quarta-feira, 29 de outubro de 2025

ESTADO ALGOZ

 



* Honório de Medeiros


Enquanto passam os dias o Estado comprime e asfixia, lentamente, cada individualidade, cada singularidade, cada pessoa, ampliando os meios pelos quais existe e cresce.

O suor do nosso rosto, parte cada vez maior do nosso pão de cada dia, o resultado do nosso trabalho e esforço, por exemplo, é levado para seus cofres, e quase nada recebemos como retorno, sem que adiante reclamar.

Ouvidos moucos.

Tão certo quanto a morte, somente o pagamento dos tributos, dizia Benjamim Franklin.

Algum dia pagaremos pelo ar que respiramos. 

E cresce, como cresce, o Estado, em uma espiral ascendente sem fim.

Brotam ininterruptamente de suas entranhas legiões de policiais, auditores, fiscais, juízes, promotores, procuradores, guardas de trânsito, guardas municipais, guardas penitenciários, guardas florestais, guardas ferroviários, guardas de portos, militares, agentes administrativos, tesoureiros, assessores, assessores dos assessores, barnabés de todo tipo e modelo.

O Estado comprime, esmaga, esmerilha, prende, sufoca, ameaça, reprime, mata, manipula, tortura, asfixia, bate, vigia...

Um pesadelo!


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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

PAU DOS FERROS

 

Fonte: Wikipedia

* Honório de Medeiros (Originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte de nº 97).


Quando os europeus chegaram no Rio Grande do Norte, lá por 1500, encontraram a grande nação tupi-guarani no litoral representada pelos Potiguares, e, no Sertão, Cariris, que significa “os tristonhos, calados, silenciosos”[1], ramo do povo Tapuia. 

Diz uma lenda recolhida por missionários, conta-nos Tarcísio Medeiros, terem os Tapuias vindos de um lago encantado do setentrião continental, tal e qual sugeriu Capistrano de Abreu, descendo a costa e fixando-se no interior depois de acossados pelos tupis. 

Os Tapuia/Cariris estiveram em evidência durante a “guerra dos bárbaros”, iniciada com a resistência à penetração da pecuária que se adensara nas ribeiras dos rios, áreas essenciais à sobrevivência dos animais, mas também à dos índios, que durou sessenta e cinco anos (1685-1750), terminando com a completa vitória do homem branco.[2] 

No Sertão nordestino, especificamente no Sertão potiguar, existiram vários ramos dos Cariris, dentre eles os Pacajus ou Paiacus, habitantes de Portalegre, Francisco Dantas, Viçosa, Riacho da Cruz e Encanto, assim como os Panatis, habitantes de Pau dos Ferros, Encanto, Dr. Severiano, São Miguel e Rafael Fernandes.[3] 

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas, missionários, senhores de engenho de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio Grande, além de oficiais de alta patente que combateram os indígenas, passaram a disputar as terras do Sertão norte-rio-grandense.

Denise Matos Monteiro[4] nos relata uma dessas disputas entre grandes senhores de terras e escravos de Pernambuco e Bahia e colonos potiguares: 

Dentre os sesmeiros de outras capitanias interessados nas terras do Rio Grande, estava, por exemplo, Antônio da Rocha Pita, da Bahia, que através de quarenta dos seus vaqueiros tentou expulsar da ribeira do Assú colonos que lá procuravam estabelecer fazendas de gado. Objetivando atender às reclamações desses colonos, o rei de Portugal mandou demarcar e medir as terras desses sesmeiros em 1701. Anos mais tarde, em 1733, seus descendentes receberam uma larga faixa de terra que se estendia, dessa vez, entre os atuais municípios de Pau dos Ferros e São Miguel, na ribeira do Apodi.[5] 

É certo que a primeira sesmaria que se tem conhecimento, alusiva à região, foi requerida por Manoel Negrão em 1717, e dizia respeito ao lugar denominado “Podi dos Encantos”, presumindo-se que se trate da Data da Conceição.[6] Negrão declarava ser morador da ribeira do Apodi e ter descoberto o terreno em companhia de Domingos Borges de Abreu. 

Entretanto, foi somente em 1733 que a Data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi concedida a Luiz da Rocha Pita Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita, Dona Maria Joana Pita, todos filhos e herdeiros do Coronel Antônio da Rocha Pita.

Como lembra Câmara Cascudo, os “Rocha Pita” eram baianos e foram grandes latifundiários no Rio Grande do Norte. 

Manoel Jácome de Lima observou: 

Diz Ferreira Nobre que em 1733 Francisco Marçal fundou uma fazenda de gado no local em que se achava a vila. Em 1738, afirma o Monsenhor Francisco Severiano no seu livro "A Diocese na Paraíba", foi iniciada a construção de uma capela que em 1756 foi elevada à categoria de matriz com a criação da freguesia, a 19 de dezembro daquele ano.

Começava Pau dos Ferros. 

A paróquia de Pau dos Ferros é a mais antiga da zona Oeste do Estado e, na época, abrangia quase todo o território da atual Diocese de Mossoró. 

O nome da cidade surgiu quando do início do seu povoamento. José Edmilson de Holanda[7] assevera ter o nome da Fazenda de Francisco Marçal, fundada próxima a uma pequena lagoa, onde existia uma frondosa oiticica, repassado ao povoado: 

O nome inicial da fazenda passou ao povoado, pois desde a sua fundação era conhecida por Pau dos Ferros, em face dos vaqueiros gravarem, à ponta da faca, no tronco de frondosa oiticica existente à margem da lagoa, os ferros das reses tresmalhadas que por lá apareciam, com a finalidade de identificar o proprietário e a origem das mesmas. A oiticica servia de pouso para os comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas que por lá passavam. 

Em 1761 o município de Portalegre foi criado englobando o povoado de Pau dos Ferros mas, já no fim do século XVIII, a povoação era maior que sua sede e a cidade de Apodi. 

Em julho de 1841 os pau-ferrenses fizeram uma representação à Assembleia Provincial, assinada por 492 pessoas de todas as classes sociais, pedindo a criação do município. 

A Comissão de Estatística e Justiça, em parecer assinado por João Valentim Dantas Pinagé e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque, foi favorável ao pleito, mas na sessão do dia 4 de novembro de 1841 o requerimento não foi aprovado. 

Em 1847 o deputado provincial João Inácio de Loiola Barros apresentou um projeto transferindo a sede da Vila de Portalegre para a povoação de Pau dos Ferros, pedido também rejeitado. 

Seis anos depois, em 12 de abril de 1853, os deputados Luiz Gonzaga de Brito Guerra, futuro Barão de Assú, e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque (novamente), apresentaram um projeto para elevar a povoação de Pau dos Ferros ao status de Vila, com a denominação de Vila Cristina, tampouco lograram êxito. 

Finalmente, em 23 de agosto de 1856, projeto apresentado pelo Deputado Benvenuto Vicente Fialho, criando o município de Pau dos Ferros, foi aprovado, e em 4 de setembro de 1856 o Presidente da Província, Dr. Antônio Bernardo Passos, sancionou a Lei nº 344, elevando à categoria de Vila o povoado de Pau dos Ferros, determinando os limites do novo município. 

Hoje, Pau dos Ferros, com 259,959 km², limita-se, ao Norte, com São Francisco do Oeste e Francisco Dantas, ao Sul, com Rafael Fernandes e Marcelino Vieira, ao Leste, com Serrinha dos Pintos, Antônio Martins e Francisco Dantas e, ao Oeste, com Encanto e Ereré (CE).

É uma cidade com mais de 30.000 habitantes fixos, segundo dados do IBGE/2017, muito embora nela circulem, em decorrência de sua posição de Polo Regional, cerca de cinquenta mil pessoas por dia. 

Cidade pujante, centro comercial e administrativo da região, centraliza a prestação dos serviços estaduais e federais, e sedia a Escola de Enfermagem Catarina de Siena, a Faculdade do Oeste do Rio Grande do Norte, a Faculdade Evolução do Alto Oeste Potiguar, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Anhanguera Educacional, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 

Ressalte-se, do ponto de vista cultural, a importância de sua Feira Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar (FINECAP), realizada anualmente e congregando toda a região. 

Não por outra razão, a cidade também é conhecida como “Capital do Alto Oeste” e “Princesinha do Oeste”, embora muitos a chamem de “Terra dos Vaqueiros”, ou, ainda, “Terra da Imaculada Conceição”, em homenagem a sua santa padroeira. 

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[1] MEDEIROS, Tarcísio; “Proto-História do Rio Grande do Norte”; Rio de Janeiro: Presença Edições; Fundação José Augusto; 1985.

[2] LOPES, Fátima Martins: “Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte"; Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; 2003. 

[3] MEDEIROS FILHO, Olavo; “Índios do Açu e Seridó”; Natal: Sebo Vermelho; 2011. 

[4] MONTEIRO, Denise Mattos; “Introdução à História do Rio Grande do Norte”; Natal: Flor do Sal; 4ª edição; 2015. 

[5] Pág. 59.

[6] LIMA, Manoel Jácome de; in “Revista Comemorativa do Bicentenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros (1756-1856-1956)"; Natal: Sebo Vermelho; Edição Fac-similar; 2015. 

[7] HOLANDA, José Edmilson de; “Pau dos Ferros: Crônicas, Fatos e Pessoas”; Natal: Gráfica Vital; 2011.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

GUERRA ENTRE CORONÉIS: A ELEIÇÃO DE 1934-1935 NO RIO GRANDE DO NORTE

 


Mário Câmara, Interventor Federal no Rio Grande do Norte de 2 de agosto de 1933 a 27 de outubro de 1935


* Honório de Medeiros


Em uma avaliação muito pessoal, penso que a década de 20, no Rio Grande do Norte, acabou quando o Partido Popular elegeu o Governador do Estado após a vitoriosa campanha de 1934 -1935 e a aristocracia rural cedeu, assim, o Poder à burguesia mercantil/industrial que se instalava em terras potiguares.

Esse novo Brasil que surgia após a Revolução de 30 – hoje tão esquecida – e se consolidou na Era Vargas, mas cujo ideário “tenentista” pode ser rastreado até o Golpe de 1964, no Rio Grande do Norte encontrou, quando da redemocratização depois aviltada por Getúlio, uma estranha situação política configurada de forma radical no embate político partidário de 34/35: de um lado, liderado por Mário Câmara, união entre cafeístas, que poderiam ser posicionados à esquerda do espectro político, e coronéis do interior do Estado, proprietários de terras e criadores de gado, acostumados ao mando mais absoluto em seus redutos eleitorais; e, do outro, a burguesia mercantil e industrial cuja base maior, surgida a partir do cultivo e beneficiamento de algodão e exploração do sal, era o Oeste e Alto Oeste do Rio Grande do Norte, com epicentro em Mossoró e liderada pela família Fernandes, e o Seridó, grande plantador e fornecedor do denominado “ouro branco”, liderado pelo ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros.

Não por outra razão, concluído o pleito, foi eleito Governador do Estado, pela Assembleia Legislativa, Rafael Fernandes, líder político no Oeste e Alto Oeste, em detrimento de José Augusto.

É deprimente constatar a pouca literatura acerca desse período por demais importante da história do Rio Grande do Norte. Excetuando um ou outro opúsculo, desaparecido das vistas dos pesquisadores e somente encontrados, depois de muita luta, em sebos que como é sabido, primam pela desorganização e falta de higiene, três livros, apenas, bastante antagônicos entre si, jogam alguma luz sobre o período aludido: “A HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, de Edgar Barbosa; “VERTENTES”, autobiografia de João Maria Furtado; e “DO SINDICATO AO CATETE, autobiografia de Café Filho.

O primeiro, visceralmente ligado aos líderes do Partido Popular; o segundo, cafeísta histórico.

Aqui não cabe uma incursão na história dos anos vinte e trinta do Rio Grande do Norte. Não é essa a intenção. O que se pretende, é mostrar o contexto político de exacerbada violência vivida no Estado naquela época, na qual o coronelismo como conhecido, cuja erradicação era uma promessa de campanha da Revolução de 30, vivia seus últimos esgares.

Essa violência, não esqueçamos, na campanha política de 34-35, foi posterior à invasão de Mossoró por Lampião, fato ocorrido em 1927, mas com a qual guarda estranhas ligações.

Para se ter uma ideia, o livro de Edgar Barbosa começa com uma página na qual se lê seu oferecimento e indica fielmente o que há de vir pela frente:

À MEMÓRIA IMPERECÍVEL DOS SACRIFICADOS NA CAMPANHA DE CIVISMO E REDENÇÃO DO RIO GRANDE DO NORTE; A FRANCISCO PINTO, OTÁVIO LAMARTINE, MIGUEL BORGES, JOSÉ DE AQUINO, FRANCISCO BIANOR, MANOEL DOS SANTOS, LUÍS SOARES DE MACEDO E ADALBERTO RIBEIRO DE MELO; às vítimas da covardia dos cangaceiros, aos seviciados pela barbaria policial, a todos os que sofreram humilhações e injúrias, aos perseguidos, aos ameaçados, aos coagidos no seu trabalho e nos seus lares, aos que morreram com fome e sede de liberdade. Homenagem do Partido Popular.

Dentre os mencionados na homenagem chama a atenção o nome do Coronel Francisco Pinto, parente, compadre e correligionário político do Coronel Rodolpho Fernandes, a aquela altura já assassinado, e que escapara da morte – ainda hoje não se sabe como – quando da invasão de Apodi em 1927 pelo bando de Massilon([1]), assim como o de Otávio Lamartine, ninguém mais, ninguém menos que filho do ex-Governador, deposto pela Revolução de 30, Juvenal Lamartine.

Não se vai entrar nos meandros dos dois assassinatos. Entretanto é inegável que suas mortes somente aconteceram em decorrência da campanha política de 34-35.

Mesmo aqueles que se posicionaram em lados opostos ao abordar a questão se negariam a contradizer tal afirmação.

Outro fato que demonstra a exacerbada violência daqueles tempos é pungentemente narrada por Amâncio Leite em carta dirigida a Sandoval Wanderley, diretor de “O Jornal”, em Natal, aos 20 de janeiro de 1937, publicada em forma de opúsculo, depois, pela “Coleção Mossoroense”[2].

Nessa carta famosa, à época, Amâncio Leite, eleito deputado estadual pela situação([3]) na campanha de 34-35, protesta por sua prisão e a de seu colega Benedito Saldanha, acusados de “extremismo” e “comunistas”, acusação essa acatada pela Assembleia Legislativa do Estado em sessão do dia 10 de setembro de 1936 na qual todos os deputados do Partido Popular votaram a favor, tão logo chegaram ao Poder, em um claro revide aos seus adversários.

O coronel latifundiário Benedito Saldanha acusado de “comunista”. Ironia do destino...

A presença da violência, portanto, era algo comum na política daqueles anos. O homicídio em decorrência de disputas pelo Poder, também o era. Como negar esse fato se um pouco mais atrás, em 26 de julho de 1930, o assassinato de João Pessoa por João Dantas deflagara a Revolução de 30?

Muito embora João Dantas tenha morto João Pessoa em decorrência do aviltamento que sofrera com a publicação em jornal oficial de sua correspondência íntima com Anaíde Beiriz, é fato que isso somente ocorrera porque ambos eram fidagais inimigos políticos.

E da presença da violência ocasionada por disputas políticas não estava livre, naqueles anos 20, o Rio Grande do Norte.

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[1] Consta que as mesmas lideranças políticas que estavam por trás da invasão de Apodi em 1927 também o estavam em 1934, quando do assassinato do Coronel Chico Pinto.
[2] Série B, nº 768.
[3]Aliança Social, liderada por Mário Câmara.

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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O PODER E A RAZÃO ASTUTA

 



Jean Jacques Rousseau


* Honório de Medeiros



Um dos mitos fundantes da nossa concepção de Estado é a do contrato social. 

Por seu intermédio, cedemos nossa liberdade absoluta ao Estado para que sejamos impedidos de nos destruirmos uns aos outros.

Tal noção, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias de Leontini, como podemos ler na Política, de Aristóteles (cap. III):

De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, "uma garantia mútua de direitos", incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.

Muito embora um estudioso "outsider" do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da "Teoria do Contrato Social" está na conversa imaginária de Sócrates com as "Leis de Atenas" relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese "Licofronte" estar correta.

É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

"Bellum omnium contra omnes", guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta, diz-nos Hobbes no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social - e não houver a criação de um artefato – o Estado –, assegurando-se, assim, a sobrevivência dos homens quando estiverem em contato uns com os outros, pois haverá a submissão da vontade de todos à vontade de um só ou de um grupo, e esta, ou estes, atuará em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz comum.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após John Locke, que se firmou o mito fundante do contrato social, bem como a ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje, influenciando diretamente a Revolução Americana e a Francesa. 

Em O Contrato Social, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual surge o Estado, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça.

O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que este, existente enquanto tal por intermédio do contrato social detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do "Contrato Social", que emanam do povo, assim as vê Rousseau: são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – esta, frise-se mais uma vez, surgida graças ao "Contrato Social" e detentora da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o Curso de Direito Constitucional, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros.

Às páginas 37, lê-se:

Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, parágrafo único do seu artigo 1º:

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Há algo de estranho, portanto, na doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no Supremo Tribunal Federal.

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo Tribunal Federal em sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição, conforme pregação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao Estado de São Paulo, e a atividade judicante de meramente preencher uma “possível” lacuna legal ou mudar o sentido de uma norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença, baseando-se em princípios difusos e indeterminados da Constituição Federal, estratégia empregada na Itália, Alemanha e pelo próprio STF.

Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos, diz o Ministro Gilmar Mendes.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração a doutrina exposta acima, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional?

 Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

Em que se basearia, qual seria o fulcro dessa atividade de invasão da competência do legislativo ao se criar normas jurídicas através de sentenças, ou modificar o sentido de outras por meio de interpretações?

Seria, como deixa transparecer o presidente do STF em suas entrevistas, por que a Constituição Federal tem um “espírito” e somente os integrantes daquela Casa, em última instância, conseguem enxergá-lo em sua essência última?

Que espírito é esse? O mesmo ao qual se refere São Paulo: a letra mata, o espírito vivifica?

Autoritário, tal argumento.

Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do mito platônico das formas e ideias cuja contemplação seria privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder.

Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia a serviço de uma estratégia de Poder, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no comando, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o certo e o errado, o bom e o mal, o justo e o injusto.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, porque unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia.

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, nos moldes dos profetas bíblicos e em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora submetidos ao autoritarismo dos ativistas judiciais lá encastelados.
 

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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

TUDO É IGUAL DE MANEIRA DIFERENTE

 

A Pedra da Boca

* Honório de Medeiros         


No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, derreados por sobre a cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde.

Sertão.

A mão esquerda controla a nobre cabeça do animal. A direita, terminando no dedo indicador esticado, os quartos, o "motor". Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no crepúsculo. Ouvem-se as cigarras. Os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar deixando seu registro sonoro.

Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco no qual um idoso "sensei" de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado por todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles. Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios e gritos?

"Uma questão de sinergia", disse-me ele, depois, quando já era noite. "A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados."

Percebo, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. Algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, é o fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

As sequências começam. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, aquelas mesmas onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. As imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real.

O Claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos seus olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe uma leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens...

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de "Go Rin No Sho", o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura...

Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há. Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a mesma estratégia para combater dez mil.

Entretanto, essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada. O nada...

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Myiamoto Musashi, ele me dissera: "tudo é igual, de maneira diferente..."

Então nos dispersamos. Dias singulares, aqueles. Cada um de nós percebeu de forma muito diferente a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf? Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessas "maneiras diferentes" de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã seria um outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam.

É hora de ouvir estrelas, o vento, o sussurro das árvores, o canto da suindara ou, quem sabe, da mãe da lua...

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.


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Texto extraído de "De Uma Longa e Áspera Caminhada", do autor, Editora Viseu, 2022.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

OS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO OESTE E ALTO OESTE DO RIO GRANDE DO NORTE

 


Maria Gomes, esposa de Matias Fernandes Ribeiro


* Honório de Medeiros


I MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, A RAIZ.

 

                   É certo que Mathias Fernandes Ribeiro, nascido pela década de 50 do século XVIII, era filho de um casal pernambucano de Goiana, Pernambuco, Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda.

Podemos ler, em Memorial de Família, o seguinte:

Quem consultar o Livro de Registro de Batizados da Paróquia de Missão Velha, Estado do Ceará, que abrange o período de 1748-1764 encontrará, nas folhas 3v. a referência seguinte: "Francisco da Costa Passos, de Goiana, marido de Violante Martins, de idêntica procedência".[1]

 Depois residentes na antiga freguesia de São João Batista da Vila de Princesa, hoje cidade de Açu-RN, Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda deixaram ali numerosa descendência. A sua importância, para este artigo, advém do fato de terem sido os pais de Anna Martins de Lacerda e Mathias Fernandes Ribeiro, cernes da árvore genealógica aqui exposta.[2]

Anna Martins de Lacerda casou-se com o "marinheiro" (nome que, à época, se atribuía aos portugueses) José Pinto de Queiróz, da Serrinha, localizada nas cercanias de Martins-RN, hoje município de Serrinha dos Pintos.

No Cartório do Registro Civil de Portalegre-RN, encontra-se o inventário, datado de 1781, assinado pela viúva do patriarca da Serrinha, falecido em 25 de novembro de 1780, bem como o de Anna Martins de Lacerda, cujo óbito ocorreu 1805.




                   Também é certo que Mathias Fernandes Ribeiro foi casado com Maria Gomes de Oliveira, de quem ficou viúvo com onze (11) filhos: 1. João Silvestre de Oliveira; 2. Antônio Fernandes Ribeiro (casado com uma filha de Domingos Jorge de Queiróz e Sá); 3. José Martins de Oliveira; 4. Francisco Xavier da Silveira; 5. Mathias Gomes Brasil; 6. Cypriano Gomes da Silveira; 7. Maria José do Sacramento (casada com o Coronel Agostinho Pinto de Queiróz); 8. Catharina Gomes (casada com Bento José de Bessa); 9. Ana Martins de Lacerda (casada com o Capitão Mor Alexandre Moreira Pinto); 10. Clara Gomes da Silveira (casada com o Tenente José Lopes de Queiróz), todos legítimos, além de 11. Joana Gomes da Silveira (casada com João Francisco Sampaio), filha natural com Maria da Conceição.[4]

 


Maria Gomes de Oliveira Martins casou-se com Mathias Fernandes Ribeiro

                   O casamento originou os Fernandes de Queiróz; Fernandes de Oliveira; Fernandes Ribeiro; Fernandes Moreira; Fernandes Bessa; Fernandes Lopes; radicados em Pau dos Ferros; Martins; Mossoró; Natal; Ceará; Paraíba e alguns estados do Sul.

Entrelaçaram-se com os Moreira Pinto; Moreira da Silveira e Gomes da Silveira, radicados em Tenente Ananias, Sousa, Cajazeiras, Uiraúna, São João do Rio do Peixe e Ceará; os Claudino Fernandes e Correia de Queiroga, radicados em Luiz Gomes, Tenente Ananias, Cajazeiras, João Pessoa (Paraíba) e Terezina (Piauí); os Vieira da Silva, Vieira Coelho e Fernandes Vieira, radicados em Tenente Ananias, Uiraúna e Sousa (ambas na Paraíba); os Fernandes Maia, Fernandes Rosado Maia, e assim por diante.[6]

                   Mathias Fernandes Ribeiro foi um dos homens mais ricos do seu tempo. Seu inventário foi concluído em 1830, ano do seu falecimento, e relacionou como sendo de sua propriedade, além de escravos, ouro, gado e prataria, as propriedades “Cruz D’Alma”, “Curral Velho”, “Saco”, “Santiago”, “Saco Grande”, “Passarinho”, “Passagem de Onça”, “Gurjão”, “Arapuá”, “Coito” e “Estrela”, dentre outras.

                   Elencou setenta e dois devedores, que lhe deviam um total de quase R$ 27.000.000,00 (vinte e sete milhões de reais) todos relacionados em seu inventário, registrando um total de sessenta e um conto de réis como monte-mor, ou seja, aproximadamente R$ 61.000.000,00 (sessenta e um milhões de reais) em valores de hoje.

Uma fortuna imensa, mesmo para os padrões atuais.[7]

Registre-se que o inventário esteve desaparecido misteriosamente.

Calazans Fernandes comentou que a última vez em que foi visto, estava nas mãos do Major Antônio Fernandes da Silveira Queiróz, o “Major do Exu”, um dos senhores da Serrinha dos Pintos, no ano de sua morte, em 1865.[8] O “Major” era filho de Domingos Jorge de Queiróz e Sá e neto de José Pinto de Queiróz e Anna Martins de Lacerda.

                   Em Genealogia e Fatos do Sertão do Norte de Baixo, Luiz Fernando Pereira de Melo nos dá conta da descoberta do inventário há tanto tempo desaparecido:

                   (...) realizei nova busca na Cidade de Martins, e fui aquinhoado com a descoberta do inventário que se supunha desaparecido, encontrando em seus autos, elucidando todas as controvérsias, um testamento ditado pelo próprio Mathias...[9]

Em nota ao texto, Melo acrescenta que teve acesso ao inventário de Mathias Fernandes Ribeiro “com a ajuda valiosa do pesquisador martinense Júnior Marcelino”.



[1] FERNANDES, João Bosco. Memorial de Família. Terezina: HALLEY/AS-Gráfica e Editora. 1994. MACEDO, Joaryvar. Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto. 1985. MELO, Luiz Fernando Pereira de. Barra Bonita: Ler e Saber Gráfica e Editora. 2021.

[2] FERNANDES, João Bosco. O.a.c.

[3] Idem.

[4] MELO, Luiz Fernando Pereira de. O.a.c.

[5] FERNANDES, Calazans. O Guerreiro do Yaco. Natal: Fundação José Augusto. 2002.

[6] FERNANDES, João Bosco. O.a.c.

[7] MELO, Luiz Fernando Pereira de. O.a.c. 

[8] Morte do “Major do Exu”. FERNANDES, Calazans. O.a.c.

[9] MELO, Luiz Fernando Pereira de.


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sábado, 11 de outubro de 2025

ESTAMOS CONDENADOS?

 



Honório de Medeiros

 
De Um Cigano Fazendeiro do Ar, densa biografia de Rubem Braga que devemos a Marco Antônio de Carvalho, colho um trecho da carta que João Neves enviou a Borges de Medeiros em 20 de julho de 1932, na qual ele se refere a Getúlio Vargas, todos companheiros muito próximos na Revolução de Outubro de 1930:

Eu preferia que o Dr. Getúlio Vargas fosse um tirano. Perdôo mais os violentos que os astutos. Mas o nosso ditador é um homem gelado, calculista, escorregadio. Não ataca, desliza. Não enfrenta, corrompe. Não congrega, divide. (...) Desbaratou o poder civil. Desmoralizou o Exército. Aniquilou o sentimento local. Amesquinhou a justiça. Instituiu o regime da delação. Oficializou a vingança contra os que o ajudaram a subir. Esqueceu os compromissos. O favoritismo é uma instituição. A negociata é a regra. Enfim, a República Nova com dois anos de idade incompletos, é mais corrupta do que foi a Velha, com mais de quarenta e um.

Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx, no primeiro parágrafo, afirma que a história acontece “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Assim como a terceira, a quarta, a quinta...

Desde o início da história do Homem, até os dias de hoje, mudaram os artefatos: antes, as ferramentas de pedra; hoje, a internet. Não parece ter mudado o Homem.
Percebe-se isso claramente com a leitura de A Assustadora História da Maldade, de Oliver Thomson; Prestígio Editorial, trágica compilação.

História antiga, essa da maldade. Em Thomson, lemos:

O Egito foi unificado por Menés por volta de 3100 a.c. Talvez o primeiro herói conquistador da história (e mesmo ele era semimítico) tenha sido Horus Ro, do Egito, cujo filho era conhecido como "O Escorpião", príncipe que explorou o medo em grande escala para impor sua vontade. Fundou a Iª Dinastia por volta de 3000 a.C. Em honra às suas vitórias, fez sacrifícios humanos a Ra, o deus do Sol. Seu herdeiro, Horus, supostamente matou 381 prisioneiros de guerra e arrancou a língua de 142. Esse é o primeiro registro de um imperialismo sádico e egocêntrico que reaparece de tempos em tempos nos próximos 5 mil anos.

Antigos demais, tais fatos, para que chamem nossa atenção? Leiamos novamente o último parágrafo do texto acima. Agora, leiamos o texto abaixo, do do pensador da modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman, pinçado de Isto Não É Um Diário:

As nações relutam em aprender; e, quando o fazem, é sobretudo a partir de seus erros e equívocos passados, do funeral de suas antigas fantasias. Enquanto o Pentágono rebatiza a Operação Liberdade no Iraque de Operação Nova Aurora, diz Frank Rich, citando o professor Andrew Bacevich, de Boston, "nome que sugere creme para a pele ou detergente líquido", 60% dos americanos creem – agora – que a Guerra do Iraque foi um engano, mais 10% a condenam como algo que não vale a vida dos americanos, e apenas um em cada quatro acredita que essa guerra o tenha tornado mais seguro em relação ao terrorismo. O custo oficial da guerra para os americanos é hoje (no momento em que o presidente Obama pede aos americanos que "virem a página sobre o Iraque", estimado em US$ 750 bilhões. Por esse dinheiro, cerca de 4.500 americanos e mais de 100 mil iraquianos foram mortos, e pelo menos 2 milhões de iraquianos foram forçados a se exilar, enquanto o Irã acelerou seu programa nuclear, e "Osama bin Laden e seus fanáticos" foram liberados "para se reagrupar no Afeganistão e no Paquistão".

De lá para hoje, o que mudou? Se mudou, não foi para pior?

Estamos condenados?

Que lhes parece?


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Arte: rabiscosdeumlapisdesgastado.blogspot.com

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DE PAI E MÃE, OS MEUS


 Francisco Honório de Medeiros e Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros


* Honório de Medeiros

 

Para Elza Sena, onde estiver.


Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto.

Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos. Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta.

Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se.

Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre eles, falando. Tinham longas conversas em silêncio.

Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, disse-me.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, em Mossoró, era minha mãe.

Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado. Engoli meu choro.

Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês.

Entretanto, nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios. Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai.

Terá sido ele feliz? Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença.

Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, verdes, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desde há muito desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe, acredito e pronto. Ponto final.

Sigo Blaise Pascal: em crer, mal não há.

Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda inglesa de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilhava a viola.

Deo gratias, laeti simus.


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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

ARIANO SUASSUNA E A ARISTOCRACIA PELO ESPÍRITO

 

Ariano Suassuna


* Honório de Medeiros


Muito interessante a apresentação que Ariano Suassuna fez da obra de um seu parente, Raimundo Suassuna, acerca da genealogia da família que lhes deu o sobrenome. Trata-se de Uma Estirpe Sertaneja Genealógica da Família Suassuna (A União; 1993; João Pessoa).

Ariano, a quem Raimundo Suassuna pedira que fizesse uma apresentação "simpática", de seu livro, praticamente escreveu um ensaio no qual abordou dois temas que me chamaram a atenção: seu orgulho por ser um "Suassuna"; e o seu conceito de "aristocracia". 

É preciso que se diga que o orgulho de Ariano com o fato de pertencer a essa lendária família nordestina é decorrente da intensa, profunda, ligação que ela tem com nosso Sertão. 

Por outro lado, Ariano entende que existe uma aristocracia pelo espírito, que é profundamente diferente daquela resultante de títulos nobiliárquicos. 

Ele estabelece essa diferença confrontando o "homem", com o "cortesão".

Quanto ao cortesão, chega a manifestar, implicitamente, um verdadeiro asco dos títulos comprados, recebidos por favores prestados através de subserviência, barganhados, ou oriundos de qualquer outra forma utilizada por serviçais do Poder que caracterizam, em última instância, o comportamento dos alpinistas sociais. 

A verdadeira aristocracia, para Ariano, é aquela adquirida pelo espírito. Essa nobiliarquia é decorrente de uma postura moral ilibada, aliada a um exponencial senso de honra e vocação pública. Aristocrata, então, seriam Albert Schweitzer, Gandhi, Albert Sabin, entre outros.

Titãs morais, verdadeiros cavaleiros da távola redonda, homens sem mácula e sem medo, sempre à disposição dos injustiçados ou a serviço de causas mais que nobres.

Individualidades poderosas, que se recusaram ser conduzidas, cooptadas, amordaçadas.

Não aceitam ser a folha que o rio leva para o mar; muito antes, pelo contrário, assemelham-se às represas que domam a marcha das águas.

Essa aristocracia pelo espírito de Ariano é fecundada, em termos ideológicos, por um socialismo que lembra o cristianismo primitivo em sua perspectiva ética.

É como se o grande escritor acreditasse que a verdadeira revolução seria aquela promovida através da encampação da dignidade como único fulcro da conduta humana, legitimando-a.

Percebe-se, em seu pensamento, um contraponto dialético à ética burguesa que exposta a olho nu, por suas contradições básicas, mostra a conduta humana amesquinhada por obra e graça da lógica do capitalismo. Esse burguês, caricato, cortesão, jamais diria: "ao Rei tudo, menos a honra", mas, sim, "à elite tudo, mesmo a dignidade".

Eis, pois, uma crítica ética ao capitalismo. A busca do lucro, revestida pelo fetiche ideológico da "competição", da "livre concorrência", amesquinharia o homem que aceita participar de tal jogo.

Um aristocrata pelo espírito, cuja conduta é calcada na honra, no senso de justiça pública, recusa-se a aceitar uma competição cujo resultado final seja a obtenção de um ideal tal como, por exemplo, a mera obtenção do lucro.

Talvez haja algo de quixotesco na dimensão humana de Ariano Suassuna. É interessante, entretanto, observar o quanto sua concepção filosófica, nesse aspecto, aproxima-o de Saint-Exupèry, aristocrata pelo espírito e por genealogia, e seus escritos reunidos em Cidadela, livro póstumo.

E, por outra, aproxima-o, também, do "bushido", o caminho do samurai. Perceba-se que Yukio Mishima, em seu comentário acerca do Hagakure, um manual de conduta escrito por um samurai, para samurais, critica asperamente os nobres por ele chamados de "aristocratas de contas de despesas". 

Ou seja, tanto para Ariano, quanto para Saint-Exupèry e Mishima, o Homem, assim considerado, é aquele que transcendeu o apequenamento, o amesquinhamento pessoal, e se tornou um aristocrata pelo espírito.

Aristocrata pelo Espírito: não considerei correto o título "aristocrata do espírito". Difícil dizer por quê. Penso que "aristocrata pelo espírito" expressa com maior clareza a idéia de uma nobreza espiritual - tudo aquilo que caracteriza o humano, como a ética, incluindo, inclusive, o seu pendor místico. 


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