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quinta-feira, 16 de abril de 2020

SEU CHICO PIU E A TEORIA DA EVOLUÇÃO


Cavalgada ao luar
* Honório de Medeiros  

Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais apareço magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele inesquecível passeio a cavalo, eu e um amigo que me hospedava, até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo.

Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de tristeza toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, diriam os franceses. 

Naquela tarde conheci “Seo” Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular. 

Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa, cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo ao seu cacique. 

“Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que impressionava eram seus pés. Estes, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, foi em tempos muito idos, segundo suas próprias palavras. 

Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, e sua família confirmava, descia descalço até mesmo para a cidade, onde raramente ia. E, nos pés, não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura. 

“Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Junto a eles, colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as... Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Um general a conduzir seu exército com doçura, mas com firmeza. 

Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro, que se espargiam serra abaixo, tendo a Casa Grande como epicentro. Vivesse no Sertão nordestino e nele tivesse aquela terra e todo aquele gado seria um homem de posses, por assim dizer. 

No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada a chegar, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida, dos homens e das coisas.

Mas tudo que é bom dura pouco.

Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua, a passo leve, nas trilhas estreitas, para manter a compostura ameaçada pela bebida e a possibilidade de se envolver com a beleza da serra sob o luar.

Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula mansa que me conduzia, apontou para mim e para si próprio, e como que refletindo, me disse para guardar comigo que o tempo havia lhe ensinado ser a vida, acerca da qual tanto havíamos falado, como uma serra de onde cada um descia na justa medida em que outro subia lhe tomando o lugar. 

Dito isso, me lembrou que “seu pensamento” se tratava de um presente, assim como a garrafa da mais pura cachaça de sua moenda que me passou às mãos, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros tocados pelo sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, desconhecendo meu conhecimento sorvido dos livros acerca da teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele concluíra somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo. 

segunda-feira, 13 de abril de 2020

HOMEM, QUEM ÉS TU?


* Honório de Medeiros

Esse homem que o acaso colocou em minha frente é uma incógnita. Nada sei a seu respeito.

Se observo os detalhes que a sua aparência externa coloca ante meus olhos, e concluo algo, posso incidir em um oceano de erros.

Afinal, sob seu verniz de civilização pode se ocultar qualquer ignomínia. 

Não faz pouco tempo, foi ele gentil com uma criança.

Vi, mesmo, de soslaio, a mãe da criança lhe sorrir complacente, como quem acha muito natural receber, sua cria, as atenções do mundo. 

O gesto me fez lembrar as contradições do ser humano.

Ele mesmo, o observado, que desarrumou, com um afago, os cachos do cabelo da criança, em outra ocasião, outra circunstância, uma guerra, talvez ordenasse um bombardeio que vitimaria tantos outros sorrisos infantis. 

Pode ser que eu não fale a mesma linguagem que ele. 

Quantas formas há de entender uma só palavra?

Difícil atividade, a dos lógicos, a dos filósofos da linguagem, que pretendem descobrir o meio de diminuir a distância entre aquilo que percebo e o que digo. 

Se lhe chamasse a atenção e perguntasse, comentasse algo, poderíamos divergir tanto, e acerca de coisas tão banais... 

"Todavia, entre mim e esse homem glacial, sinto todos os espaços vazios que separam os homens". É como disse Saint-Exupèry, em um artigo para o Paris-Soir, em 1935, contando sua experiência de viajar, à noite, em um trem repleto de mineiros poloneses que voltavam à sua terra natal, expulsos da França pelas contingências da economia. 

Vazios semelhantes àqueles expressados por T. S. Elliot, em A Terra Desolada: a angústia da constatação da impossibilidade da comunicação humana; a percepção de sua solidão essencial, primitiva, única. 

Poderia o amor, esse sentimento tão tipicamente cristão, aproximar os homens?

Desnudar suas almas, lhes fazer não rir, nem chorar, mas compreender, como queria Spinoza?

Dar, a eles, a capacidade de transcender a mesquinha luta pela sobrevivência, que coloca em lados opostos os que deveriam semear juntos? 

Ou essa é uma missão utópica, e não há tempo para sentir quando não conseguimos refletir acerca da misteriosa rede de aliciamento e cooptação que nos induz a darmos o pior de nós mesmos em praticamente todos os momentos da vida? 

Podemos ter alguma esperança, mesmo depois de tantos milhares de anos de aperfeiçoamento na capacidade de destruir, matar, esmagar, e nenhum progresso quanto a fraternidade humana? 

Saint-Exupèry, esse tão injustamente banalizado filósofo da melancolia, da nostalgia, já dissera: "É absolutamente necessário falar aos homens". 

Em sua "Carta ao General X", escrita em La Marsa, perto de Túnis, julho de 43, para o Le Figaro Littéraire, denunciou: "Ah!, General, só existe um problema, um único, em todo o mundo. Restituir aos homens uma significação espiritual, inquietações espirituais. Não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo?" 

Um sentido para a vida. 

Teria a vida sentido? 

Se nos indagassem: "homem, que és tu?", teríamos que responder "aquele em cuja biblioteca os livros de poesia perderam seu lugar para os de computação?". 

Meu companheiro anônimo se fora.

Tinha perdido, eu, a chance de lhe falar acerca de tudo isso que poderia nos aproximar ou afastar: a solidão, o sentido da vida... 

Não seria dessa vez que construiríamos uma ponte entre a clausura de nossas almas.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

AQUELAS NOITES NO SERTÃO

Imagem: Gustavo Bettini
* Honório de Medeiros


“Naquelas noites, no Sertão, a escuridão tomava conta do Sítio onde, à luz do lampião, no terreiro, meu Compadre – eu, menino, o tratava assim, e ele assim me tratava – reunia, no seu entorno, a família e os amigos, para ouvirem as estórias que faziam parte da antiga tradição oral dos nossos antepassados sertanejos, acompanhadas de uma xícara de café quente, coado na hora, e bolachas pretas. 

Às vezes havia lua e o mar de prata criava imagens fantasmagóricas nos arbustos lá fora, confins da luz; ao vê-las, instintivamente nos aproximávamos um pouco mais do círculo dos adultos, e somente relaxávamos quando a gargalhada do meu Compadre pontuava suas estórias. Até então, ele tinha nos deixado, a todos, em permanente suspense, por um tempo aparentemente sem fim. 

Decerto, nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo, e a um desses “causos” que ele nos contou. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento, “parente distante”, que para fugir de uma obrigação social, jurou, por intermédio de um bilhete, estar em casa, de repouso, por motivo de doença. Ao voltar de um forró onde se esbaldou a noite inteira, em outra localidade, mal apeou do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos – ela, sua esposa, jazia, muito doente, nos braços das filhas. 

Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia sobrenatural daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto sinistro dos rasga-mortalhas. 

Eram estórias de amores; assombrações; gestas; valentias; honras; ódios entre famílias; cangaceiros; botijas, descobertas por intermédio de sonhos que precisaram de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente; raptos consensuais ou não; caçadas às onças, nas quais somente a habilidade espantosa do caçador o fez escapar com vida; pescarias milagrosas; recuperações da saúde através de feitiços, poções ou orações de benzedeiras e curandeiros; vidências, estórias de maus-olhados e mandingas; secas e invernadas desmedidas; justiças divinas a corrigirem desmandos humanos; feitos com armas; aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado; estórias dos segredos da Serra das Almas, onde foram encontradas as ossadas de vários homens ao lado de espadas, escudos, elmos, pepitas de ouro e outros apetrechos do tempo em que o Brasil era recém-nascido; e tantas outras... 

Na forma arrastada com a qual meu Compadre as contava havia uma magia que prendia nossa atenção, uma sabedoria antiga da qual ele era herdeiro e na qual era mestre; havia alguém que cultivara a tradição, o dom de contar um “causo”, uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa para o encadear das frases engastadas com palavras que o mestre Luís da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial, e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de “matutês”, por pura ignorância. 

O desfecho sempre apresentava uma lição de vida e, não raro, belas conclusões a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos. 

Meu Compadre não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos herdeiros daquela raça de titãs que colonizou o Sertão, alguém dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, a quem eu escutava embevecido; também era uma fonte inspiradora para mim, a principal delas quando penso na cultura sertaneja, como se tudo quanto eu lesse acerca do tema precisasse ser confrontado com a memória de sua existência, para, em mim, adquirir a necessária credibilidade. 

Ele também era um poeta, em um certo sentido muito próprio, alguém com o dom de dizer belamente, em momentos especiais, com tiradas de brilho incomum, algo que nunca brotaria, com facilidade, dos nossos corações e mentes. Dele escutei, certa vez, quando falávamos da morte, rompendo um seu mutismo inabitual, que "a morte, para quem fica, é uma saudade sem esperanças". Acaso alguém poderia ser mais preciso e poético ao descrever esse sentimento? De outra, referindo-se aos caminhos e descaminhos de um amigo comum, saiu-me com essa, aludindo à eterna vitória da esperança sobre a razão: "compadre, quem nos puxa mesmo é a mão da ilusão..." 

Passaram-se os anos, muitos, desde então, e o pó do tempo escondeu impiedosamente muitas lembranças minhas dos tempos de menino. Algumas, entretanto, sobreviveram. Vez por outra, por exemplo, eu me lembro daquelas noites no Sertão, e fico imaginando o quanto meu Compadre gostaria de escutar esta minha história (ou estória), acerca do seu dom de narrador. Não por vaidade – nunca conheci ninguém tão simples, mas pelo inusitado, para ele, da recordação. 

Pois se ele, quando se foi, há muito tempo, imaginasse que um dia alguém iria lembrar daquelas noites no terreiro de sua casa, no Sítio, Encanto, beiradas da Serra das Almas, Sertão profundo, à luz das estrelas, da lua, e de uma fogueira bruxuleante, daria uma grande risada com aquele jeito manso e ficaria muito satisfeito". 

quinta-feira, 2 de abril de 2020

AS MULHERES DA SERRA




Ah, as mulheres da Serra, frescas, em flor, sem nada que as enfeite exceto a simplicidade, exceto a alça da blusa que cai displicentemente, deixando entrever e esconder um tanto que não se diz, porque ninguém sabe dizer. Elas vestidas de simplicidade. Elas e seu olhar direto, quando querem, e, quando não querem, ainda mais janelas da alma. “Uma carne sadia, abundante e rosada”, como as descreveu Proust, em “No Caminho de Swann”. Nada artificial, em cada uma. Nada de astucioso em suas atitudes  com os homens. Há aquela malícia instintiva, que é seu dom de iludir. Beber, comer, amar, é tudo tão natural! Chorar também, seja pela posse desmedida ou abandono definitivo. Swann “preferia infinitamente à beleza de Odette aquela de uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se enamorara...” Em contraposição o universo urbano recheado de mulheres excessivamente enfeitadas, com a mente tomada por articulações, e poses estudadas, no afã infindável de seduzir: os óculos de sol, a roupa de grife, a mirada tecnicamente distante, o celular através do qual são armados os lances do jogo. Por quem, no final, Vaumont, o conquistador impenitente, se apaixona em “As Relações Perigosas”, de Chorderlos de Laclos, senão pela inteireza de sentimentos e ações, distante de qualquer dissimulação, da mulher que julgara tão fácil seduzir e descartar?

domingo, 29 de março de 2020

DONA EFIGÊNIA EM SUA TEIA



Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei.
Muito gorda, um pouco surda – talvez por puro cálculo –, passava o dia sentada em uma cadeira de balanço com espaldar de palhinha na sua ampla sala de estar, que dava para um jardim lateral, onde ficava o portão de ferro batido, pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo.
Casa antiga, senhorial, de esquina.
Sempre perfumada alfazema, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro, tirando as fartas refeições, colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias, na qual reinavam o telefone e o rádio. Tempos antigos.
“Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam”.
Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la quando ia à sua cidade. Que era a nossa. Tenho certeza de que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente.
Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustrava alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente interessante, a revelar um agudo poder de observação e análise.
Pois Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável deixada pelo falecido, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns.
Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia, ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone.
Devo ter esquecido alguma coisa, óbvio, mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela em silêncio escutando, até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo estrategicamente colocado perto da cadeira de balanço, e cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava era dada por encerrada.
Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam que ela era o tipo acabado da velha fofoqueira.
Depois de algum tempo compreendi que criara essa camuflagem. Era assim mesmo que queria ser enxergada. A camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária.
Através da colheita de informações, ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno. Talvez alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado. Pequenas grandes mazelas.

Então entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, e a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar...
E, assim, disfarçadamente, realizava um metódico, complexo e minucioso bordado social. Bordado do bem.
Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor.

Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua. Paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada na sua cadeira de balanço, abro seu breviário, e me ponho a ler, e essa é a minha oração em louvor de sua memória.

terça-feira, 17 de março de 2020

VIAJANDO O MEU APARTAMENTO

Xavier de Maistre   


Em luta sem quartel contra esse inimigo oriundo do coração da China, e que se vale de seu tamanho microscópico para fugir do combate direto, olho no olho, resolvi, levando em consideração certas medidas ditadas não pela covardia, mas pela astúcia, e tendo em vista minha condição de sexagenário, levantar a ponte levadiça do meu castelo e ataca-lo com táticas de guerrilha, ou seja, fugir do contato pessoal, como os russos fizeram contra Napoleão e Hitler, enquanto ele esmorece, fica fragilizado, alvo fácil para um contra-ataque. 

Lembrei-me, então, de Xavier de Maistre, e levando em consideração que ele, embora francês, sentou praça no exército russo e chegou a general, o que vem ao encontro do meu ânimo belicoso contra o inimigo, mas muito melhor que isso, escreveu uma obra notável que o lançou definitivamente na imortalidade, denominada Viagem em Volta do Meu Quarto, escrita em 1794, na qual relata o que lhe aconteceu nos quarenta e dois dias em que passou confinado no seu quarto, resolvi seguir seu exemplo, apenas ampliando um pouco mais o espaço no qual pretendo circular, para abranger todo o meu apartamento.

Assim como Xavier (já o considero íntimo), pretendo escrever um diário acerca do meu confinamento.

Isso, desde já, me coloca como sério candidato a escritor mundialmente desconhecido, para utilizar o bordão predileto de um amigo idoso ao qual não nomino em respeito a sua luta desesperada para não se dar por vencido ante os achaques da idade.

Passarei, portanto, quarenta e dois dias confinados em meu apartamento. Ou mais.

A introdução do meu livro de Xavier de Maistre - eu o li em fevereiro de 2011, é assinada por Sandra M. Stopparo, que também o organizou e traduziu, a quem rendo minhas homenagens. 

É uma publicação da editora Hedra, São Paulo, em 2009. Gostei, de cara, de uma afirmação que ela fez no seu texto, louvando a literatura do século XVIII. Não sei se está certa ou errada. Sei que como pretendo me valer desse auto confinamento belicoso para imitar Xavier de Maistre, seu pensamento me valeu como uma luva. 

Diz Stopparo: "Toda a força argumentativa do século XVIII se coloca aqui a serviço da literatura. Laurence Sterne é o principal parâmetro literário, assim como todos os escritores moralistas do período: fazer de qualquer tema, motivo, dúvida ou certeza uma razão para longas elucubrações é o método preferido da época, que vai do salão ao texto filosófico e às melhores páginas literárias." 

Ou seja, pelo que eu entendi, tanto faz um vírus como uma revolução, qualquer tema é bem-vindo, e o importante é argumentar. 

Talvez possamos entender esse dito de Stopparo (é de 2009) como uma verdadeira antecipação do facebook ou twitter, hoje espaços virtuais repletos de doutores em física quântica, economia marginalista; matemática tensorial, ciência política; filosofia pré e pós-moderna e outros assuntos ditos menores.

Quase nada acerca de quase tudo. 

Explanado tudo isso, e louvado no incentivo de Stopparo, bem como amparado por Xavier de Maistre, aqui vou eu.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

AINDA HÁ BURACOS DE BALAS EM BARCELONA



* Honório de Medeiros

Publicado novamente, desta vez para o pessoal da Comitiva. 

Nas madrugadas de Barcelona, as largas calçadas acomodam, em dezembro, o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados, bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impediam a passagem dos pedestres. Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses meios de transporte quando chega a noite. Ele ri e me fala de uma cadeira em ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, condenada à prisão para não ser furtada tão logo o dono lhe dê as costas.

"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a polícia em Barcelona. O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me desculpe, eu não assisto, não quero assistir".

"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um homem muito mau, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. Stálin era muito mau, repete, very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe, fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito vinho, falo muito minha língua, e durmo".

Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo em frente ao "Palau de la Musica Catalana" onde tantos famosos se apresentaram, e de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro com a história da Catalunha em espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em Catalão", e eu lhe disse que infelizmente não lia Catalão, mas acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história da Catalunha escrito em espanhol, acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.

É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo, fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela qual me apaixonei sem resistência,  foi uma verdadeira entrega, querendo parar em cada obra de arte encontrada por seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que executava uma sonata arcaica de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas que lhe cercava, até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos terríveis da guerra civil. Que diria François se estivesse ali?

"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, está vendo as marcas das balas nas paredes, "claro", digo eu, "pois perceba, alguns buracos são muito altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos eram amigos das vítimas". "Meu Deus", penso eu.

Ah, Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em Montserrat", "é, eu sei", diz ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por Himmler, mas eles não encontraram nada". "Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse isso muito tempo atrás".

"Do que você gostou?", ela me pergunta, com aquele sotaque do interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos, pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição, nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da Catalunha com a Provença francesa..." 

sexta-feira, 10 de maio de 2019

UM DITO DE MORDER O JUÍZO

* Honório de Medeiros

Seu Antônio de Luzia, ultimamente, usa uma espécie de bengala, feita de um pedaço de mulungu que ele aplainou, lixou, oleou, botou empunhadura e ponta de metal, e, na maioria do tempo, fica entre suas pernas enquanto ele, sentado em sua cadeira de balanço de palha trançada, na sombra da canafístula que banha a ponta de sua calçada alta de cimento cru e aponta no rumo do despenhadeiro da Queda, acompanha, em silêncio, com raras palavras, a conversa de final-de-tarde dos que se aprochegam para um dedal de prosa no Feijão, seu pouso "até que a Danada me leve", como diz, no Sítio Canto, Martins, nas beiradas da rua de barro usado pelo povo para entrançar da zona rural à cidade, e vice-versa.

Lá o encontrei, como sempre, dias desses, quando passei por Martins no rumo do remanso da Serra das Almas, nas bandas de Pau dos Ferros, caminho e meio para a Serra do Camará.

Depois dos cumprimentos de praxe, saboreada com gosto a xícara de café coado no pano, grão pilado em casa, perguntei pela parentada e começamos a assuntar daquele jeito de sempre: eu comento alguma coisa, ele reflete, bate com a ponta da bengala no chão, e sem tirar os olhos dos pés de caju que ficam no terreno largo e comprido do outro lado da rua - comprado, eu desconfio, somente para evitar a perda do poleiro pela passarinhada da redondeza, se outro qualquer se assenhoreasse - me responde de forma seca ou me conta alguma história ou estória cujo desfecho é uma espécie de fecho moral, bem dizer o último botão da casaca, como o povo de antigamente levava a cabo, nas conversas de começo de noite nos oitões das casas do Sertão, enquanto a fumaça da pequena fogueira se misturava com as sombras das pessoas, espalhadas pelas  paredes de tijolo cru.

Eram os tempos de estórias de trancoso, de cantadores de viola, repentistas, cordelistas, contadores de "causos", caçadores de onça, viajantes que chegavam de inopino e encontravam uma caneca de café, um mungunzá ainda quente, um naco de carne de sol e, depois de pagarem a hospedagem com uma boa conversa, quando atualizavam os presentes com as novidades que traziam consigo do vale e de mais longe, muito além, também tinham uma boa rede para um sono reparador até a hora do leite morno, na madrugada do dia seguinte, tirado do peito da vaca naquele instante, adoçado com raspa de rapadura, antes de botar o pé na estrada e pegar o rumo a que se destinavam.

Falei a seu Antônio a respeito dos noticiários de hoje que ouvimos e vemos na televisão, nos poucos jornais escritos, e na tal da internet, e critiquei as mentiras, dizendo-lhe ser, mais que nunca, difícil confiar em quem quer que fosse ou em qualquer coisa dita. 

Contei alguns exemplos, lembrei escritos de alguns homens sabidos acerca desses acontecidos, e terminei lançando o bordão que parece mais um ponto final tipicamente sertanejo para encerrar conversa: "o mundo tá perdido, Seu Antônio".

Ele matutou para lá e para cá, pigarreou, bateu com a ponta da bengala no chão, e me disse: "desde que o mundo é mundo tem dois tipos de pessoas: os sabidos e os bestas. Dos sabidos, tem os que enxergam os finalmente de seus fazeres, e os que somente vêm até um palmo além das ventas. Quanto aos bestas, esses são um só, desde que o tempo é tempo. Pois meu filho, eu lhe digo sem medo de errar: o pior tipo de sabido é aquele que só vê até um palmo depois das ventas. Esse pensa que sabe das coisas, e quando é levado no bico pelo mais sabido que ele, e arranca um pedaço do besta, ficando com a parte menor, não sabe que está arrancando dele também." 

Passei um bocado de tempo pensando no dito de Seu Antônio. A noite fechou, o luzeiro de Deus tomou conta do Sítio, ainda tomei uma sopa quente de feijão com bolacha quebrada dentro do prato, mordi um pedaço de rapadura, tomei mais de uma caneca de água, depois me despedi, arrepiei no rumo da cidade, fui dormir, e tudo aquilo que Seu Antônio de Luzia tinha me dito não deixou de morder meu juízo um minuto sequer, e para ser sincero, ainda morde até hoje.

sexta-feira, 29 de março de 2019

A PEQUENINA FLOR LILÁS

* Honório de Medeiros

Havia uma única e pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas poucas plantas ressecadas resistiam bravamente à secura daquele começo de dezembro.

Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para explorar os seus arredores, pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco.

Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão inteira como seria próprio em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida.

Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve-a na mão e a contemplou durante algum tempo, provavelmente pensando no que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa, enquanto meu coração se apertava lentamente. 

Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde então trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos.

Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos.
A flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre.

Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.

De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos. 

Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto? 

Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de ideias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não creem. Veem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica do senso comum.

São os homens-ocos, dos quais falou o poeta T. S. Elliot em Os Homens Ocos

"Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou os pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada".

Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em anjos, mas sei que eles existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, contemplar minha pequenina flor lilás.

quarta-feira, 20 de março de 2019

NÃO É MARTINS UMA ILHA?


Serra do Martins

muitasoutras.blogspot.com 


* Honório de Medeiros                           

Os olhos claros da garçonete não olhavam, ou faziam de conta que não olhavam, os seus admiradores espalhados pelas mesas do restaurante onde trabalhava. 

Também não olhavam para os passantes na calçada da praça em frente, tampouco para nós outros que estávamos em restaurantes vizinhos e separados por um espaço puramente imaginário.

Mas nós sabíamos que ela sabia dos nossos olhares. Havia uma sabedoria ancestral, herdada de Eva, naquela sua reserva dissimulada à nossa admiração. Sabedoria que a Serra burilara com seu isolamento ilhéu. 

Pois não é a Serra uma ilha no vale? Não é Martins com seu frio invernal de Julho, a névoa como um véu ocultando as formas das árvores centenárias nos sobrenaturais caminhos de barro que conduzem para os sítios, uma ilha no coração do Sertão?

Não sabia disso Francisco Martins Roriz quando fincou, no século XVIII, seus pés portugueses à margem da Lagoa dos Ingás e construiu uma Capela exatamente onde sua companheira, Micaela, foi encontrada morta?

Não sabia que ali estava um lugar como não havia igual em todo aquele mar de terra, sol, cinza, pó, pedra e solidão que lhe cercava? 

A garçonete, vai e vem. O que pensará enquanto desliza e atende, alheada de si e da presença de sua beleza, a beleza das mulheres de Martins, a todos nós que subimos a Serra e nos entregamos ao prazer ancestral de comer, beber, amar e conversar, receber a dádiva do frio e das árvores, do céu estrelado onde a escuridão, no Vale, somente se rende às luzes trêmulas de pequeninas casas isoladas? 

Talvez não pense. Talvez aja mecanicamente. Mas, ali, em Martins, não é possível que a realidade seja menor que a arte. Ao contrário. Ali, a arte imita a vida. E seu pensamento, com certeza, não desmerece todo o clima que envolve a cidade.

Há luzes, cores, música, risos, então há romances, amores, paixões que surgem, outras que desmoronam, no interminável e efervescente ciclo da vida.

Em sua cabecinha loura com certeza há a espera ansiosa pelo fim da noite ou começo da madrugada, como queiram. Decerto há alguém que a espera com palavras, carinhos, compromissos; há tudo quanto é humano e os deuses abençoam. Não pode ser de outra forma. 

Talvez ela seja de um sítio vizinho ou mesmo distante. Não quis perguntar. Pode ser que eu conheça algum dos seus moradores. Alguém vivido, que conseguiu sair de Martins e voltou depois de muitos anos sem que a saída afetasse seu coração e sua alma. Alguém que não foi corrompido pelo mundo exterior – por que Martins é uma ilha! -, não esqueçamos. 

Esse homem ou mulher já mal vê o mundo, seus olhos estão ficando velados pelo tempo. Não importa. Com sua idade e sabedoria, o mundo está em sua mente e a sua mente é o mundo.

Ele ou ela, quando foram embora, interpretaram o mundo a partir de Martins; hoje, apenas confirmam, com sua experiência, que em quase tudo estavam certo. “O mundo lá fora”, dizem, quando ao seu redor sentam os que o visitam, “não é nada diferente de nossa Serra. É como uma mulher coberta de joias e vestidos e pintura. E quando se tira tudo isso, o que fica? Mas a nossa Serra não precisa de nada disso para ser bonita"  

Todos estão juntos ali impulsionados por um código imemorial: escutam atenciosamente quem pode lhes explicar o mundo que Deus lhes legou e que às vezes parece tão incompreensível.

Ainda bem que Deus lhes mandou também algumas pessoas que têm o dom de perceber suas mensagens deixadas nas linhas da natureza e explica-las aos outros. Por isso tais reuniões. Para escutar e reforçar os laços de solidariedade que os mantém unidos e protegidos em sua ilha, Martins. 

A garçonete se fora. Quem a terá recebido em seus braços? Faz frio. A praça está repleta de silêncio. Os restos da festa jazem espalhados. Alguns retardatários encaminham-se para suas cobertas. O ar puro e suavemente perfumado da Serra envolve Martins. Às margens da Lagoa dos Ingás a escuridão mal deixa perceber suas águas, mas elas estão ali, muito mais antigas que os passos dos que viviam, no seu entorno, desde a ocupação portuguesa.

Águas misteriosas que vêm não se sabe de onde. Águas que ouviram o grito de dor de Francisco Martins Roriz quando se deparou com o cadáver de Micaela, morta por afogamento, às margens do Ingá.

Águas testemunhas, dizem os antigos, dos passos inquietos dos seus antigos proprietários, os índios, que nas noites enluaradas caminham incansavelmente da Lagoa dos Ingás para a Casa de Pedra, da Casa de Pedra para a Lagoa dos Ingás, e assim será até o final dos tempos.

sexta-feira, 1 de março de 2019

DIZER NÃO

* Honório de Medeiros


Seu Antônio de Luzia uma vez me disse que os homens são tangidos por aqueles que dizem não.
Ele não me disse assim, essa é uma “transcriação” minha, nem mesmo sei se ele a aprovaria.

Homem de muito poucas palavras, diz apenas o suficiente, quando fala é quase como um corte seco e definitivo de navalha.

Graciliano Ramos aplaudiria entusiasmado sua sisudez verbal.

O certo é que fiquei a pensar: ao longo do tempo parece que as coisas acontecem mesmo como Seu Antônio de Luzia me disse.

Uma longa lista de homens e mulheres notáveis, em certo momento histórico, nadou contra a correnteza do rio. E, de uma forma ou outra, fez a diferença.

Sócrates, Platão, Jesus, Buda, Freud, Marx, Einstein, Darwin... Eu os chamo de "outsiders".

Os outsiders são muito interessantes. De forma alegórica estão presentes em um romance famoso na segunda metade do século passado, "Demian", de Herman Hesse.

Em “Demian”, Hesse nos apresenta a um adolescente que fica fascinado por seu colega de escola principalmente graças a mãe dele, mulher bela e misteriosa, iniciada em uma seita religiosa denominada “Cainismo”.

O que seria esse “Cainismo”? Quando essa questão aparece na convivência entre “Demian”, e seu interlocutor, aquele lhe apresenta, como ponto-de-partida para o conhecimento do Cainismo, uma longa relação de personagens condenados pela história oficial: é o caso de Caim, o irmão de Abel, cujo nome batiza a seita; é o caso de Eva; é o caso de Judas Iscariotes.

Vale ressaltar que o “Cainismo” foi resgatado da total obscuridade, no século XIX, por Lord Byron, e é possível que somente exista, enquanto referência histórica, em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria existente apenas no “Cemitério das Obras Esquecidas”, que fica em Barcelona, segundo Szafón.

A pergunta que “Demian” faz a seu interlocutor durante todo o transcorrer da trama é se haveria Abel sem Caim; o Homem, sem Eva; Jesus, sem Judas.

Evidentemente, a pergunta implícita e fundamental por trás de sua doutrinação, é se haveria Luz sem Trevas; se haveria o Ser, sem o Nada. O que nos remete, cada vez mais longe no tempo, até o Maniqueismo do qual foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho.

E que não se livrou de sua doutrinação inicial: que é a "Civitas Dei" senão a contraposição à "Civitas Terrena", Deus versus Demônio? Luz versus Trevas?

Não seria essa percepção dualística da realidade o cerne do Catarismo, professado pelos Perfeitos, que a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França mandando mata-los todos naquela que seria a Primeira Cruzada e que foi liderada por ninguém menos que São Luis?

Voltando ao ponto de partida, e a Seu Antônio de Luzia: ele está certo, penso eu.
Todos esses homens disseram "não", em algum momento da história. E esse "não" fez a diferença.

E cá para nós, somente é livre quem pode dizer não.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A ESTRANHA PEREIRO

* Honório de Medeiros

No pequeno cemitério localizado no centro da cidade – o antigo – de Pereiro, cidade duas vezes secular que se estende ao comprido e preguiçosamente entre serras, passeei entre os túmulos, as árvores e as flores com sua guardiã, Dona Maria, procurando o jazigo perpétuo de Décio Hollanda, aquele mesmo que quis tomar Apodi, no Rio Grande do Norte, pelas armas, através da valentia de Massilon, no final dos anos 20 do século passado. 

Ela aponta os túmulos dos Hollanda: “são três; aqueles dois lá e este aqui, mas eu não sei quem é essa pessoa que o senhor está procurando”. 

Voltamos para a entrada naquele caminhar desconexo de quem anda nos cemitérios antigos de cidades pequenas, tomando cuidado para não pisar em algum montículo inesperado que guarde os restos mortais de alguém. 

Eu lhe elogio a limpeza, a arborização, as flores do cemitério. “Obrigada”, diz. “Já faz vinte e cinco anos que estou aqui. Antes de mim era uma senhora com quem aprendi tudo e que também passou vinte e cinco anos.” 

“É muito tempo”, falo quase que para mim mesmo. “Para eles, não”, responde, fazendo um arco amplo com o braço e envolvendo toda a área do cemitério. 

Dona Maria é baixinha, moreno-clara, entroncada. Sexagenária, eu diria. Muito limpa e bem arrumada, nela não há sinal de desmazelo. Os cabelos não guardam qualquer fio branco. Seria pintura? Não, observo de perto. Filhos, netos, todos foram criados através do seu labor contínuo e obscuro entres velas, flores frescas ou murchas e os túmulos de seus conterrâneos. 

“Qual o fato mais estranho que a senhora presenciou neste cemitério?” Ela para. Não hesita ao responder. Talvez a mesma história já tenha sido contada muitas vezes. 

“Uma viúva” – começa, esboçando um olhar distante, “que chega sempre toda de preto para rezar naquele túmulo muito antigo encostado à parede. Ninguém sabe de quem ele é. O tempo já apagou, há muito, suas inscrições. Não temos qualquer documento a respeito. Eu mesma já pesquisei. Ela somente aparece quando não tem ninguém, além de mim, no cemitério. Passa por mim, eu dou bom dia ou boa tarde, respondido com um aceno de cabeça que intimida a gente, vai até o túmulo e reza em pé mesmo. Aí sempre acontece alguma coisa que me distrai e quando olho novamente ela já não está presente.” 

“Alguém mais a viu?” 

“Não, somente eu.” 

Chegamos à entrada. “Espere”, diz. Desaparece por trás de algumas árvores e volta logo depois com uma flor branca entre os dedos. “Tome, é para o senhor”. “Ah, um bogari (jasminumsambac)!” “O senhor conhece?” “Era a flor predileta de minha mãe”. 

Eu agradeço, tocado. Ela nota a minha emoção. Vou me afastando, a flor próxima ao nariz, linda, pura, perfumada. Depois, no mesmo dia, eu a ofereci à Castelã da Casa-Grande da Fazenda Trigueiro, onde Frei Damião procedeu ao ritual exorcista próprio para afastar almas penadas, mas isso é outra história... 

Do final do século XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, diz-nos Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”. 

Peço à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, dará uma noção do tamanho da janela – bem maior que a cozinheira, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Quase o dobro. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais. 

Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida da Suíça na época da construção. 

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem por que, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos. 

“Naquela época”, diz-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia ‘Campo Santo’ (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.”. 

Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, é uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. E o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios”... 

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis?”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, digo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.” 

“Frei Damião esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.” 

“Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado acima. “Ficou tudo resolvido?”, pergunto. “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio, era o canto mais limpo.” 

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da “Fazenda Trigueiro”. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda “Sabe Muito”, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, salvo engano. Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela, tronco ancestral da família Fernandes do Rio Grande do Norte, que se espraiou pelo Alto Oeste, em um sentido, Mossoró, depois Natal, em outro. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

PRESTAR ATENÇÃO NO DIFERENTE PARA ENTENDER AS COISAS


* Honório de Medeiros

João de Antônio de Luzia me contou uma história de seu pai que vale a pena relatar. 

Eu me encontrara com ele nas imediações do mercado de Martins, onde fora tomar uma cana velha e tirar o gosto com seriguela no bar de João Catingueira. 

Perguntei por seu pai. “Tá por lá, pastorando o tempo”. Ri. “Alguma história nova?” Ele coçou a cabeça. Sabia quanto eu gostava das coisas do velho. 

“Dias desses me lembrei do senhor", disse, "porque na calçada falaram de uma eleição para prefeito bem antiga.” 

E foi contando: “O povo da calçada todo apoiava um candidato, médico, desmantelado que só ele, tomador de cana braba, caçador de peba, que andava de chinela japonesa, camisa aberta no peito, bucho pela goela, o consultório era um prédio velho e pequeno perto da zona, sujo e caindo aos pedaços, atendia quem o procurava no meio da rua, catando um papel no chão e puxando uma caneta velha do bolso que só escrevia por que Deus tem pena de quem faz caridade, para escrever a receita. Bom médico, por sinal.” 

“Todo dia era a mesma coisa. O povo da calçada dando a eleição como certa, elogiando o médico, falando mal do outro candidato, inventando estórias, fofocando, um disse-me-disse danado, o senhor sabe como é.” 

“Meu pai não dizia uma palavra, como sempre. Um dia, vendo todo aquele silêncio, depois que o povo saiu perguntei a ele: o senhor não vai votar no candidato do pessoal? Ele ficou calado um pedaço e depois me disse que o candidato ia ganhar, mas não ia dar certo como prefeito.” 

“Como é o que o senhor sabe?” 

“Seis meses depois da eleição me pergunte que eu lhe digo.” 

“Pois muito bem, o homem ganhou e menos de um mês depois de eleito todo mundo viu que a coisa ia ser um mal-arrumado de perder de vista, como de fato foi. Nada funcionava. Ele mandava na prefeitura como se ela fosse uma bodega, e ruim.” 

“Deixei o tempo passar, me mordendo de curiosidade. Queria porque queria perguntar ao velho, mas não tinha coragem. Sabia que ele nem responderia, antes da hora certa.” 

“Quando chegou o fim dos seis meses, fui a ele: e aquele negócio que o senhor ficou de me dizer seis meses depois da eleição?” 

“Pois é. Eu lhe pergunto: como é que ele ia cuidar das coisas dos outros que prestasse, se nem das coisas dele, ele cuida? Veja como é que ele anda, atende as pessoas, e o consultório.” 

“E como o senhor chegou a esse entendimento?” 

“As pessoas olham, mas não enxergam. É preciso prestar atenção no que é diferente. É prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.” 

João recusou meu convite para tomar uma, adentrou o mercado e me deixou coçando a cabeça, e lembrando de uma passagem de um conto de Conan Doyle e seu genial personagem Sherlock Holmes. 

Em episódio bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu, à noite. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”. 

Seu Antônio de Luzia tem razão, é prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

CONHECI UM SANTO


* Honório de Medeiros

Para meu amigo Francisco de Sales Felipe.

Eu tinha dez ou onze anos quando conheci um santo. Chamava-se Helder Câmara, era Arcebispo da Igreja de Cristo em Recife e Olinda. A ele fui levado pela secretária particular do Governador Nilo Coelho, que eu suponho ter sido, muitas vezes, um canal de comunicação entre a Igreja, o Poder Civil e o Poder Militar em Pernambuco, dada sua condição singular de amiga pessoal dos líderes dessas instituições. Fomos eu, ela, uma tia, funcionária da Sudene, minha mãe e minha irmã, em começo de noite, na sede do arcebispado. Estávamos de férias em Recife. D. Helder nos recebeu com aquele seu sorriso luminoso, tão característico, olhos pisados pela falta de sono, o corpo mirrado, frágil, em seu ascético gabinete. Para mim, naquela época, era impossível sequer imaginar que ali estava um gigante moral. Um dique que com a força de suas palavras, atitudes, e carisma, tantas vezes contivera e conteria o furioso redemoinho, em Pernambuco, das águas turbulentas da repressão pós 64. Pregava defendendo uma Igreja simples, voltada para os pobres, e a não-violência. Orador que galvanizava multidões, também era um escritor cultuado. Dele li o belo “Um Olhar Sobre a Cidade”, perdido em alguma das mudanças que minhas muitas vidas me impuseram. Mas dele guardei mesmo, em meu coração, em minha mente, sem nunca esquecer, não somente a benção que seus dedos magros desenharam sob a minha testa ainda infantil, como também uma frase sua, lida em algum lugar, que é a síntese, para mim, do seu apostolado, tão bela quanto densa: “me enriqueces quando discordas de mim”. Eis uma epistemologia em forma de poesia direcionada ao espírito dos homens de boa-fé do povo de Deus. Minha benção, padre. Quando me lembro do senhor, acredito na humanidade.