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quarta-feira, 4 de março de 2015

"CONHECIMENTO OBJETIVO", KARL POPPER

Karl Popper


* Honório de Medeiros

Em “Conhecimento Objetivo” estão compiladas várias conferências realizadas por Sir Karl Raymund Popper acerca, principalmente, de sua epistemologia “evolucionária” ou teoria do conhecimento científico.

Popper foi, no conjunto da obra, provavelmente o mais completo filósofo do século XX. Sua análise de Platão, Hegel e Marx, em “A Sociedade e Seus Inimigos” é uma referência obrigatória, em filosofia política, mas foi principalmente através da “Lógica da Pesquisa Científica”, ou “Lógica da Descoberta Científica”, sua primeira obra de impacto, na qual retoma e amplia a crítica de David Hume à indução, dá nova dimensão ao critério de demarcação entre ciência e metafísica de Kant, e estabelece as bases da sua futura teoria do terceiro mundo ou mundo 3, que ele se tornou onipresente no cenário da filosofia mundial.

A “Lógica das Ciências Sociais”, pouco conhecida e estudada, principalmente no Brasil, lançando paradigmas para uma Sociologia possível, estruturante, coloca-se muito além e em contraposição à herança marxista ou a seu contraponto “natural”, a teoria social de inspiração norte-americana. Em importância, ombreia-se com a Sociologia da escola francesa.

Profundamente erudito, rigoroso, complexo, humanista, a todas essas qualidades Popper aliou uma preocupação constante e metodológica com a clareza e a simplicidade de estilo. Relê-lo, então, é sempre uma homenagem que a inteligência presta ao conhecimento.

* Republicação

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

"LA CLASE POLÍTICA", GAETANO MOSCA


Gaetano Mosca


* Honório de Medeiros


Recebi, dia desses, pelo correio, comprado através da “Estante Virtual” (www.estantevirtual.com.br) – esse desaguadouro para o qual todos os bibliômanos brasileiros convergem, a obra “La Clase Política”, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la nesse imenso sebo virtual mencionado acima, ao qual recorri em muitas oportunidades – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso por que dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu “A Sombra do Vento”, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, uma fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em “Ficções”.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem “A Classe Política” brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, de Popper e Aron, não mereciam o suporte final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época. É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que “A Classe Política” aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse não somente iniciar, para mim mesmo, a descrição fenômeno jurídico em sua totalidade, seja como conjunto de normas jurídicas, seja como fato social, ela se tornaria, então, disponível.

Assim, resta ler, ler de novo, e reler o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos. Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna. Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.

Ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau. Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789. E que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.


* Republicação

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

"DEMIAN", DE HERMAN HESSE


Caim e Abel

* Honório de Medeiros


Aqueles que são de minha geração e gostam de ler, conhecem a obra de Herman Hesse, principalmente “Sidarta”, no qual ele romanceia a vida de Gautama Buda.

Quem, no entanto, se deixou verdadeiramente fascinar pelos livros do escritor - e foram muitos na década de 60/70 -, leu praticamente tudo que foi traduzido para o português: “O Lobo da Estepe”; “O Jogo das Contas de Vidro”; “Demian”; “Gertrud”; “Pequenas Histórias”; “Narciso e Goldmund”...

Dentre eles é possível que “Demian” seja considerada um livro menor. Na verdade, a crítica faz loas a “O Jogo das Contas de Vidro” e, em menor escala, a “O Lobo da Estepe”, embora o mais conhecido seja, sem qualquer sombra de dúvida, “Sidarta”.

Em “Demian”, Hesse nos apresenta a um adolescente que fascina um seu colega de escola – o relator da história – principalmente graças a sua mãe, mulher bela e misteriosa, e de sua iniciação em uma seita religiosa denominada “Cainismo”.

O que seria esse “Cainismo”? Quando essa questão aparece na convivência entre “Demian” e seu interlocutor aquele lhe apresenta, como ponto-de-partida para o conhecimento do Cainismo, uma longa relação de personagens condenados pela história oficial: é o caso de Caim, o irmão de Abel, cujo nome batiza a seita; é o caso de Eva; é o caso de Judas Iscariotes.

Vale ressaltar que o “Cainismo” foi resgatado da total obscuridade, no século XIX, por Lord Byron, mas hoje voltou a mergulhar, até onde se sabe – é bom frisar -, nos subterrâneos profundos do Père Lachaise, e é possível que somente exista, enquanto referência histórica, em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria compondo, também, o “Cemitério das Obras Esquecidas”, que fica em Barcelona.

A pergunta que “Demian” faz a seu interlocutor durante todo o transcorrer da trama é se haveria Abel sem Caim; o Homem, sem Eva; Jesus, sem Judas. Evidentemente, a pergunta implícita e fundamental por trás de sua doutrinação é se haveria Luz sem Trevas; se haveria o Ser, sem o Nada. O que nos remete, cada vez mais longe no tempo, até o Maniqueísmo do qual foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho.

E que não se livrou de sua doutrinação inicial: que é a Civitas Dei senão a contraposição àCivitas Terrena, Deus versus Demônio? Luz versusTrevas?

Não seria essa percepção dualística da realidade o cerne do Catarismo, professado pelos Perfeitos, que a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França mandando matar todos naquela que seria a Primeira Cruzada e que foi liderada por ninguém menos que São Luis?

Questões como essa suscitaram ecos sólidos durante os famosos e psicodélicos anos 60/70, quando se questionava o modelo de vida que a sociedade materialista ocidental impunha a seus integrantes e ao resto do globo.

Havia o fascínio pelo Oriente e seu estilo de vida, enquanto contraponto ao capitalismo, mas não aceitava o marxismo. Desse fascínio e suas conseqüências somos todos herdeiros, de uma forma ou de outra, principalmente daquilo que seus maiores representantes, os “hippies”, nos deixaram de legado, e não foi somente sexo, música e drogas.

Ainda hoje há, em alguns espaços diminutos, uma preocupação esotérica com a vida que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano da luta pela sobrevivência: discutem-se óvnis, vida após a morte, holística, e assim por diante.

Mas também há espaços diminutos que resultam de preocupações que têm raízes solidamente firmadas no concreto, no real, e que são voltadas para a compreensão, por exemplo, dos efeitos da existência da antimatéria.

Tal questão poderia ser, em uma perspectiva descrita por Hesse, nada mais, nada menos, que o dualístico embate entre Luz e Trevas, para o qual o “Cainismo” foi, antes de tudo, em linguagem cifrada, uma descrição da realidade.


* Republicação.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O DIÁRIO DE SEBASTIÃO GURGEL

* Honório de Medeiros

Acabo de reler as “MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO (DIÁRIO)" de Sebastião Gurgel, abrangendo o período entre 1900 a 9 de agosto de 1955.

São cinco volumes – do 1290 ao 1295, 2ª. Edição, 2002 – da COLEÇÃO MOSSOROENSE, SÉRIE “C”, esse incomparável legado que Vingt-Un Rosado deixou para o futuro, sob patrocínio da PETROBRÁS e GOVERNO DO ESTADO – LEI CÂMARA CASCUDO.

Chegaram elas – as Memórias – às nossas mãos, segundo Raimundo Soares de Brito, que lhe faz o prefácio da edição, graças ao memorialista Obery Rodrigues e Ronaldo Gurgel, neto de “Seu Tião Gurgel”.

É uma obra incomparável sob muitos aspectos. Nela podemos encontrar desde o registro obsessivo do preço dos produtos vendidos pelo comércio, ano a ano, como a menção aos males –´e seu tratamento - que acometem a saúde do autor no espaço de tempo que dura o diário, além das anotações relativas às estiagens e invernadas. 

Não contivesse outros temas esses bastariam para um estudo de caráter sociológico. Mas há mais, muito mais, como por exemplo o registro da vida social, econômica e política de Mossoró na primeira metade do século XX. E, por que não dizer, um vasto e portentoso material para uma análise psicológica do autor e da época.

Ou seja: para encurtar a conversa, é todo um excelente material à espera de futuros mestres e doutores.

Não contive minha curiosidade e, antes de começar a lê-las pela ordem cronológica, busquei o volume alusivo à 1927. É o III. Vai de 01 de fevereiro de 1916 a 08 de junho de 1936. O que nos diz Sebastião Gurgel em relação à invasão de Mossoró pelo bando de Lampião? Infelizmente “Seu Tião” foi avaro nos comentários.

Aliás não vamos encontrar textos longos em relação a qualquer tema. São registros secos, esboços às vezes até mesmo toscos em relação aos fatos. Mas há um comentário seu, a respeito de sua conduta durante o episódio, que vale a pena ser contado pela auto-ironia nele contida: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada.”

Sebastião Gurgel não deixa claro para onde fugiu quando da invasão de Mossoró. Deixa claro, entretanto, que como conseqüência da onda de boatos acerca da volta dos bandidos, após o ataque, pegou a família no dia 10 de julho e a levou para Natal, onde alugou casa, somente voltando no dia 8 de setembro do mesmo ano.

Na mesma data – 31 de julho – na qual informa essa saída de Mossoró, comenta que no dia 24 de julho houve “um acontecimento sensacional”: trata-se do casamento do Monsenhor Almeida Barreto com Maria Nazareth de Oliveira, algo que realmente deve ter causado bastante impacto na época, haja vista a publicação – COLEÇÃO MOSSOROENSE, Série “B”, Número 1637, 1999 - pelo pesquisador Dr. Paulo Gastão, de plaquete na qual transcreve carta de Rodolpho Fernandes ao citado sacerdote, de quem era compadre, noticiando o recebimento de correspondência "confidencial" sua na qual expõe as razões do seu gesto.

Comove o leitor o apreço que Sebastião Gurgel teve por sua esposa e companheira de toda uma vida – Dna. Elisa – com quem teve oito filhos. Suas demonstrações de apreço por ela e agradecimento a Deus pela escolha que fez são notáveis, principalmente se levarmos em conta que o casamento foi, de acordo com os moldes da época, “arranjado”.

Como chama a atenção, também, a religiosidade simples de “Seu Tião”: missa dominical, envolvimento nas ações da Igreja, uma legião de “afilhados”, uma devoção prática a um Deus provedor e justiceiro ao qual se dirige de cabeça baixa para aceitar, sem questionamento, a “pena” por Ele imposta a sua família através de José, seu filho, seminarista, acometido de lepra. Nada mais medieval.

Quanto não há para se escrever acerca desse País de Mossoró e seus habitantes!

* Republicado.


sábado, 5 de abril de 2014

A QUESTÃO É MORAL



* Honório de Medeiros


Imagine que você precise de uma segunda via do documento do seu carro. Dirige-se ao Órgão apropriado. Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido. Pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo. Seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá. No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum."

O despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando, nelas, soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um despachante? E quanto aos que acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que quer, todas as portas? 

Como se percebe facilmente, trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro. Moral, aqui, para além de como deve agir o Estado que, conforme a Constituição Federal, deve, por intermédio de seus servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadão.

É esse o tema do recente livro de Michel J. Sandel, "O Que O Dinheiro Não Compra", professor em Harvard, atualmente professor-visitante na Sorbonne. Sandel ficou midiático desde que seu curso "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo. Em 2010 a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro. Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização enquanto morrer. Ou seja: quanto mais cedo o segurado morrer, mais o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo." E não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja à "extensão do mercado, dos valores do mercado, a esferas da vida com as quais nada têm a ver."

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado. Mas não concordo. Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado. Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado, seu "meme" não teria sobrevivido. Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última instância, no que concerne a sua instauração, está o Homem ou a Sociedade? Ou seja: a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é ganancioso? Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.

Fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos auto-excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, é o escândalo do Mensalão, essa nódoa permanente e intransferível na nossa elite política. Ao invés do mea culpa, mea maxima culpa ao qual temos direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras ao qual sustentamos passivamente ao longo dos anos, bem como à escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas aqui existente.

Ou seja, querem nos fazer crer que quando o irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios recentes da crônica da corrupção tupiniquim, assim agia porque o sistema não presta.

Faz parte da própria lógica do aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa, a de que o meio cria o Homem - o determinismo social -, a falta de capacidade técnica para compreender aquilo que está em jogo, em termos científicos, embora não lhe falte mecanismos ou artefatos que a protejam da luz crua da verdade. Os defensores de teorias como essas pululam nas redes sociais.

Darwin está aí, basta lê-lo. Aliás, como a grande, a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo e leitura, ou então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição funcionalista norte-americana, para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as produz, estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Não compreendem, mas usam. É mais fácil botar a culpa no Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história, tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, acreditamos no processo civilizatório.

Mas que se há de fazer? Talvez responder à Baronesa Thatcher: não, você se enganou, a ganância não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem.

sábado, 15 de março de 2014

A BANALIDADE DA CULTURA ATUAL

Llosa



* Honório de Medeiros

Fecho o livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, “A Civilização do Espetáculo”, cujo título foi calcado no “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, e me percebo confortável por ter encontrado um texto, da melhor qualidade, que desse corpo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão vivenciada por mim e alguns poucos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje.

Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos. Há, de fato, um progressivo, solerte e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendida esta como o pressuposto da construção do processo civilizatório. Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em “Notas para uma definição de cultura”, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe: “E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como “A civilização do espetáculo”, e “Breve discurso sobre a cultura”, Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse epifenômeno muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força que está por trás das rédeas que conduzem o processo de destruição da cultura tradicional. Não nos é oferecido, de sua lavra, uma macroteoria, que nos explique tudo.

Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é "a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal."

Como não lembrar do personagem de "O lobo da estepe", de Hesse, em seu permanente solilóquio: "O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?"

Entendo, embora possa estar enganado, que mesmo Zygmunt Bauman e sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, na qual mergulhei durante algum tempo, também não o conseguiu. Sua preocupação é, também, descrever um fato, ou melhor, um epifenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje, um degrau acima, em termos de tempo, com alguns instrumentos intelectuais diferenciados, como tentado pelo excepcional Norbert Elias.

Para Bauman, "a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante"; nas quais "as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades."

Eu me pergunto, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa "vida precária" em "condições de incerteza constante" uma face avançada do processo evolucionário de Darwin?

Aliás, ainda hoje somos devedores, nesse aspecto, dos titãs do século XX, quais sejam Freud, Marx e Darwin, por assim dizer. Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui. O caso aqui é apenas registrar o alívio ao constatar que não estamos errados nós que sentimos que somos, cada vez mais, órfãos de uma cultura que desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás.

Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea.

É a banalização da cultura...


Arte em desencarte.blogspot.com

sábado, 16 de novembro de 2013

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO NO ENSINO DA FILOSOFIA

"O lugar da lógica e da argumentação no ensino da filosofia"; editado por Henrique Jales Ribeiro e Joaquim Neves Vicente; Faculdade de Letras de Coimbra; 2010
 
 
Trata-se dos anais do colóquio internacional acontecido em Coimbra, promovido pela Faculdade de Letras de sua Universidade, em 4 a 5 de dezembro de 2009, do qual participaram professores e estudiosos de Portugal, Espanha, França e Canadá.
 
Relaciono, abaixo, os temas debatidos:
 
"L'étude de la première opération de l'intelligence: au coeur de la formation intellectuelle au niveau pré-universitaire"; "Mejorar em pensamento crítico contribuye al desarrollo personal de los jóvenes?"; "Es posible avaluar la capacidade de pensar criticamente em la vida cotidiana?"; "Argumentação e cuidado de si"; "O ensino da lógica no ensino liceal e secundário"; "Lógica formal no ensino secundário: o que estudar?"; "A lógica e o lugar crítico da razão"; "Do primado de uma LOGICA UTENS sobre uma LOGICA DOCENS no ensino da filosofia na educação secundária"; "La place de la logique et de l'argumentation dans l'enseignement secondaire de philophie em France"; "O lugar da lógica e da argumentação: do ensino superior ao ensino secundário em Portugal".
 
Henrique Jales Ribeiro é Professor Associado com agregação do grupo de Filosofia da Faculdade de Letras de Coimbra, onde atualmente rege as unidades curriculares sobre lógica e argumentação. É coordenador do Grupo de Investigação "Ensino de lógica e argumentação" da Unidade "Linguagem, Interpretação e Filosofia" que pertence à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Recentemente publicou, em nome do grupo que coordena, "Rethoric and Argumentation in the Beginning of the XXIst Century" (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009). 
 
No prefácio ao livro o professor Henrique Jales Ribeiro observa o seguinte:
 
"A lógica e a argumentação são áreas filosóficas fundamentais e transversais em relação ao conhecimento humano de maneira geral (e não apenas às chamadas 'ciências sociais e humans'), e absolutamente nucleares para a formação de um espirito crítico, dialógico e construtivo dos nossos jovens (e quiça filhos e/ou familiares) e futuros concidadão. São-nos de uma forma incomparavelmente bem mais marcante do que aquelas com que a matemática e as disciplinas tecnológicas, para as quais está virada hoje em dia a atenção da media e de alguns sectores de relevo na nossa sociedade, contribuem para o efeito."
 
O livro é de uma densidade à toda prova. Deu-me muita satisfação intelectual lê-lo. Recomendo-o vivamente.

sábado, 2 de novembro de 2013

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?


Honório de Medeiros


                               Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema:
“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.”
“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.”
“Em sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.”
“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.”
“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.”
“Qual a decisão de vocês?”
Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo submeter a linha na qual estavam menos homens à possibilidade do choque.
Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?
Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.
Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo.
É nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”.
Mlodinow é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.
Em “Subliminar” Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo:
“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.
Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia.
(...)
Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.”
Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.
Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões.
A Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.
A pergunta seguinte: a partir de quê os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:
“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.”
“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.”
“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.”
Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)”
Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada...
Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.
Isso quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".
E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

sexta-feira, 17 de maio de 2013

CASCUDO SEMPRE!



Honório de Medeiros


Mais uma vez releio "Na Ronda do Tempo", do mestre Cascudo. E mais uma vez me deixo encantar, fico seduzido pelo seu talento de escritor.
 
Gosto de ler esses seus livros memorialísticos, tal qual "Ontem" e "Pequeno Manual do Doente Aprendiz", assim como suas crônicas e perfis, lentamente, saboreando as palavras, a construção das frases, o bordado do texto que se delineia ante nossos olhos para o deleite da razão e nos vai conduzindo com suavidade até seu desfecho, quando, ávidos, passamos adiante em busca da continuidade desse momento ímpar que somente é conhecido por quem se entregou, desde há muito, de corpo e alma, ao prazer da leitura.
 
Cascudo é inquestionável quanto ao conjunto da obra. Denso, complexo, eterno, se tivesse nascido na Europa ou nos Estados Unidos seria cultuado. Neste "Brasil" que segundo suas próprias palavras em "Na Ronda do Tempo", "regiamente recompensa aqueles que não servem e se servem dele, condescendendo em ser vaca de leite para malandros escorregadios, atingindo todas as alturas, rastejando e babando", seu merecimento, o respeito que se tem por sua produção, é episódico e fragmentado. Resiste bravamente pelo denodo de alguns enquanto ele, Cascudo, o pensador, o polímata, em sua própria Região, o Nordeste, se transformou em personagem folclórico. "Vá ler em Cascudo, ignorante", dizem. Ironia do destino...
 
Já em 1969, no "Ronda do Tempo", fino observador do que se lhe passa em seu entorno, e à Montaigne, um dos seus prazeres literários sempre renovados, observa: "Para mim, compra-se infinitamente maior quantidade de livros, mas a leitura é muito inferior e rara." E continua, cáustico: "Desapareceram aqueles embaixadores da Cultura Axilar, na classificação de Agripino Grieco, passeando com o volume debaixo do braço. Deduzo esse resultado no contato de amigos e audição de palestras intelectuais sobre autores. Dá-me a impressão de viagem aérea. Não há pormenor, figuras, episódios, boiando na memória. Há visão de conjunto, síntese, resumos impressionistas, marchas, flashes. A opinião virou parecer técnico. A maior massa adquiriu para ter o volume que a voga apregoou e é um decesso ignorá-lo, como a um recanto pitoresco ou Night Club consagrado pelos cronistas da Vanity Fair. As alusões e conclusões ao autor são sempre vagas e genéricas. E essa minoria que lê pertence aos concorrentes reais ou em potencial. Já não existe aquela memória fiel às preferências literárias, recitando trechos e lembrando frases felizes. O restante olha sem ver. Muito Best-sellerdormindo nas cestas dos “saldos”."
 

Impressionante. O olhar do sábio reconstrói, no presente, com a messe do passado, aquilo que será o futuro.
 
A simplicidade com a qual escreve é algo invejável, quiçá inatingível. Com uma frase expõe um espaço significativo da realidade. E o faz rendendo homenagens, sempre, à beleza do estilo, como nessa frase, colhida do seu livro já citado, por meio da qual critica a excessiva produção líterária daquele tempo (imaginemos o que diria hoje!): "Passeio furtivo pelas livrarias. Montanhas de livros. Dá-me o remorso de ser cúmplice."
 
O quê mais poderia ambicionar um leitor contumaz ao ler um livro, a não ser se deparar com uma frase como essa?
 

Cascudo sempre!

domingo, 23 de dezembro de 2012

E SE VOCÊ SE ENGANOU QUANDO ESCOLHEU SUA PROFISSÃO?


 
 
Honório de Medeiros
                                   Ao longo de minha vida enquanto professor encontrei muitos casos de alunos que claramente não queriam se bacharelar em Direito. Estavam ali, no curso, cumprindo uma trajetória que não era de seu agrado. Prefeririam se dedicar à música, à história, a escrever, à arquitetura, jornalismo...

                                   Quando eu percebia procurava conversar. Às vezes, em alguns casos, sequer o aluno tinha percebido que sua praia não era aquela. Seduzido por ideais que lhe eram impostos pela sociedade, como status e dinheiro, ou, pior, por ideais que seus pais cultivavam, ali ficava ele, nas salas de aula, a passar horas e horas tomando contato direto com uma realidade, no seu caso, no mínimo entediante.

                                   Mesmo aqueles que sabiam exatamente o que queriam como fazer um concurso, se tranquilizar quanto ao futuro, e, então, se dedicar a alguma atividade que lhe desse prazer, como literatura, era fácil perceber uma dúvida latente e perturbadora a pairar sobre nossos diálogos enquanto conversávamos: “será que vale a pena todo esse tempo perdido? A vida é tão curta...”

                                   Pois bem, se é assim, ou mesmo que seja apenas para lhe assegurar a certeza de sua escolha, na medida em que isso é possível, ou por pura curiosidade, vale a pena ler esse livro que eu vou lhes indicar.

                                   Trata-se de “COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA”, de Roman Krznaric, editora Objetiva.

                                   Desde já advirto: não se trata propriamente de livro de autoajuda. O livro é sério, bem escrito, bem fundamentado, e faz parte de uma coleção “tocada” pelo filósofo Alain de Botton, autor de “Religião para Ateus” e “Como Proust pode Mudar sua Vida”. Eu mesmo somente me interessei quando li uma citação de Richard Sennet, pensador de meu agrado, no livro.

                                   Quanto a Roman, é membro fundador da The School of Life, e foi nomeado pelo jornal Observer um dos mais importantes pensadores sobre estilo de vida do Reino Unido, além de ser conselheiro de organizações tais quais a Oxfam e Nações Unidas.

                                   Então, se for o caso, mãos à obra. Ah! Última observação: não estou ganhando dinheiro com essa indicação! Mas estou ganhando capital simbólico...

                                  

sábado, 3 de setembro de 2011

APRESENTAÇÃO DE CARLOS SANTOS, EM "SÓ RINDO 2"

Honório de Medeiros

                   Talvez o conceito do sociólogo judeu-alemão Norbert Elias não o abarque, mesmo tangencialmente. Não importa. Vou me apropriar do termo e utilizá-lo para o fim visado.

Claro que poderíamos dizer: ele é um gauche, nos lembrando de Carlos Drummond de Andrade. Aplica-se, aqui, o mesmo raciocínio anterior. Prefiro outsiders, à Elias, pelo significado etimológico que o dicionário estudantil, o Michaelis, mostra: s. estranho, intruso.

Os outsiders – todos eles -, como eu já disse em outro tempo e lugar, em algum momento de suas vidas foram moídos por aqueles no meio dos quais conviviam. Foram mastigados, deglutidos e vomitados. Seus jeitos de ser o sistema não assimilava. Não se tratava de oposição externa ou interna ao Poder. Não se tratava de irridência, sublevação, contestação por contestação.

Nada disso.

Nada mais seus jeitos de ser eram que estranhamento em relação ao estamento ao qual, até então, o outsider pertencia, apesar de outsider.Ser tal qual foi sua glória e sua tragédia. Fez com que fosse deglutido e depois expelido. Deglutido graças ao talento, à competência individual – nada que se assemelhe à conseqüência de um compadrio, de um afilhadismo, de um parentesco qualquer.

E expelido porque impossibilitado, graças ao que seria uma excentricidade moral, ou psicológica, ou filosófica, ou todas juntas, de acompanhar a carneirada e sua vocação para ser usado pelos lobos ao custo de balangandãs, bijuterias, penduricalhos materiais ou simbólicos.

Pois Carlos Santos é assim, talvez porque nascido no território imagético composto pelas ruas cujo epicentro é a histórica Capela de São Vicente, coração da Mossoró libertária – não a outra que o Poder tornou sem substância há quase ruins cem anos. Território com população pequena e selecionada por uma dessas felizes circunstâncias que a história mostra ser tão rara, e soberania construída via permanente e anárquica tensão afetiva entre o matriarcado implícito/patriarcado explícito e a insubmissão das gerações mais novas. E logo fez parte da geração que se distanciou da infância, entre alegre e triste, a golpes indisciplinados de leituras de todos os matizes e para todos os gostos, nos anos 70.


Fez-se e se diz repórter, Carlos. Nada mais, segundo ele.

Podo ser, mas há controvérsias. Embora conheça tudo de jornal – até fundou um -, é engano o que diz, e esse dizer nasce de um exercício crítico da razão tolhida pela modéstia e certo laivo de manha.

Como todos nós que nascemos na nossa República Independente de São Vicente tem Carlos uma base comum sobre a qual construímos, ao longo do tempo, nossas distinções de personalidade, muito mais que de caráter: aquela educação ministrada pelos exemplos, tradição dos mais antigos, consolidada por intermédio de orações e devaneios à luz mortiça da Capela, nas longas noites das novenas de Santo Antônio, a cantar as ladainhas e aspirar o doce aroma do incenso que o turíbulo aspergia conduzido por nossas ciosas mãos de meninos.

Qualidades morais, mas há as outras, para além da decência de suas atitudes, que o expõem como muito mais que repórter, entretanto louvado e respeitado seja esse mister.

Por que naqueles dias nos quais o homem que cada um de nós seria amanhã ia sendo produzido nas leituras, bate-papos e discussões – às vezes aguerridas – havia, como que permeando sutilmente nosso presente e preparando o futuro, uma romântica angústia metafísica por Justiça (assim mesmo, com J maiúsculo) nascida do olhar sensível e da razão aguçada que percebiam, mas ainda não entendiam o que se passava no nosso entorno, sorvida nos rios literários nos quais nos dessedentávamos, aguardando uma práxis qualquer que nos tornasse mais Sanchos Panças e menos Quixotes largando mão da retórica adolescente contra os moinhos de vento da Ditadura.

Era um tempo no qual o máximo de ousadia consistia em ouvir, antes da meia-noite, as transmissões da Rádio de Moscou. Falávamos mal dos que não estavam na Oposição. Criticávamos o Regime. Ansiávamos por mudar o mundo e as pessoas.

Então cada um foi para o seu lado, sempre Quixotes, quase nunca Sanchos. Encruzilhadas, conquistas, fracassos.

Da nossa geração, da nossa República, tivemos políticos, escritores, empresários, de tudo um pouco, até mesmo alguns, tão especiais que o Céu, cedo, os levou.

E tivemos jornalistas como Carlos, que também é escritor, pois escolheu ler, escrever e pensar as coisas e as pessoas, as pessoas e as coisas, cada uma no seu tempo, cada tempo uma vez ou tudo. E de suas crenças construiu respeito; de suas idéias, a admiração; de suas escolhas, o afeto, sem perder a sede por Justiça.

Quem o lê, diariamente ou não, em seu blog, logo percebe tal e se gratifica com suas análises políticas e algumas esparsas crônicas, mas anseia por outras incursões literárias, tais quais ensaios, críticas, que tenham sua assinatura, algumas guardadas – ainda não tornadas públicas – junto aos livros que, aos poucos, tomam os espaços restantes do seu bunker, mas não esquece, também, outra faceta sua: o talento com o qual, como ele mesmo diz ao descrever Só Rindo 2, retrata disparates, rompantes inteligentes, gafes homéricas e cenas picarescas em narrativas condensadas, como se fossem esquetes teatrais.

Pelo que diz, e como diz, já temos uma noção da qualidade do texto. Daí porque um jornalista que é escritor; um escritor que é jornalista.

Claro que quereremos mais, nós que o lemos sempre. É esse seu débito para conosco, no geral. No particular, a República deseja que se mantenha no que escreve, mesmo quando cuida de advertir divertindo, com esse compósito de profundidade e ironia – a boa ironia – esculpida a pinceladas incisivas, rascantes, argutamente postas, celebrando a vida no que ela tem de flores e lama: desde o homem que ascende para além dos limites de suas circunstâncias até o homem que mergulha no opróbrio de seus instintos vis de predador social.

Pois a Justiça de ontem em seu coração é a Justiça de hoje em sua razão.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"É PRECISO DUVIDAR DE TUDO", SOREN KIERKEGAARD

Honório de Medeiros

“Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.


Assim começa “Johannes Climacus”, ou “É preciso duvidar de tudo”, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico excêntrico pensador do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da Martins Fontes, Coleção “Breves Encontros”, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, dentre outros menos conhecidos, como o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.



O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e a um leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge – me é desconhecido – e a tradução por Sílvia Saviano Sampaio professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese “A subjetividade existencial em Kierkegaard”, e membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.


“É preciso duvidar de tudo” é dividido em três partes: Introdução, Pars Prima e Pars Secunda. A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard lhe nomina interrogando: “O que é duvidar?”



A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, que é o Capítulo II, da Pars Prima. A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Clímacus é de que essa proposição se situava fora da filosofia e a ela era uma preparação. De fato.

No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão, no Teeteto, que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez haja diferenças sutis entre os dois termos que não valem a pena serem esmiuçadas.



Muito mais recentemente Karl Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começasse por problemas. Esses problemas surgiriam do contraste entre o conhecimento antigo, a expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem, inclusive em relação a nós mesmos. Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas e surge, então, o problema a ser solucionado. Observe-se que tal teoria pressupõe a existência do conhecimento inato adquirido geneticamente, no que é referendada pela teoria da seleção natural de Darwin.



Em certo sentido estão certos não somente os gregos, como Kiekergaard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.

Cabe também observar que Johannes Climacus é um típico caso de personagem acometido da Síndrome de Bartleby, algo que, com certeza, interessaria bastante à Enrique Vila-Matas.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

"REMANSO DA PIRACEMA", POR FRANÇOIS SILVESTRE

François Silvestre


Honório de Medeiros


                   Frederico de Deus Perdoe está incorporado, definitivamente, ao acervo que obras literárias marcantes constroem lentamente, ao sabor do tempo, dos lugares, e das circunstâncias, no imaginário das pessoas, por que é ele um observador engajado de si, dos outros, e das coisas, que vão ressurgindo – seja no viés alegre que a primeira leitura dos seus relatos exponha; seja no viés melancólico que surge quando mergulhamos em uma releitura – via articulados engastes frasísticos, esteticamente surpreendentes, expressos em sínteses vestidas de paradoxos estilísticos.

                   Não somente por isso; não somente pela forma. É ele, Frederico, o fio condutor enquanto narrador de uma estória na qual a humanidade se apresenta por inteiro em seus detalhes, pois em cada um deles está o todo: não importa quando, não importa como, não importa por que, se eu descrevo minha aldeia, ou minha saga, descrevo a terra inteira. Se eu disser um homem, digo toda a humanidade.

                   Frederico vive episódios que a crônica oral ou escrita do homem comum condenaria ao esquecimento. Entretanto não ocorre assim quando ele os conta. Se a morte de Dr. Antônio, vítima de ciúme atroz, se torna único pela forma como é contada, levando-nos à sofreguidão pela busca do desfecho; se não é diferente quanto à história da traição da qual é vítima o narrador quando, pela primeira vez surge, em seu bolso, muito dinheiro; se ocorre o mesmo na metamorfose de Nogueira, há muito mais além do relato que uma primeira leitura apresenta.

                  Basta que aprofundemos nossa leitura, por exemplo, nas memórias da tia do narrador. Quanta identidade entre a solidão à qual foi condenada a tia de Frederico pela época, lugar onde viveu, e a de tantos outros. Seria essa solidão algo desconhecido dos homens ao longo de suas histórias? Não. Ao contrário. A solidão de sua tia é a solidão de cada um de nós, fruto do destino comum. Somos todos, cada um e o todo, órfãos de um sentir que a razão não explica, mas o coração sente e o corpo padece. Abandonados à própria sorte, nossa vida não é saga, é fado, por mais que lutemos. Assim, a bela narração de Frederico cativa e magoa, aproxima e transtorna, alegra e entristece por que, em uma justa medida, expressa a dimensão da tragédia de um sentimento individual originado de uma herança comum. Através de Frederico somos mesquinhos e altruístas, santos e demônios, céu mirífico e lama infinda.

                  É preciso ler “No Remanso da Piracema”, a estória de Frederico de Deus Perdoe, seja para o deleite do sentir, seja para o deleite da razão. Mas é preciso ler.


quinta-feira, 9 de junho de 2011

"DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA", POR LA BOÉTIE

La Boétie


Honório de Medeiros

                   Leiam isso: “Aqueles a quem o povo deu o poder deveriam ser mais suportáveis; e sê-lo-iam, a meu ver, se, desde o momento em se vêem colocados em altos postos e tomando o gosto à chamada grandeza, não decidissem ocupa-lo para todo o sempre. O que geralmente acontece é tudo fazerem para transmitirem aos filhos o poder que o povo lhes concedeu. Ora, tão depressa tomam essa decisão, por estranho que pareçam, ultrapassam em vício e até em crueldade os outros tiranos; para conservarem a nova tirania, não acham melhor meio que aumentar a servidão, afastando tanto dos súditos a idéia de liberdade que estes, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela”.

                   E isso: “Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, (...) as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, o preço da liberdade que perdiam, as ferramentas da tirania”.

                   Parece recente? Não o é. Trata-se, tanto um quanto o outro, de excertos da excepcional obra “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”, de La Boétie, escrita entre 1546-1548. Esse francês, nascido em 1º de novembro de 1530, no condado de Périgord, França, e morto em 1563, perto de Bordéus, aos trinta e três anos, foi o maior dos amigos de Montaigne, que lhe era mais novo dois anos. Dessa amizade o próprio Montaigne deixou registro emocionante: “Vindo a durar tão pouco e tendo começado tão tarde, pois éramos ambos homens feitos e ele mais velho do que eu alguns anos, não tínhamos tempo a perder, nem tivemos de nos ater aos modelos de amizade moles e regulares que necessitam de precauções e conversações prévias”.

                   Quanto à genialidade de La Boétie é bastante o depoimento do seu tradutor, o português Manuel João Gomes na edição Antígona, de Lisboa, Portugal, 1997: “Para La Boétie é ilegítimo o poder que um só homem exerce sobre os outros; (...) O Discurso afirma a liberdade e a igualdade absolutas de todos os homens; Indo mais longe do que Maquiavel (o primeiro que reconheceu o poder efetivo das massas), La Boétie incita os povos a desobedecerem aos príncipes (governantes) e, com uma clareza até então nunca vista, põe em evidência a força da opinião pública”. Tudo isso aos dezoito anos de idade!

                   Ler La Boétie é, principalmente, perceber quão antiga permanece a luta do homem para não ser completamente subjugado pelo Estado. Ela começou na longínqua Idade Antiga, quando os maravilhosos gregos inventaram a Democracia. Prossegue até hoje, apesar dos percalços. Mas está cada dia mais difícil: no Oriente Médio disputa-se o poder à custa do sangue de inocentes. Israel, secundado pelos Estados Unidos e sua doutrina da “guerra preventiva”, mata, como os nazistas faziam aos serem atacados pela resistência, a dez por um. E assim vamos marchando rumo à barbárie, inexoravelmente, e à tirania, sob o pretexto de combater o terrorismo, como quem está com um encontro marcado com o final de tudo.