, e esse também é o meu objetivo. Quero acabar com tudo e destruir todo o establishment de hoje em dia.” 

Lênin deve estar rindo muito em alguma das grelhas do inferno, apesar das dores. Ele é o patrono dessa maré de pós-verdade que se tornou praticamente hegemônica nos dias atuais, calcada no uso da retórica violenta, incendiária, em promessas simplórias e desconstrução da verdade, tudo potencializado pela internet.

O fundador da URSS explicou, certa vez, que sua retórica era calculada para provocar o ódio, a aversão e o desprezo, não para convencer, mas para desmobilizar o adversário, não para corrigir o erro do inimigo, mas para destruí-lo. 

Quem quiser ler um pouco mais, está em “Report to the Fifth Congresso of the R.S.D.L.P. on the St. Petersburg Split of the Party Tribunal Ensuing Therefrom”, segundo Kakutani. 

Pois é.