Mostrando postagens com marcador Resenhas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Resenhas. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 2 de junho de 2011

"DEMIAN", POR HERMAN HESSE

Caim e Abel
generacionnepantla.blogspot.com


Honório de Medeiros


                   Aqueles que são de minha geração e gostam de ler, conhecem a obra de Herman Hesse, principalmente “Sidarta”, no qual ele romanceia a vida de Gautama Buda.

 Quem, no entanto, se deixou verdadeiramente fascinar pelos livros do escritor - e foram muitos na década de 60/70 -, leu praticamente tudo que foi traduzido para o português: “O Lobo da Estepe”; “O Jogo das Contas de Vidro”; “Demian”; “Gertrud”; “Pequenas Histórias”; “Narciso e Goldmund”...

                   Dentre eles é possível que “Demian” seja considerada um livro menor. Na verdade, a crítica faz loas a “O Jogo das Contas de Vidro” e, em menor escala, a “O Lobo da Estepe”, embora o mais conhecido seja, sem qualquer sombra de dúvida, “Sidarta”.

 Em “Demian”, Hesse nos apresenta a um adolescente que fascina um seu colega de escola – o relator da história – principalmente graças a sua mãe, mulher bela e misteriosa, e de sua iniciação em uma seita religiosa denominada “Cainismo”.

                    O que seria esse “Cainismo”? Quando essa questão aparece na convivência entre “Demian” e seu interlocutor aquele lhe apresenta, como ponto-de-partida para o conhecimento do Cainismo, uma longa relação de personagens condenados pela história oficial: é o caso de Caim, o irmão de Abel, cujo nome batiza a seita; é o caso de Eva; é o caso de Judas Iscariotes.

 Vale ressaltar que o “Cainismo” foi resgatado da total obscuridade, no século XIX, por Lord Byron, mas hoje voltou a mergulhar, até onde se sabe – é bom frisar -, nos subterrâneos profundos do Père Lachaise, e é possível que somente exista, enquanto referência histórica, em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria compondo, também, o “Cemitério das Obras Esquecidas” que, até onde se sabe, fica em Barcelona.

                   A pergunta que “Demian” faz a seu interlocutor durante todo o transcorrer da trama é se haveria Abel sem Caim; o Homem, sem Eva; Jesus, sem Judas. Evidentemente, a pergunta implícita e fundamental por trás de sua doutrinação é se haveria Luz sem Trevas; se haveria o Ser, sem o Nada. O que nos remete, cada vez mais longe no tempo, até o Maniqueísmo do qual foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho.

                   E que não se livrou de sua doutrinação inicial: que é a Civitas Dei senão a contraposição à Civitas Terrena, Deus versus Demônio? Luz versus Trevas?

                   Não seria essa percepção dualística da realidade o cerne do Catarismo, professado pelos Perfeitos, que a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França mandando matar todos naquela que seria a Primeira Cruzada e que foi liderada por ninguém menos que São Luis?

                   Questões como essa suscitaram ecos sólidos durante os famosos e psicodélicos anos 60/70, quando se questionava o modelo de vida que a sociedade materialista ocidental impunha a seus integrantes e ao resto do globo.

Havia o fascínio pelo Oriente e seu estilo de vida, enquanto contraponto ao capitalismo, mas não aceitava o marxismo. Desse fascínio e suas conseqüências somos todos herdeiros, de uma forma ou de outra, principalmente daquilo que seus maiores representantes, os “hippies”, nos deixaram de legado, e não foi somente sexo, música e drogas.

                   Ainda hoje há, em alguns espaços diminutos, uma preocupação esotérica com a vida que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano da luta pela sobrevivência: discutem-se óvnis, vida após a morte, holística, e assim por diante.

Mas também há espaços diminutos que resultam de preocupações que têm raízes solidamente firmadas no concreto, no real, e que são voltadas para a compreensão, por exemplo, dos efeitos da existência da antimatéria.

Tal questão poderia ser, em uma perspectiva descrita por Hesse, nada mais, nada menos, que o dualístico embate entre Luz e Trevas, para o qual o “Cainismo” foi, antes de tudo, em linguagem cifrada, uma descrição da realidade.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

"O JULGAMENTO DE SÓCRATES", POR I. F. STONE

blogs.villagevoice.com
Honório de Medeiros
                                      I. F. Stone, “Izzy”, tinha 45 anos quando deu o passo mais arriscado de sua vida, conta-nos Sérgio Augusto em “Uma pedra no caminhos dos poderosos”, apresentação da obra “O Julgamento de Sócrates”, escrita aos 77 anos pelo ícone do jornalismo, depois de aposentado e após uma jornada intelectual que o levou, na investigação acerca da liberdade de pensamento, a pesquisar as duas grandes revoluções inglesas do século XVII, a Reforma Protestante, os pensadores ousados da Idade Média, a redescoberta de Aristóteles, a Atenas da Antiguidade, e aprender o Grego Antigo.
                                      Em 1952, Stone viu-se desempregado depois de ter granjeado fama nos Estados Unidos e Europa de mucraking, jornalista especializado em revolver casos de corrupção e abuso de autoridade trabalhando às margens das redações e desconfiando que qualquer governo tudo faz para esconder verdades incômodas, após trabalhar em vários jornais do eixo Nova Jersey – Filadélfia – Nova York, inclusive o Daily Compass e o New York Post.
                                      Com a indenização do Daily Compass criou uma newsletter sem nada semelhante na imprensa do mundo. Conta-nos Sérgio Augusto: “Dispondo da lista de assinantes de três publicações para as quais havia trabalhado, assegurou de saída 5.300 leitores. O primeiro número do I. F. Stone’s Weekly chegou aos seus assinantes no dia 17 de janeiro de 1953. Pouco antes de virar quinzenal, em 1968, o alternativo mais bem informado do planeta ultrapassou a barreira dos 40 mil leitores”.
                                      Qual não seria a influência de Izzy hoje, em tempos de aldeia global!
                                      “Os primeiros anos foram solitários”, Stone recordaria na última edição do jornal, em dezembro de 1971. “Meus leitores me sustentaram” – dentre eles Bertrand Russel, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt. O I. F. Stone’s Weekly fechou por que Izzy não tinha mais forças, vitimado por uma angina de peito. Seu artigo de despedida foi comovente: “Tenho podido viver de acordo com minhas convicções. Politicamente, acredito que não pode existir uma sociedade decente sem liberdade de crítica: a grande tarefa do nosso tempo é uma síntese de socialismo e liberdade. Filosoficamente, creio que a vida do homem se reduz, em última análise, a uma fé – cujos fundamentos estão além de qualquer prova – e que esta fé é uma questão estética, um sentimento de harmonia e beleza. Acho que todo homem é o verdadeiro Pigmalião de si próprio. E em recriando a si próprio, bem ou mal ele recria a raça humana e o futuro”.  
“O Julgamento de Sócrates” tornou-se uma obra de referência, apesar do nariz torcido de alguns membros da comunidade acadêmica. Stone fez com Sócrates o que Karl Raymund Popper fez com Platão em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”: demoliu sua imagem oficial. Ao longo das páginas do seu ensaio esmaece o Sócrates “santificado” por Platão e Xenofonte a partir de um julgamento que o condenou à morte, e qual aquelas pinturas ocultas pela poeira do tempo, surge, aos poucos,        um legado: todos seus seguidores concordavam em uma questão - tratavam a democracia com condescendência ou desprezo.        
Como disse o próprio Stone: “Nas Memoráveis, Sócrates afirma que seu princípio básico de governo é que ‘cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer’. O que exigia não era o consentimento dos governados, mas sua submissão. Trata-se, certamente, de um princípio autoritário, rejeitado pela maioria dos gregos, e em particular pelos atenienses”.
Em um governo assim, não há espaço para a liberdade de expressão. Esta questão é o fio condutor da obra: Sócrates não quis calcar sua defesa no conceito de liberdade de expressão, tão caro aos gregos do seu tempo – está em Ésquilo, Sófocles, e, principalmente em Eurípedes, para não comprometer seu visceral e antigo desdém com a democracia, escolhendo conscientemente a imortalidade que seu martírio iria originar.
Stone: “Xenofonte afirma que Sócrates queria ser condenado, e fez o que pode no sentido de hostilizar o júri”.
Quando faleceu, em junho de 1989, I. F. Stone, “Izzy”, era uma lenda viva. Mesmo assim continuava sarcástico: “Não consigo me acostumar com o lado dos vencedores”. Seu radicalismo, seu espírito outsider ainda inspiram muitos. Sua postura firme contra a intolerância o torna um ícone para os libertários de todos os credos. E sua história de vida o credencia a tornar-se um exemplo a ser usado pelos que ainda acreditam na espécie humana.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

"PADRE CÍCERO", DE LIRA NETO


parazinet.files.wordpress.com

Pe. Cícero

Concluída na madrugada do sábado, 23 de janeiro do corrente, a leitura de “Padre Cícero”, do escritor cearense Lira Neto, cujo subtítulo é “Poder, Fé e Guerra no Sertão”, Companhia das Letras - “um tijolo” - como diz Aluísio Lacerda, passo a recomendá-lo vivamente aos amigos leitores do blog.


Lira Neto foi, para mim, uma grande e agradável surpresa. Nascido em Fortaleza, Ceará, 1963, já abocanhou o Jabuti em 2007, na categoria “melhor biografia” por “O Inimigo do Rei: Uma Biografia de José de Alencar”. Também escreveu “Maysa: Só Numa Multidão de Amores”, e “Castello: A Marcha para a Ditadura”. Não os li, mas que prometem, prometem.


Duvido que os outros sejam tão bons quanto “Padre Cícero”. Tão bons quanto, assinalo.


Primeiro por que é muito bem escrito: a leitura é muito agradável, flui fácil, o texto é envolvente; segundo por que a reconstituição histórica, inclusive em termos fotográficos, é primorosa; e terceiro, mas, não, por fim, é impressionante a dimensão do personagem principal e daqueles “secundários”, como é o caso do Dr. Floro Bartolomeu, baiano, médico, garimpeiro, político, ferrabrás, a “alma negra” do Padre Cícero, ou mesmo da Beata Maria de Araújo, negra, analfabeta, protagonista do “milagre do Juazeiro”, que consistiu em cuspir hóstias transformadas em sangue, quando da Comunhão. A Beata, que até palmatoradas tomou do Vigário do Crato, e foi exilada durante anos de sua Juazeiro natal por ordem da Igreja, também entrava em êxtase e apresentava os estigmas de Cristo, ao mesmo tempo em que se banhava de sangue para logo depois “acordar” limpa e sem qualquer marca no corpo – fenômenos constatados por padres e médicos.


Mas há outros personagens menores sumamente interessantes: o que dizer do Conde Adolphe Achille van den Brule, ex-camareiro do Papa Leão XIII, companheiro e sócio de Floro Bartolomeu, que se apaixonou por uma Juazeirense e, mesmo sendo casado na Europa e lá tendo deixado dois filhos, casou-se novamente no Cariri, nele fincou raízes e nunca mais voltou?


Além dos personagens, alguns fatos históricos relatados na obra chamam a atenção, como a tomada do poder central, em Fortaleza, pelos coronéis do Cariri tendo, à frente, Floro Bartolomeu e um exército de cangaceiros, jagunços, romeiros e devotos de Padre Cícero, todos pelo “padim” abençoados? Revolta que derrubou, na ponta do fuzil, o Governador Franco Rabelo, amado pelos fortalezenses, e, de permeio, matou o nosso Capitão José da Penha, que com ele se solidarizara?


O livro deixa algumas interrogações no ar: qual o passado de Floro Bartolomeu e o fim do Conde van den Brule? Por outro lado demonstra, à exaustão, como a incompetência da Igreja Oficial, externada, principalmente, dentre outros, por intermédio do Segundo Bispo do Ceará Dom Joaquim José Vieira. Preconceito, racismo, intransigência, autoritarismo, alheamento, burrice, tudo isso serviu como combustível de primeira grandeza para alimentar o incêndio fanático no qual se transformou Padre Cícero.

E o quê dizer de Padre Cícero? Nada. É preciso ler o livro. Entretanto é possível ter uma noção de sua sabedoria tomando conhecimento de seu catecismo ecológico, vazado lá pelos idos da virada do século XIX para o XX, e distribuído com os agricultores:


“Não toquem fogo no roçado nem na caatinga; não cacem mais e deixem os bichos viverem; não criem o boi nem o bode soltos; façam cercados e deixem o pasto descansar para se refazer; não plantem em serra acima, nem façam roçado em ladeira muito em pé: deixem o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza; façam uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva; represem os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta; plantem cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o Sertão todo seja uma mata só; aprendam a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar vocês a conviverem com a seca. Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer; mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o Sertão vai virar um deserto só.”


Enfim, uma grande obra. Para ser lida ou para ser estudada. Ou ambas, nada impede.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

"LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE", POR SÉRGIO DANTAS



Sérgio Dantas, de blazer, ao lado de Vera Ferreira, a neta de Lampião

Honório de Medeiros

“Lampião e o Rio Grande do Norte”, cujo subtítulo é “A história da grande jornada”, de Sérgio Augusto de Souza Dantas, Gráfica Editora, exposto à venda nas livrarias de Natal, é uma obra seminal. Não é possível mais, a partir do lançamento, tratar do Cangaço, seja no Rio Grande do Norte, seja de uma forma geral, sem uma consulta à obra.

Mossoró é assunto importante, no livro. Não pode ser diferente. Mesmo tratando da incursão do bando de Lampião ao Rio Grande do Norte, desde sua entrada pela Tromba do Elefante, margeando Luis Gomes, até sua saída, no rumo de Limoeiro do Norte, Ceará, a ida a Mossoró é onipresente, por que o quixó preparado por Massilon e o Cel. Isaias Arruda, de Aurora, Ceará, no qual Virgolino – assim mesmo, com “o”, como nos previne o Autor – é parte fundamental do trabalho.

As informações colhidas durante quatro anos de pesquisa, perambulações, visitas, entrevistas, cruzamento de informações, consulta à literatura hoje vastíssima sobre o cangaço estabelece um contraponto interessante com o estilo do Autor. Para coroar, um valioso acervo fotográfico é colocado à disposição de quem adquiriu o livro.

Em relação a Massilon, acerca do qual mantenho permanente interesse, Sérgio Dantas, jovem juiz norteriograndense agrega informações valiosíssimas, dentre elas o “raid” que esse personagem singular empreendeu nos costados do Jaguaribe e Cariri logo após o episódio de Mossoró. Isso significa dizer que a lenda segundo a qual Massilon, mesmo antes da célebre foto de Limoeiro, Ceará, já se separara de Lampião e teria ido embora para o Norte, não é verdadeira. Alguns, inclusive, diziam que o cangaceiro que aparece na foto tirada em Limoeiro não seria, na realidade, Massilon.

Detalhada, a história da marcha espanta pela riqueza de detalhes. Assim, ficamos sabendo da passagem de Lampião por todo o território do Rio Grande do Norte cidade por cidade, povoado por povoado, sítio por sítio, fazenda por fazenda. Os acontecidos nas cercanias de Martins e Umarizal, antiga “Gavião”, são relatados com precisão. E tudo quanto aconteceu em Apodi, antes da chegada de Lampião, protagonizado por Massilon, recebe tratamento de pesquisador sério e interessado.

A descrição geográfica e sociológica dos lugares pelos quais passou o bando de cangaceiros merece respeito. Através dela é possível perceber o dia-a-dia daquelas comunidades existentes no início do século XX. E a descrição dos mal-tratos, arruaças, bebedeiras, torturas físicas e psicológicas comove e revela a sensibilidade do Autor.

Agora resta esperar que a obra semeie críticas e informações outras, alguma correção de rumo – se for o caso – para retornar ainda mais rica para o acervo dos historiadores e sociólogos do Brasil. É assim que ocorre quando uma obra deixa de pertencer ao Autor, por sua importância, e passa a fazer parte do referencial bibliográfico ao qual pertence.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

"É PRECISO DUVIDAR DE TUDO"; KIERKEGAARD



Soren Kierkegaard

Por Honório de Medeiros

“Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.

Assim começa “Johannes Climacus”, ou “É preciso duvidar de tudo”, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico excêntrico pensador do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da Martins Fontes, Coleção “Breves Encontros”, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, dentre outros menos conhecidos, como o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.

O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e a um leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge – me é desconhecido – e a tradução por Sílvia Saviano Sampaio professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese “A subjetividade existencial em Kierkegaard”, e membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.

“É preciso duvidar de tudo” é dividido em três partes: Introdução, Pars Prima e Pars Secunda. A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard lhe nomina interrogando: “O que é duvidar?”

A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, que é o Capítulo II, da Pars Prima. A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Clímacus é de que essa proposição situava-se fora da filosofia e era uma preparação a ela. De fato. No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão, em Teeteto, que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez haja diferenças sutis entre os dois termos, que não valem a pena serem esmiuçadas.

Muito mais recentemente Karl Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começasse por problemas. Esses problemas surgiriam do contraste entre o conhecimento antigo, a expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem, inclusive em relação a nós mesmos. Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas e surge, então, o problema a ser solucionado. Observe-se que tal teoria pressupõe a existência do conhecimento inato adquirido geneticamente, no que é referendada pela teoria da seleção natural de Darwin.

Em certo sentido estão certos não somente os gregos, como Kiekergaard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.









quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

"CONHECIMENTO OBJETIVO", DE SIR KARL RAYMUND POPPER


Karl Popper

Em “Conhecimento Objetivo” estão compiladas várias conferências realizadas por Sir Karl Raymund Popper acerca, principalmente, de sua epistemologia “evolucionária” ou teoria do conhecimento científico.

Popper foi, no conjunto da obra, provavelmente o mais completo filósofo do século XX. Sua análise de Platão, Hegel e Marx, em “A Sociedade e Seus Inimigos” é uma referência obrigatória, em filosofia política, mas foi principalmente através da “Lógica da Pesquisa Científica”, ou “Lógica da Descoberta Científica”, sua primeira obra de impacto, na qual retoma e amplia a crítica de David Hume à indução, dá nova dimensão ao critério de demarcação entre ciência e metafísica de Kant, e estabelece as bases da sua futura teoria do terceiro mundo ou mundo 3, que ele se tornou onipresente no cenário da filosofia mundial.

A “Lógica das Ciências Sociais”, pouco conhecida e estudada, principalmente no Brasil, lançando paradigmas para uma Sociologia possível, estruturante, coloca-se muito além e em contraposição à herança marxista ou a seu contraponto “natural”, a teoria social de inspiração norte-americana. Em importância, ombreia-se com a Sociologia da escola francesa.

Profundamente erudito, rigoroso, complexo, humanista, a todas essas qualidades Popper aliou uma preocupação constante e metodológica com a clareza e a simplicidade de estilo. Relê-lo, então, é sempre uma homenagem que a inteligência presta ao conhecimento.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

"LA CLASE POLÍTICA", DE GAETANO MOSCA


Gaetano Mosca

Por Honório de Medeiros

Recebi, dia desses, pelo correio, comprado através da “Estante Virtual” (www.estantevirtual.com.br) – esse desaguadouro para o qual todos os bibliômanos brasileiros convergem, a obra “La Clase Política”, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la nesse imenso sebo virtual mencionado acima, ao qual recorri em muitas oportunidades – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso por que dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu “A Sombra do Vento”, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em “Ficções”.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem “A Classe Política” brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, de Popper e Aron, não mereciam o suporte final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época. É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que “A Classe Política” aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse não somente iniciar, para mim mesmo, a descrição fenômeno jurídico em sua totalidade, seja como conjunto de normas jurídicas, seja como fato social, ela se tornaria, então, disponível.

Assim, resta ler, ler de novo, e reler o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos. Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna. Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.
 
Ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau. Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789. E que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.








quarta-feira, 25 de novembro de 2009

"ANTÔNIO SILVINO" por SÉRGIO DANTAS



Antônio Silvino no centro, agachado

Em narrativa linear, atenta à lógica dos fatos históricos, Sérgio Augusto de Souza Dantas nos reapresenta a um Antônio Silvino cru, recortado do contexto mítico e inserido em sua dimensão humana, sem que restasse perdido tudo quanto o tornou um dos mais interessantes personagens da trindade básica que forjou a alma sertaneja – o cangaço, o misticismo, o coronelismo.

Louve-se a felicidade na escolha do “nome” de cada capítulo bem como o excerto que o acompanha, próprio para chamar a atenção do comprador desatento, em uma homenagem ao estilo jornalístico de outrora, e a indicar um texto enxuto, leve, de parágrafos curtos e bem encadeados. Chamam a atenção episódios trazidos a lume que por si só têm dimensão histórica, como a convivência entre Antônio Silvino e Gregório Bezerra, lendário líder comunista pernambucano, sua entrevista com Graciliano Ramos, e o assalto à Usina Santa Filonila na qual morreu Feliciana na flor da idade – crime do qual o cangaceiro jamais deixou de se arrepender. Aliás, qual teria sido o desfecho do embate entre Antônio dos Santos Dias e José Tavares de Melo, este, genro, aquele, pai de Teresa Tavares de Melo, pivô da questão? Qual teria sido o fim de cada um deles?

O Antônio Silvino que emerge do ótimo texto de Sérgio Dantas é um personagem emblemático: é o retrato nítido de uma saga que nos permite identificar e compreender os nexos causais que originam certa circunstância histórica – o período do cangaço – e até mesmo ir além, na medida em que também permite identificar o viés comum a entrelaçá-los, ou seja, a questão do Poder. Basta colocar esses retratos sobre a mesa e examiná-los com olhar crítico: Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião; Coronel Zé Pereira, Coronel Isaías Arruda, Coronel Floro Bartolomeu; Pe. Cícero, Beato Zé Lourenço, Antônio Conselheiro... Tomando distância de qualquer tentativa de apreender o fenômeno a partir de uma explicação oriunda exclusivamente de fatos alusivos à posse da terra.

É possível conjecturar se Sérgio Dantas vai aventurar-se em novos resgates ou cuidará de desbravar outras fronteiras. Sua obra tem sido, até agora, a fronteira entre um ciclo e outro no que diz respeito à literatura do cangaço. Esse ciclo por ele estudado até o momento está chegando ao fim. Já não é mais possível, até onde sabemos, ressalvada a possibilidade de documentos desconhecidos surgirem inesperadamente, prosseguir com a literatura elaborada a partir de relatos, fotos, testemunhos ou escritos, ou seja, fontes primárias. São poucos os sobreviventes e deles já se extraiu mais do que tudo. Os papéis estão virando pó, vítimas da ação inclemente do tempo e da incúria das nossas elites. Um outro ciclo está surgindo: a interpretação de todos esses dados, ou seja, uma literatura de tese, algo timidamente iniciado por Frederico Pernambucano de Mello com “Guerreiros do Sol”, através da criação do conceito de “escudo ético”.

A não ser que – e talento não lhe falta – resolva mergulhar com sua característica obstinação no jornalismo literário brindando-nos com alguma pesquisa onde sobrem indícios, mas, faltem provas – como de fato acontece nessa espécie literária - e, no entanto, seja possível povoar um texto com interrogações perturbadoras tais quais, por exemplo, as razões do estranho silêncio do Juiz e do Promotor de Mossoró em relação aos fatos que lá aconteceram em junho de 1927.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O DIÁRIO DE SEBASTIÃO GURGEL

Por Honório de Medeiros

Acabo de reler, de um fôlego só, as “MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO (DIÁRIO) de Sebastião Gurgel, abrangendo o período entre 1900 a 9 de agosto de 1955. São cinco volumes – do 1290 ao 1295, 2ª. Edição, 2002 – da COLEÇÃO MOSSOROENSE, SÉRIE “C”, esse incomparável legado que Vingt-Un Rosado deixou para o futuro, patrocínio da PETROBRÁS e GOVERNO DO ESTADO – LEI CÂMARA CASCUDO. Chegaram elas – as memórias – às nossas mãos, segundo Raimundo Soares de Brito, que lhes faz o prefácio da edição, graças ao memorialista Obery Rodrigues e Ronaldo Gurgel, neto de “Seu Tião Gurgel”.
 
É uma obra incomparável sob muitos aspectos. Nela podemos encontrar desde o registro obsessivo do preço dos produtos vendidos pelo comércio, ano a ano, como a menção aos males –e seu tratamento - que acometem a saúde do autor no espaço de tempo que dura o diário, além das anotações relativas às estiagens e invernadas. Não contivesse outros temas esses bastariam para um estudo de caráter sociológico. Mas há mais, muito mais, como por exemplo o registro da vida social, econômica e política de Mossoró na primeira metade do século XX. E, por que não dizer, um vasto e portentoso material para uma análise psicológica do autor e da época. Ou seja: para encurtar a conversa, é todo um excelente material à espera de futuros mestres e doutores.
 
Não contive minha curiosidade e, antes de começar a ler pela ordem cronológica, busquei o volume alusivo à 1927. É o III. Vai de 01 de fevereiro de 1916 a 08 de junho de 1936. Que nos diz Sebastião Gurgel em relação à invasão de Mossoró pelo bando de Lampião? Infelizmente “Seu Tião” foi avaro nos comentários. Aliás não vamos encontrar textos exundiosos em relação a qualquer tema. Trata-se de registros secos, sem “finura” psicológica, esboços às vezes até mesmo toscos em relação aos fatos. Mas há um comentário seu, a respeito de sua conduta durante o episódio, que vale a pena ser contado pela auto-ironia nele contida: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada.”

Sebastião Gurgel não deixa claro para onde fugiu quando da invasão de Mossoró. Deixa claro, entretanto, que como conseqüência da onda de boatos acerca da volta dos bandidos pegou a família no dia 10 de julho e a levou para Natal, onde alugou casa, somente voltando no dia 8 de setembro do mesmo ano. Na mesma data – 31 de julho – na qual informa essa saída de Mossoró, comenta que no dia 24 de julho houve “um acontecimento sensacional”: trata-se do casamento do Monsenhor Almeida Barreto com Maria Nazareth de Oliveira, algo que realmente deve ter causado bastante impacto na época, haja vista a publicação – COLEÇÃO MOSSOROENSE, Série “B”, Número 1637, 1999 - pelo pesquisador Dr. Paulo Gastão, de plaquete na qual transcreve carta de Rodolpho Fernandes ao citado sacerdote, de quem era compadre, noticiando o recebimento de correspondência sua “confidencial” na qual expõe as razões do seu gesto.

Comove o leitor o apreço que Sebastião Gurgel teve por sua esposa e companheira de toda uma vida – Dna. Elisa – com que teve oito filhos. Suas demonstrações de apreço por ela e agradecimento a Deus pela escolha que fez são notáveis, principalmente se levarmos em conta que o casamento foi, de acordo com os moldes da época, “arranjado”. Como chama a atenção, também, a religiosidade simples de “Seu Tião”: missa dominical, envolvimento nas ações da Igreja, uma legião de “afilhados”, uma devoção prática a um Deus provedor e justiceiro ao qual se dirige de cabeça baixa para aceitar, sem questionamento, a “pena” por Ele imposta a sua família através de José, seu filho, seminarista, acometido de lepra. Nada mais medieval.

Quanto não há para se escrever acerca desse País de Mossoró e seus habitantes!