sexta-feira, 30 de novembro de 2018

NEGAR O HUMANO QUE HÁ EM NÓS

* Honório de Medeiros

Lidar com as pessoas exclusivamente a partir do seu filtro ideológico é pobreza de espírito. Ideologia é um conjunto de valores que cada um construiu para si. Valores são relativos. Uma ideologia imposta é a negação do humano que há em nós. Persuadir, convencer, sim, impor, nunca. Negar o humano é próprio do pensamento totalitário, seja de esquerda ou direita, e contra tudo quanto a humanidade construiu de relevante ao longo do processo civilizatório.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

UMA HISTÓRIA MARAVILHOSA DA ÉPOCA DOS CORONÉIS

De Laurence Nóbrega, grande amigo meu e do famoso escritor Florentino Vereda, recebi o bilhete abaixo:

"Mando anexo um arquivo em word, com a transcrição que fiz, de uma história contada por Trajano Pires da Nóbrega, no seu estudo da genealogia da família Nóbrega, da qual eu sou um dos menos ilustres membros.

Trata-se da fuga da filha do Capitão Justino Alves da Nóbrega, mais conhecido como Cap. Justino da Salamandra, o mesmo que atacou a cidade de Santa Luzia e libertou o primo Liberato Cavalcanti de Carvalho Nóbrega, preso injustamente por inimigos políticos. Não sei se este é o cangaceiro a quem você se referiu na nossa conversa recente. Caso queira pesquisar mais a respeito dele, consulte as “fotocópias” que lhe enviei ou, se preferir, diretamente no livro de Trajano.

Um bom fim de semana.

Laurence

"Sunila" 

“Ouvi a seguinte história acerca do casamento de Marcionila Bezerra da Nóbrega (Sunila), com Braz Cavalcante, que me foi narrada por Severino Duarte Pinheiro, neto do seu irmão Martinho Alves da Nóbrega. “Marcionila, filha do Cap. Justino Alves da Nóbrega, ou Cap. Justino da Salamandra, chefe do Partido Conservador em Santa Luzia, tinha o gênio forte e voluntarioso como o do pai. Foi pedida em casamento por Brás Cavalcante, rapaz de Sapé que andou em Santa Luzia, pedido que, apesar de ser do seu agrado, foi definitivamente repelido pelo pai. Não se conformando com esta recusa, a moça deliberou fugir, o que chegou ao conhecimento do pai, que logo decretou a sentença de morte da filha, caso pusesse em prática o seu plano de fuga. Nada intimidou a moça, que, seguindo o hábito paterno, usava constantemente pistola e punhal ocultos na própria roupa. 

Sentindo que a filha seria capaz de realizar o seu plano, o Cap. Justino passou a manter constante e ativa vigilância. Como que de propósito, a casa só tinha duas aberturas acessíveis à moça, uma porta e uma janela, esta no oitão da casa. Intensificando a vigilância, o velho admitiu um auxiliar, que era um rapaz de confiança, que sempre mantinha em uma casa na fazenda, à frente da casa grande. Enquanto, à noite, o velho dormia perto da porta, o rapaz dormia perto da janela. 

Não havia outra saída. 

Em uma noite, porém, de grossa invernada com forte trovoada, coincidiu que o rapaz auxiliar da vigilância faltou; mas o velho dobrou o cuidado. A moça, que mantinha secreta correspondência com o noivo, tinha assentado fugir na primeira noite de tempestade que houvesse. Aquela seria a tal. 

Da sala de jantar, ficou observando, ocultamente, os menores movimentos do pai. Viu-o deitar-se, mas sempre atento à chuva. A certa hora o velho levantou-se o foi abrir a porta para olhar a chuva do alpendre. Compreendendo o gesto paterno, a filha a filha abriu a janela no mesmo instante em que o velho abriu a porta, de modo a confundir os dois em um só ruído. E deu certo. O pai não percebeu que a janela tinha sido aberta e que, por ela, sem perder um instante sequer, a moça se passara para fora, saindo para a chuva e a escuridão, não tardando a encontrar-se com o noivo, que a aguardava a pequena distância, com o cavalo de prontidão. Correram até a vila de Santa Luzia, onde chegaram alta madrugada, procurando abrigo na casa de residência do chefe político do Partido Liberal, adversário e inimigo do Cap. Justino. Aí foram guardados, trancados em um quarto, de modo a não serem pressentidos por ninguém, pois o velho Justino era geralmente temido. 

Ao amanhecer o dia, o Cap. Justino foi surpreendido com a realidade. A filha tinha fugido, realizando o plano que tentava frustrar com tanto empenho. E a revolta, na sua alma voluntariosa, que não admitia tal indisciplina, principalmente por uma filha, não teve limite. Determinou imediata perseguição ao casal de fugitivos, até encontrar para matar ambos, sangrados ou fuzilados. Convocou, no mesmo instante, todos os seus homens, e deu ordens severíssimas para saírem em perseguição ao casal, até encontrar e matar. Mas a chuva grossa da noite havia desfeito todos os rastros. Não era possível descobrir o rumo seguido pelos fugitivos. 

Mandou, então, gente em todas as direções; mas nada de notícias, ninguém vira os fugitivos nem deles tivera notícias. Parecia que a terra os havia engolido. 

Depois do terceiro dia, continuando as indagações e as ameaças, cada vez mais terríveis, o chefe da casa que lhes havia dado guarida, temeu pela segurança dos seus e pediu ao rapaz que se retirasse com a moça. Aguardaram a noite e fugiram a cavalo, por volta da meia noite. Tomaram rumo ignorado, o que foi fácil porque ninguém suspeitava que os fugitivos permaneciam em Santa Luzia. 

Cerca de um mês depois chegou a primeira notícia da filha; sem se denunciar onde permanecia oculta, mandou pedir ao pai autorização para casar-se, o que era indispensável na época. Não só recusou o pedido, como intensificou a perseguição, embora sempre improfícua, pela impossibilidade de ser localizado o casal fugitivo. 

Em face desta intransigência do velho pai, a moça passou a fazer vida marital com o noivo, mesmo sem o casamente, o que tinha evitado até aquele dia, com o seu rigoroso senso de honra. Houve diversos filhos desta situação. A perseguição, ou melhor, a ideia de perseguição continuou sem esmorecimento ao longo de 12 anos de vida que ainda teve o Cap. Justino Alves da Nóbrega. Sentindo a proximidade da morte, deixou ao filho mais velho, Martinho, a incumbência de manter a perseguição, por toda a vida. Mas, de ânimo moderado, Martinho Alves da Nóbrega, logo que o velho pai havia desaparecido, relaxou a recomendação, combinando em que a irmã se casasse como desejava. 

O casal veio a residir nas proximidades dos irmãos, perto da Salamandra, da Malhada do Umbuzeiro, da Noruéga, que eram as principais propriedades da família, herdadas do rancoroso pai. Viveram muitos anos. D. Marcionila, já viúva, ainda era viva até há poucos anos, tendo falecido depois de 1950”.

'A FAMÍLIA NÓBREGA' 

Autor: Trajano Pìres da Nóbrega 

1ª edição: 1956 

Pgs. 578 a 580"