domingo, 17 de novembro de 2024

O SERTÃO ESTÁ NO SERTANEJO

 

* Honório de Medeiros


"O Sertão está dentro da gente", disse João Guimarães Rosa. 

Pode ser. Quem sou eu, para discordar. Mesmo assim, discordo. 

O Sertão está dentro do sertanejo.

Que outro homem andaria em um carrasco igual a esse, cheio de pedras, mato ressequido, poeira, espaço de preás, mocós, punarés, lagartixas, cobras, urubus e cangaceiros, aqui e acolá um juazeiro, no pino do meio dia? 

Nenhum. 

Entretanto, quando chove, ah!, bom Deus, quando chove, qualquer vivente se encanta com a beleza que desponta em cada canto dessa terra maravilhosa. 

Não que a beleza se esconda quando a seca surge. 

É outro tipo de beleza, da qual somente se dá conta, com a melancolia que lhe é própria, o homem do Sertão.

 
Cerro, RN, 15 de novembro de 2024.
Imagem: Honório de Medeiros.
@honoriodemedeiros

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

LUZES NO CÉU ENTRE AS ESTRELAS


Imagem: Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

@honoriodemedeiros


Contemplo a água, os biguás e os cisnes da Lagoa de Cerro. Como veem, estou satisfeito esperando o por do sol. Lucas e Zé de Maria me garantiram que os sinais de inverno são bons. Eu tinha procurado meu Lunário Perpétuo, para tirar dúvidas, mas não o encontrei. Fiquei mais tranquilo depois da conversa com os meninos da Pousada. O fura-barreira está construindo seu ninho em lugar alto; o mandacaru florou; as aroeiras estão cheia de cachos e a quentura do fim de outubro, tudo promete, me disseram eles. Falta consultar Genilson e o pessoal do Receptivo.Sábado vou lá, puxar o tema. Vamos ver. Daqui a pouco vou subir a encosta até a casa que Deus me permitiu construir com a frente para o nascente, e as costas para o poente. Ivanaldo, o faz-tudo, vai me por a par dos últimos acontecimentos. Vida que segue. Tomara que de noite faça frio e eu veja luzes se deslocando no céu, entre as estrelas ...

Cerro Corá,  31 de outubro de 2024.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

PONTEAR UM ASSUNTO

 


Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros


 “Sente aqui”, me disse Seu Antônio de Luzia, segurando o braço de uma espreguiçadeira próxima a ele.

Era cedo da manhã, umas seis horas, a bem dizer, mas a passarinhada já tomara conta dos pés de caju no terreno em frente, do outro lado da rua de chão batido, no Feijão, Sítio Canto, Serra da Conceição, Sertão do Norte de Baixo.

“Já tomou café da manhã”? Respondi que sim, e agradeci.
“Traga uma caneca de café para o doutor, essa menina, sem açúcar. Foi coado agora?”

A neta, filha de João, fez carreira casa a dentro, largando o bordado com o qual se divertia sentada no chão, escorada na parede.

Enquanto a caneca não chegava às minhas mãos, cuidamos de pastorar os passantes que iam no rumo da cidade, ou dela vinham, e olhávamos o vai e vem dos canários e sabiás, sem dizer qualquer palavra.

Caneca na mão, café fumegante, tapioca recusada, Seu Antônio virou-se para mim e me perguntou: “Doutor, me responda uma coisa, o senhor que é um homem sabido, estudado e viajado, vai haver uma guerra grande?”

Fiquei surpreso. Conhecia Seu Antônio de muito tempo, e tínhamos uma amizade até certo ponto estreita, nos limites bem claros da antiga cultura arcaica sertaneja.

Homem calado, dado à introspecção, de pouca conversa, limitava-se, aqui e ali, a um dito, ou pequena história, para pontear um assunto, nunca o tinha visto agir dessa forma.

“Seu Antônio, não sei dizer. O Senhor, mais que ninguém, sabe que somente Deus conhece tudo, e eu sou um homem até certo ponto viajado, que já bateu algumas capas de livro, é certo, mas quanto mais vivo, tenho por mim mesmo que menos sei das coisas”.

“É, eu esperava que o Senhor dissesse isso mesmo. Agora, veja o Senhor: se os passarinhos estão voando baixo, as formigas assanhadas, se as pedras estão suadas, o mandacaru florando, é arriscado chover. Não é que vai ser, é que pode ser”.

Durante um fragmento de tempo me lembrei dos escritos do maior dos filósofos do século vinte, Karl Popper, que dizia o mesmo em sua epistemologia, para condenar o determinismo. “Meu Deus do Céu”, suspirei para mim mesmo.

“É verdade”, respondi. “O Senhor me pegou”. “Eu compreendo e admiro suas palavras, que são de sabedoria”. “Está conforme”. “O que eu posso dizer para o Senhor, sem medo de errar, é que eu nunca tinha visto um desmantelo tão grande quanto este que está tomando conta do mundo. Pode ter tido, mas eu não dou conta”.

“É como eu penso, Doutor. Parece o fim das eras. Pode não ser, mas é muita briga, muito ódio”. “Já me conformei”. “Vivi muitos invernos e secas, passei fome e hoje tenho umas coisinhas de nada, uns palmos de terra, andei légua tirana muitas vezes, conheci o coração do homem na sua maldade e bondade, mas tempos como estes, eu nunca vi”.

A conversa prosseguiu por muito tempo. Alguns passantes paravam, tomavam um gole de café mordendo um pedaço de rapadura, davam conta do que ocorria na cidade e no campo, arriscavam uma estória ou outra, formava-se um círculo de pessoas que se desfazia, depois outro, e mais outro, todos reverenciando Seu Antônio de Luzia.

De há muito as cadeiras tinham sido arrastadas para debaixo da cajaraneira frondosa, ao lado da casa, espécie de salão de visitas a ser usado quando o sol chegava forte.

Para o fim da manhã, mormaço se instalando, Seu Antônio me intimou a entrarmos, para pegarmos o feijão da comadre, misturado com arroz vermelho e um pouco de farofa d’água temperada com cheiro verde e cebola, acompanhado por um guisado de carneiro, e rebatido com um naco de rapadura e um copo d’água gelado, seguido por um gole de café coado na hora.

“A rede está armada”, disse Seu Antônio, e eu embioquei quarto a dentro, me deitei alisando o lençol cheirando a flor de laranjeira, cobri os olhos, mergulhei em um sono de meia hora, mais não podia ser, até sonhei que voava feito um beija-flor, mundo afora, e via os homens, mulheres e crianças, em todos os lugares, felizes, sem malquerença, mágoa ou tristeza em seus corações.

                   Deus há de nos proteger...

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A CORRIDA PARA O CINZA

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
 

O sertanejo nordestino raiz não é muito chegado a que lhe peçam favores. Faz parte de sua cultura que cada um cuide de si, pois Deus cuida de todos. 

Entretanto, gosta de ser solidário sem que lhe peçam, pois tal gesto nasce de uma decisão sua, depois de ponderação cuidadosa, na qual o passado do vivente é muito levado em conta.

É claro que isso está desaparecendo na torrente destrambelhada dos tempos:  o rio da vida e suas correntezas estão sendo amoldados pelo chicote castrador das modernidades tecnológicas, que desfaz o que tem substância, transformando-o em farinha rala.

Então é essa corrida para o cinza, onde tudo é igual, e quando aparece um vermelho, amarelo ou verde, com seus matizes, um avalanche de insipidez os desmancha e as cores vivas e belas desaparecem lentamente para que tudo afunde em ordem sem progresso.

Tudo isso me veio à cabeça dia desses, quando de visita ao Serrame do Sertão do Norte de Baixo, mais precisamente na Serra do Camará, lá no Sítio Feijão, quando de uma conversa desapegada, tipo miolo-de-quartinha, que rebentam em qualquer calçada onde tenha mais de um desocupado.

Pois Seu Antônio de Luzia saiu com uma daquelas que até os sabiás cantores,  dos cajueiros que ficam defronte, espiando a conversa, emudeceram. Não é exagero, não. Pode até ser que eles tenham calado o bico espantadas por seu Antônio ter falado.

Ele começou uma das suas raras conversas, no fim da tarde, quase na hora coalhada, dizendo assim: "Outrora..." Todo mundo parou para escutar, mas eu notei que João de Cota ficou mais cismarento que os outros. 

Depois do dito, quando saímos caminhando no rumo das ventas, que é como chamamos esse descambo para o centro, João de Cota me perguntou: "Homem de Deus, o que danado é esse 'outrora'" que Seu Antônio falou?

Fiquei macambuzio um pedaço. Como dizer para ele que essa palavra, mais que uma palavra, é uma era que estava desaparecendo? 

Uma era encoivarada por uma atualidade despida daquela magia que as coisas arcaicas possuem e exalam, como uma água-de-cheiro antiga, uma toada de viola perdida no ontem, o sabor de uma comida da nossa meninice, preparada na banha de porco, que se foi sem deixar rastro, o sorriso gaiato de uma bela mocinha que passa para a missa dominical sustentando um olhar e um meio sorriso a dizer tudo, sem prometer coisa alguma?

É difícil. Muito. Sei que respondi secamente: é o mesmo que "antigamente", ele até se assustou, e não é do meu feitio, mas eu estava mentindo, pois não era somente isso.

Tanto não era tal qual, que amanhã, um por de sol nunca vai ser igual àquele que eu via naquele instante, enquanto caminhava na roça, os sabiás cantando, a noite se indo, enquanto e uma ou outra estrela despontava, ainda tímida, e nos fazia companhia, a zombar de nossa ignorância...

Ô Deus, que saudade.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O ESTADO É UM NEGÓCIO


Imagem: Honório de Medeiros (Coimbra, 7 de dezembro de 2016)


* Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

@honoriodemedeiros


Pedro deve ter uns dezenove anos. Magro, magérrimo, seu corpo ossudo sobra dentro da farda do supermercado. Há sinais claros de subnutrição. No rosto espinhudo um sorriso nervoso aparece e desaparece sem conexão com o que ele diz: sorri quando fala sério, fica sério quando parece brincar com a própria desdita.

Pedro está noivo: quer casar logo, mas não pode. Pergunto-lhe se estuda. “Não tenho tempo”, diz. “Pego aqui às oito da manhã e só largo lá pras oito da noite, e, aí, tenho que pegar ônibus pra Zona Norte, do outro lado de Natal, é quase hora e meia de viagem, chego cansado, só penso em dormir, nem a noiva eu vejo”.

“Está comprando as coisas para o casamento?”, pergunto. “Nada!” “A gente recebe um cartão do supermercado quando entra no trabalho e vai comprando, comprando, lá pra casa mesmo, pros meus pais, e no final do mês quase não recebe nada em dinheiro.” Faz uma pausa e continua: “mas minha noiva tá procurando emprego”.

“Ela estuda?”, continuo. “Terminou o segundo grau, mas não foi em frente por que tem que ajudar em casa.” Pedro segue arrumando as mercadorias nas sacolas enquanto conversa comigo. Diz para mim que folga uma vez por semana, “às vezes”, já que quase sempre aparece um trabalho extra na empresa. E afirma enfático, que vai voltar a estudar, “é só as coisas melhorarem.”

Pedro não sabe, mas sua turma tende a aumentar cada dia mais. A lógica do capital predatório é essa. E anda cada dia mais sofisticada: nos círculos íntimos do Poder o Estado é tratado como “business”. Os termos usados pelos gestores públicos pertencem ao mais fino dialeto econômico/financeiro: é “destino econômico” para cá, “benefícios fiscais” para lá, “mercado interno” ali, “agenda de desenvolvimento” acolá.

É preciso “vender” o Estado, dizem eles. É preciso “captar” investidores, entoam. Pura lógica do capital predatório que amealhando corações e mentes desprevenidos ou ávidos, induz sua entrega à tarefa menos árdua e mais prazerosa de semear facilidades, mão-de-obra barata e grata e outros mimos ao custo óbvio de almoços, jantares, e viagens, para os predadores de fora e os vendilhões de dentro, loucos para espoliar mais uma caterva de ingênuos sob a batuta firme, comprometida e alienada da administração pública, salvo as exceções de praxe.

Vão se multiplicar, leio na imprensa, graças às injunções dos sábios conselheiros da Corte ante os maestros da economia brasileira, as empresas, Brasil afora. Elas vêm aí com o ansiado desenvolvimento econômico: lépidas e fagueiras, sem pagarem impostos, sem darem qualquer contrapartida para o resgate do atraso social, “mas gerando riqueza e empregos”, tal é a propaganda infernal dos publicitários chapa-branca.

Riqueza para os ricos e empregos-farsas para os Pedros da vida, as Taís da vida – garçonete noite-e-dia em um “fast-food” desses que pululam por aí, a esconder rápido, um dia desses, suas lágrimas derramadas pelo filho recém-nascido e doente deixado em mãos estranhas enquanto o emprego é defendido com unhas e dentes; os Josés da vida – empregado de uma indústria “captada” no Sul maravilha, imposto “zero”, contribuição nenhuma, – quase um escravo, tal sua jornada de trabalho.

E tudo continuará como sempre foi, desde que o mundo é mundo, por que essa história se repete há muito tempo, desde que o primeiro espertalhão cercou um lote de terra e disse que “era dele”.

Quem duvidar da história de Pedro, Taís, José, procure a Justiça do Trabalho. Leia os processos. Delicie-se com a expropriação da força de trabalho da nossa classe média mais baixa. Com a história daqueles que sustentam este arcabouço todo do Estado, reproduzindo, cada vez mais sofisticadamente, o modelo de exclusão social no qual vivemos.

Projete, a partir daí, o futuro de nossa “juventude cinzenta”, aquela que se contrapõe à “juventude dourada” – os filhos das elites. E esqueça os excluídos: esses sequer constam corretamente nas nossas estatísticas governamentais, a não ser muito por cima, como quando imaginamos quanto a economia marginal (a dos “bicos”), aquela à margem do Governo, produz dia-a-dia.

Enquanto isso, enquanto o Estado é apenas um instrumento de opressão, consequência de um longo surto atrasado e colonial de um capitalismo ingênuo e predatório – Pedro, Taís, e José não sabem, mas a cada momento aumenta o custo social que eles têm que pagar para sobreviverem nesta selva de pedra: não há políticas públicas, não há projetos sociais, não há ações governamentais planejadas, não há governo, enfim.

Portanto a eles e a seus filhos estão destinadas escolas decrépitas e sem professores; postos de saúde sem médicos e sem remédios; bairros e ruas com postos policiais abandonados, viaturas policiais inapropriadas, quebradas e sem gasolina; e a imensa massa de servidores públicos trabalhando como se estivessem em pleno século XIX, para gerar espoliação da mão de obra barata.

E como os Pedros, Taíses e Josés vicejam na lama obscura da alienação, terminam achando que plano de saúde, escola particular, automóvel, lazer, cerca elétrica, carro blindado, segurança privada é, pela ordem natural das coisas, algo ao qual somente os ricos têm acesso.

Seguem em frente a venderem seu suor, seu sangue, sua vida, a preço vil.

Ah, Jesus…


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

MELANCOLIA

Imagem: Honório de Medeiros

* Honorio de Medeiros
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@honoriodemedeiros

Não me pergunto acerca dessa melancolia, o cinza do dia-a-dia. Temo a morte da fantasia. Siga, digo para mim mesmo. Pegue o trem. Ou vá a pé. O caminho se faz ao caminhar, diz uma velha lenda. Não dou trela para meu outro eu, o homem sério. A intimidade geraria o desprezo.
Então aqui fico eu me importando, devaneando, e sou a melancolia, sou uma tarde de domingo, um adeus, aquele tango de Gardel, uma bolha de sabão levada pelo vento, um nicho no tempo, apenas uma ilusão, nada mais senão palavras ao vento...

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

CAOS, FRAGMENTAÇÃO, INSANIDADE

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
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De qualquer forma, somos perdedores. Em um mundo no qual o princípio basilar da razão, o da verdade objetiva, desmorona lentamente, substituído pelo relativismo das narrativas subjetivas, somente o permanente confronto, até mesmo físico, nele encontra guarida. Onde tudo pode ser, nada é; onde nada é, tudo pode ser. Se fôssemos minimamente sensato, aproveitaríamos o que nos aproxima e deixaríamos de lado o que nos afasta. Este é o ponto-de-partida para evitarmos o caos, a fragmentação, a insanidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

NADA, NADA DE NADA

 


IMAGEM: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros

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@honoriodemedeiros


Deslizo por sobre a superfície das coisas. Não sei nada, nada, de nada. O pouco que sei é inconsistente. Entretanto, enquanto me espanto com minha própria ignorância, fico perplexo com o conhecimento e poder dos outros. Há muita gente sabida mundo afora. Como sabem, eles! E eu, cá, tosco. Algumas pessoas, não muitas, trazem, esculpida no rosto, a tragédia de intuir, no outro, essa quimera da arrogância intelectual. Para elas, a quem foi dada a sensibilidade enquanto dom, a vida é apenas um lapso temporal. Entendem que não vale a pena qualquer tipo de arrogância e poder. E entendem, também, a solidão terrível dos que acham que sabem e podem e não percebem que por não saberem, verdadeiramente não podem...

É preciso muito pouco, às vezes, para sermos felizes. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

MINAS GERAIS


 * Honório de Medeiros

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E dou por encerrado esse registro de uma viagem pelas terras mineiras. E dou como garantido que perambulei pelo Sertão mineiro. Até em Cordisburgo, terra natal de Guimarães Rosa, estive. Coisa muita, benza Deus. Conheci a joalheria mais antiga do Brasil, em Diamantina, fundada em 1888, tangida por Seu Antônio, terceira geração de joalheiros - já está na quinta, dono de um sítio que contém um lago e várias cachoeiras. Passei a inveja-lo, mas ele não se comoveu. Em Minas, é assim. Com 84 anos, chamou-me para tomar uma "lapada" que eu, prudentemente, recusei. As duas outras imagens são "flagras" de um inocente em atividade: lendo um jornal local, mas influente, e subindo a Torre do Sino da Igreja São Pedro em Mariana, para ficar mais perto de Deus. Foi bom, foi bom demais, e Minas é um portento. Não vou nem lhes dizer das igrejas, das ladeiras, da comida, da história, do mineiro (bom que só pãozinho de queijo com café coado depois das ave-marias), e do Serrame do Espinhaço, que somente não é mais bonita que a Serra das Almas, lá para as bandas do Sertão da Ribeira do Norte de Baixo...

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

INVERNO


 Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
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Quem me disse que talvez houvesse inverno, foi Wallace Pereira, da Colina dos Flamboyants, em Cerro Corá. "O mandacaru florou", disse-me ele. "Ô felicidade", respondi. Pois é. Neste momento em que escrevo, no Colina, a chuva cai, ainda tímida, miúda, e se mistura com a terra seca, e seu cheiro toma conta de tudo, embriagador. O cio da terra...
Cerro Corá, 20 de novembro de 2023.


quarta-feira, 31 de julho de 2024

CONHECIMENTO

 


Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros

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@honoriodemedeiros

Imagine uma semente, o fruto de uma árvore que a gerou. Ela medra, se desenvolve, suas raízes mergulham no chão em busca de alimento, o tronco cresce, veem os galhos, ramos e folhas em busca do céu. Frutos virão. O ciclo continuará. 

Assim é o conhecimento. Não começa do nada. Antes de qualquer ideia - a semente - outras propiciaram seu surgimento. Suas raízes são buscas de comprovações, no passado, que darão suporte à sua existência, mergulhando fundo no conhecimento anterior.

Seus galhos, ramos e folhas desenvolvem-se rumo ao infinito. Os frutos são colhidos por todos nós.

Os frutos do conhecimento vão se transformar em outras árvores, e não há limite para o tamanho da floresta.

Em cada um de nós há uma floresta. Se nos dermos as mãos, deixarmos de lado o que nos separa, dia haverá que seremos Um que são Todos.

Natal, "Ventos Uivantes", 27 de novembro de 2023.

terça-feira, 30 de julho de 2024

O MAL

 * Honório de Medeiros

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@honoriodemedeiros


Alguns se comovem com criminosos aos quais a Justiça alcançou, alegando que "o meio" os fez assim. Esquecem que "o meio" também fez aqueles que superaram, à custa do próprio esforço, o chamado do mal. São com eles que devemos nos comover. Eles escolheram o caminho mais difícil e pouparam a nós, os inocentes, de sermos suas vítimas. Para eles, toda a minha admiração e homenagem. Na verdade, o mal é uma escolha.

domingo, 28 de julho de 2024

AMIZADE


* Honório de Medeiros
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Aquele amigo que se afasta, aquele velho amigo, com ele desaparece "a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam"(*). "All those moments will be lost in time, like tears in rain"(**).
* "Hereges", Leonardo Padura.
** O replicante Roy Batty, em "Blade Runner".

Natal, 5 de fevereiro de 2016.
Imagem por @michaellalima

sexta-feira, 26 de julho de 2024

CRISES


 Imagem: Honório de Medeiros

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Crises são portas que se abrem, às vezes de forma barulhenta. Movem o mundo e as pessoas. Tiram-nos do nosso conforto. Aguçam nosso corpo e mente. Precisamos, apenas, não sermos dominados. Ao contrário, devemos aprender com elas. Rever nossas prioridades. Às vezes tomarmos outros caminhos inesperados e desconhecidos. Lutarmos pela paz interior.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A VIDA COMO ELA É

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
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Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o literário “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar histórias abandonadas pela humanidade. 

Da mesma forma, por outro ângulo, na Barcelona gótica (Barri Gòtic), o “Cemitério dos Livros Esquecidos”, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón na bela tetralogia "A Sombra do Vento", arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade dos homens ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças. 

Também alberga essa missão a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em "Ficções", de 1944, que nos fala do mundo constituído por uma biblioteca sem fim, que abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis, e que somente o gênio do argentino foi capaz de nos persuadir de que sua existência é fictícia.

São histórias abandonadas tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton em "Nos Mínimos Detalhes": “Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas”.

É a vida, tal como é.

Barcelona, 19 de dezembro de 2014.
Reflexo, na água, do Templo Expiatório da Sagrada Família, obra de Antoni Gaudi.

terça-feira, 23 de julho de 2024

TODOS QUEREM O PODER

 

Imagem: Honório de Medeiros

*Honório de Medeiros
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Biguás. Predadores. Agem em grupo. Dois vão à frente espanando a água e conduzindo os peixes para a beira do açude, e o restante faz a colheita. Em seguida esses dois vão à forra. Alternam-se entre eles. Expulsam seus competidores primeiro alertando-os com um grito rouco, que lembra o ronco dos porcos. Depois atacam em revoada. Cisnes, galinhas d'água, marrecos, ficam com as sobras. Quando os bárbaros invadiram os domínios do império romano, agiram da mesma forma, lá pelo século V depois de Cristo. Lembrei-me de Konstantino Kaváfis e seu belo poema: "À Espera dos Bárbaros". Hoje em dia, são os consórcios de poder que assim agem, seja qual seja a cor de suas bandeiras. São diferentes entre si, mas iguais nos propósitos. Sempre foi assim.  Tal qual os Biguás, todos querem, mesmo, é tomar e manter o Poder.

Cerro Corá, 14 de fevereiro de 2024.

domingo, 21 de julho de 2024

Étienne de La Boétie

 

Étienne de La Boétie

* Honório de Medeiros

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Não há Governo. Há os que mandam e os que obedecem. O termo "Governo" oculta, sombreia a responsabilidade individual dos predadores políticos e sua ânsia de Poder. No final das contas, desde que o homem vaga pela Terra, tudo é uma questão de obter e manter o Poder, não importa qual seja a ideologia. Ou seja: os que querem o Poder anseiam impor suas ideias aos outros. Simples assim. Como se tivessem esse direito. Não o têm. Ninguém o tem. "Na ilusão de que estamos livres, fundamentam-se os três caminhos que nos levam à servidão: hábito, covardia e participação" ("O Discurso da Servidão Voluntária", Etienne de La Boétie).


sábado, 20 de julho de 2024

NEBLINA MIÚDA, GAROA

Imagem: Honório de Medeiros

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Cedo da manhã, umas cinco e pouco, afastei a cortina e sondei o céu. Neblina miúda. Lá para cima do mapa, chamam garoa. Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. Fiz um café forte, tomei uma talagada boa, troquei de roupa e tomei rumo, sorvendo aquela névoa que molhava tudo. A passarinhada voava rasante, cantando forte, lambendo o espelho d'água da Lagoa dos Flamboyants, chamando a atenção dos biguás que implicavam com as garças. Bicho do canto sinistro! Caminhei até a embocadura onde fica a pedra da mesa e, mais longe, uma soberba aroeira. Olhei para um lado, olhei para o outro, rezei um Padre Nosso, e resolvi subir mais um pouco. Podia ter lama, escorregão, cobra, aranha... Queria subir umas pedras majestosas no fundo do terreno, na aba da trilha para a Serra. Cheguei. Barulho de asas sustentando vôo. Uma coruja, linda, pousou mais além e ficou olhando desconfiada. Descobri sua toca, entre as pedras. Cumprimentei-a, respeitoso, e peguei a volta. "Ninguém se perde no caminho da volta", disse Zé Américo. Será?
Cerro Corá, 4 de abril de 2024.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

EU E OS GATOS; OS GATOS E EU

 

Imagem: Honório de Medeiros
* Honório de Medeiros
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Tratamos-nos com um certo desdém, um pelo outro.
Eles, porque estendem, a mim, o que sentem pela espécie humana, exceto quando querem algo específico.
Dizem que há exceções. Pode ser. Nunca conheci uma.
Eu, pelo meu lado, penso que percebo o caráter manipulador de cada um deles.
Posso estar enganado. Engano-me muito acerca das coisas. 
O certo é que, no final das contas, respeito a atitude blasé que eles esgrimem com rara habilidade. 
E, convenhamos, que são elegantes, lá isso são...
Natal, 7 de abril de 2024.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

UM SORRISO LINDO, FELIZ

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
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Subia eu a estradinha de barro do Sítio Feijão, na Serra do Camará, e ela vinha no sentido contrário, chutando a bola, pés descalços.

Era umas sete da manhã. Quando foi chegando perto, sorriu, um sorriso maravilhoso, feliz.

Eu parei, ela parou. Bom dia, bom dia. Vai jogar onde? Na casa de uma amiga. Sua casa é longe? Não. Já tomou café? Já. Lá tem para mim, eu tou com fome. Tem, vamos...

Ô meu Deus, meu coração ficou do tamanho de um rolimã...

Hoje, não. Você gosta de bolo? Gosto, bolo da moça.

Posso tirar uma foto sua? Pode.

Como é seu nome? Maria. Maria, sua casa é aquela, eu disse, apontando. É. Você tem bonecas? Só uma de pano. Pois até logo, eu já vou. Até.

E saiu correndo, chutando a bola, com aquela inocência maravilhosa dos puros de coração.

Nunca mais a vi.

Maria, onde está você? Estou lhe devendo um bolo e uma boneca...

Serra do Camará, muitos anos atrás.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

BALAIO DE GATOS


 Imagem: Honório de Medeiros
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Balaio de gatos.

Os três bem juntinhos, enrodilhados uns nos outros. O vigia observando.

Minha sombra se projeta por sobre a trilha, enquanto na margem esquerda, da mata que margeia o lago, escuto o deslocamento do gato Rei, que nunca aparece.

Já contei, lá, certa vez, treze. Dizem que vai a vinte ou mais.

Seu T me disse que tanto gato assim, liderados pelo gato Rei, sempre entre a água, de um lado, e o bosque de pedras do outro, com a estradinha no meio, tem a ver com a história dos três rapazes.

Eu vinha de um samba, contou ele, lá pelas três da manhã e, no mesmo canto vi, em sentido contrário, três rapazes vindo.

Não falavam nada, não vi seus rostos, só andavam. Roupa comum. Passei por eles, dei com a mão, olhei pelo retrovisor, olhei pelo outro, pelo vidro traseiro, e nada.

Tinham sumido. Parei o carro, desci, botei os olhos para tudo quanto era canto, e nada. Me arrepiei todo, me benzi, entrei no carro, o coração saindo pela goela, e disparei.

Você já tinha ouvido essa história, perguntei. Já, mas não  me lembrei, na hora. E o que mais me impressionou, depois, foi que eu não me lembrava do rosto deles.

Era como se eu não tivesse visto. E não vi.

Seu T não é homem de mentiras. Não que eu saiba.

Cerro, estrada dos flamboyants, 1 de maio de 2024.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

A PALAVRA É ARTE FUGIDIA, UMA ARMA


* Honório de Medeiros
@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros.blogspot.com

"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", disse Raduam Nassar em Cantigas d'amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).

Ariano, entrevistado pelo "Cadernos", em certo momento lembrou: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo".

Retruca o "Cadernos": "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada".

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. Montaigne e Boétié, por exemplo.

Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo, e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos.

A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.

Relendo "O Crime do Padre Amaro" do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário: 

- "Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma".

A palavra é uma arma.

Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante, nos tempos medievais. 

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo.

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos.

Natal, em 7 de março de 2015

Imagem por Honório de Medeiros, de poema anônimo, escrito em muro sacro.

sábado, 13 de julho de 2024

ARTISTAS DE RUA

 



Imagem: @michaellalima

* Honório de Medeiros
@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com


SOU fascinado por artistas de rua. Quando os vejo, paro um pouco distanciado e tento absorver tudo quanto posso deles e de sua arte, na medida em que os encontro em minhas andanças.

Na Europa, eles são muitos. Há desde o acordeonista que toca "La Violetera", uma "habanera" de 1915, tantas vezes escutada na voz de minha mãe, até a quase adolescente que canta, à capela, uma doce canção de sua terra natal, a Itália.

Estou escrevendo acerca das ruas centrais de Bordeaux ou da famosa Place de La Bourse, o palco de encontro de todos, viajantes ou não, que por aqui moram ou andam.

Aproximei-me do acordeonista lamentando não dispor do poder do personagem de uma história em quadrinhos de minha adolescência, que podia ler a vida de qualquer pessoa bastando, para tanto, mergulhar em seus olhos, se o desejasse.

Como não podia nada pessoal lhe perguntar, aqui é ofensivo, tampouco possuía qualquer poder, depositei algumas moedas em sua caneca estendida sobre um pano vermelho que já vira muitas estações, olhei seu rosto cansado, mal cuidado, atribui-lhe uns bons setenta e poucos, e lhe perguntei se por um acaso do destino não saberia tocar "La Violetera".

Ele parou, pareceu buscar alguma lembrança obscura em suas memórias, deu-me um pequeno sorriso e titubeando, no início, mas com desenvoltura, a seguir, inclusive fazendo floreios, digamos assim, jazzísticos, tocou a música que eu lhe pedira como se estivesse no palco do Grande Teatro de Bordeaux sendo ouvido por todos quanto, ao longo de sua longa vida, em algum momento pararam para ouvi-lo e aplaudi-lo.

Bourdeaux, França, 29 de maio de 2018.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

AINDA HÁ, DESDE A GUERRA CIVIL, BURACOS DE BALAS EM BARCELONA

 


Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com


Nas madrugadas de de dezembro em Barcelona, as largas calçadas acomodam o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados, bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impedem a passagem dos pedestres.

Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses meios de transporte quando chega a noite. Ele ri e me fala de uma cadeira em ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, na Mossoró comum, condenada à prisão para não ser furtada tão logo o dono lhe dê as costas.

"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a polícia em Barcelona.

O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me desculpe, eu não assisto, não quero assistir".

"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um homem muito mau, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. "Stálin era muito mau", repete, "very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe, fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito vinho, falo muito minha língua, e durmo".

Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo em frente ao "Palau de la Musica Catalana" onde tantos famosos se apresentaram, e de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro contando a história da Catalunha em espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em Catalão", e eu lhe disse que "infelizmente não lia Catalão", mas acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história escrito em espanhol acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.

É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo, fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela qual me apaixonei sem resistência,  foi uma verdadeira entrega, querendo parar em cada obra de arte encontrada em seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que executava uma sonata arcaica de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas que lhe cercava, e assim fui até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos terríveis da guerra civil. 

"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, "está vendo as marcas das balas nas paredes", "claro", disse eu, "pois perceba, alguns buracos são muito altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos eram amigos das vítimas". "Meu Deus, meu Deus", penso eu.

Ah, Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em Montserrat".

"É, eu sei", disse ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por Himmler, mas eles não encontraram nada". "Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse isso muito tempo atrás".

"Do que você gostou?", ela me perguntou, com aquele sotaque do interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos, pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição, nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da Catalunha com a Provença francesa..." 

Barcelona, 26 de dezembro de 2014.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A ARTE DE LAVAR LOUÇA

 


* Honório de Medeiros

@honoriodemedeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Antônio Gomes pousou a xícara de café no pires e me disse que "a arte de lavar louça pode ser mais complexa do que se imagina". 

"Primeiro, porque a forma como a lavamos diz muito a nosso respeito; segundo, porque se analisarmos a lavagem, em si, nosso método, descobrimos meios mais eficientes de fazermos qualquer coisa que queiramos fazer".

Ele me confessou que lava sua louça escutando uma playlist de sinfonias previamente montada. "As mais bonitas, em minha humilde opinião".

Depois dessa conversa, nunca mais lavei a louça como antes. Fico olhando desconfiado para aquela pilha de pratos e panelas e me perguntando o que ela quer me ensinar...

segunda-feira, 1 de julho de 2024

PARA D. ADÉLIA PRADO

 



D. Adélia Prado. Imagem: @jornalrascunho

* Honório de Medeiros

@honoriodemedeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


Madame, beijo suas mãos e me sinto honrado em partilhar este nosso quintal com a senhora.

Muito obrigado pela leveza, simplicidade, pureza dos seus versos lindos.

É tão bom partilhar o mundo com quem se emociona com a sinfonia da chuva tamborilando no chão! 

Assim como a senhora, "eu quero depois...eu quero o tempo inteiro" esse "viver de novo, a ressurreição", o pão compartilhado por todas as mãos.

Deus lhe abençoe. 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

O SERTÃO É ASSIM



Por Honório de Medeiros

Honório de Medeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

@honoriodemedeiros


O Sertão é assim: uma secura medonha, nuvens poucas no céu, o mato ralo e seco, um sol de lascar o cocuruto, preás, mocós e cascaveis correndo nas lajes, um ou outro gavião pairando lá em cima, voando rasante,  mas quando chega o por do sol, os sabiás e cabeças-vermelhas se recolhem, o rasga-mortalha se assanha, os juritis começam seu canto e os chocalhos do gado ecoam nos currais, vai chegando a hora da coalhada,  então uma melancolia suave se espalha pela imensidão, o vivente se esquece de tudo e uma certeza chega forte: ali é seu lugar, seu chão, sua pátria...

SÃO JOÃO NA SERRA DE SANTANA, CERRO CORÁ



Por Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros 
honoriodemedeiros@gmail.com

Cerro Corá, Serra de Santana, Colina dos Flamboyants, 22 de junho de 2024. Longe, ouço a Novena de São João Batista, na voz do pároco. Logo mais, o leilão, tradição sertaneja antiga, seguido de um forró pé de serra legítimo, com sanfona, zabumba e triângulo, enquanto o Galego da Serra prepara, em sua imensa tina, para todos verem, o queijo de manteiga que lhe rendeu premiação na França. Uma mesa, imensa, comportará mugunzá, canjica, pamonha, bolo preto, bolo da moça, pé de moleque, dadinhos de tapioca com geléia de pimenta e assim por diante, tudo arte de Jane Silva, incomparável. Celebraremos a amizade, os afetos, os laços de família: é o que esperamos, tudo sob a proteção de São João, a quem invocamos a benção, proteção, e a abertura dos caminhos que queremos percorrer. Saudade de meus filhos, tão longes, e de minha irmã...

quarta-feira, 19 de junho de 2024

SEU ANTÔNIO DE LUZIA

 


Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.


Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.

A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

terça-feira, 18 de junho de 2024

ABRIL É O MAIS CRUEL DOS MESES



* Honório de Medeiros.

Dia cinzento. Prédios cinzentos. Rue de Granelle.  Paris. Sigo por Saint-Germain-des-Prés-Prés, a passos hesitantes. Abril de 2009. É o mais cruel dos meses, disse Elliot em célebre poema. Talvez seja. Nasci em abril. Vou andando entre absorto e distraído. O pensamento voa, mergulha no passado distante. Sou adolescente, e, deitado na rede, livro de Dumas pousado no peito, sonho com uma Paris medieval, onde os mosqueteiros do rei defendem a rainha das astúcias ciumentas do cardeal Richelieu. Ah, Dumas. Percebo um mendigo. Não parece, não olha os passantes, não pede, mas a tigela pousada no papelão, à sua frente, não o nega. Seus olhos não desgrudam do livro, grosso e novo. Não consigo perceber o título. Deixo-lhe algumas moedas. Agradece, sem me olhar. Sigo em frente. Paris, Paris, onde andará esse mendigo, os mosqueteiros, a bela Ana de Áustria e o cardeal Richelieu?

quinta-feira, 13 de junho de 2024

PÈRE LACHAISE



* Honório de Medeiros

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém à vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. “Não, desculpem-me, não sei”. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.

Tento decifrar o mapa do cemitério para ir em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Caminho. É um alumbramento. Em cada canto, história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento. No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.

Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um deles. 

Mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, mas me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo. 

A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho e não vejo ninguém.

Sento em um banco às margens de uma das vias principais e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do presente e do passado: é plena madrugada, estou deitado de costas olhando para a torre da igreja do cemitério e para as estrelas logo acima; agora é a Mossoró da minha adolescência e infância, a Igreja é a de São Vicente, meus amigos de então conversam ao meu lado, mas ninguém dá por mim. Sou adolescente e adulto. Angústia.

Levanto-me e vou embora. A chuva molha meu rosto. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.