sábado, 2 de fevereiro de 2019

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A ELEIÇÃO DE 1934-1935 NO RIO GRANDE DO NORTE


* Honório de Medeiros        

Em uma avaliação muito pessoal penso que a década de 20, no Rio Grande do Norte, acabou quando o Partido Popular elegeu o Governador do Estado após a vitoriosa campanha de 1934-1935 e a aristocracia rural cedeu, assim, o Poder à burguesia mercantil/industrial que se instalava em terras potiguares. 

Esse novo Brasil que surgia após a Revolução de 30 – hoje tão esquecida – e se consolidou na Era Vargas, mas cujo ideário “tenentista” pode ser rastreado até o Golpe de 1964, no Rio Grande do Norte encontrou, quando da redemocratização depois aviltada por Getúlio, uma estranha situação política configurada de forma radical no embate político partidário de 34/35: de um lado, liderado por Mário Câmara, união entre cafeístas, que poderiam ser posicionados à esquerda do espectro político, e coronéis do interior do Estado, proprietários de terras e criadores de gado, acostumados ao mando mais absoluto em seus redutos eleitorais; e, do outro, a burguesia mercantil e industrial cuja base maior, surgida a partir do cultivo e beneficiamento de algodão e exploração do sal, era o Oeste e Alto Oeste do Rio Grande do Norte, com epicentro em Mossoró e liderada pela família Fernandes, e o Seridó, grande plantador e fornecedor do denominado “ouro branco”, liderado pelo ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros. 

Não por outra razão, concluído o pleito, foi eleito Governador do Estado, pela Assembleia Legislativa, Rafael Fernandes, líder político no Oeste e Alto Oeste, em detrimento de José Augusto. 

É deprimente constatar a pouca literatura acerca desse período por demais importante da história do Rio Grande do Norte. Excetuando um ou outro opúsculo, desaparecido das vistas dos pesquisadores e somente encontrados, depois de muita luta, em sebos que como é sabido, primam pela desorganização e falta de higiene, três livros, apenas, bastante antagônicos entre si, jogam alguma luz sobre o período aludido: “A HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, de Edgar Barbosa; “VERTENTES”, autobiografia de João Maria Furtado; e “DO SINDICATO AO CATETE, autobiografia de Café Filho. O primeiro, visceralmente ligado aos líderes do Partido Popular; o segundo, cafeísta histórico. 

Aqui não cabe uma incursão na história dos anos vinte e trinta do Rio Grande do Norte. Não é essa a intenção. O que se pretende, aqui, é mostrar o contexto político de exacerbada violência vivida no Estado naquela época, na qual o coronelismo como conhecido, cuja erradicação era uma promessa de campanha da Revolução de 30, vivia seus últimos esgares.

Essa violência, não esqueçamos, na campanha política de 34-35, foi posterior à invasão de Mossoró por Lampião, fato ocorrido em 1927. 

Para se ter uma ideia, o livro de Edgar Barbosa começa com uma página na qual se lê seu oferecimento e indica fielmente o que há de vir pela frente: 

À MEMÓRIA IMPERECÍVEL DOS SACRIFICADOS NA CAMPANHA DE CIVISMO E REDENÇÃO DO RIO GRANDE DO NORTE; A FRANCISCO PINTO, OTÁVIO LAMARTINE, MIGUEL BORGES, JOSÉ DE AQUINO, FRANCISCO BIANOR, MANOEL DOS SANTOS, LUÍS SOARES DE MACEDO E ADALBERTO RIBEIRO DE MELO; às vítimas da covardia dos cangaceiros, aos seviciados pela barbaria policial, a todos os que sofreram humilhações e injúrias, aos perseguidos, aos ameaçados, aos coagidos no seu trabalho e nos seus lares, aos que morreram com fome e sede de liberdade. Homenagem do Partido Popular. 

Dentre os mencionados na homenagem chama a atenção o nome do Coronel Francisco Pinto, parente, compadre e correligionário político do Coronel Rodolpho Fernandes, a aquela altura já assassinado, e que escapara da morte – ainda hoje não se sabe como – quando da invasão de Apodi em 1927 pelo bando de Massilon([1]), e Otávio Lamartine, ninguém mais, ninguém menos que filho do ex-Governador, deposto pela Revolução de 30, Juvenal Lamartine. 

Não se vai entrar nos meandros dos dois assassinatos. Entretanto é inegável que suas mortes somente aconteceram em decorrência da campanha política de 34-35. 

Mesmo aqueles que se posicionaram em lados opostos ao abordar a questão se negariam a contradizer essa afirmação. 

Outro fato que demonstra a exacerbada violência daqueles tempos é pungentemente narrada por Amâncio Leite em carta dirigida a Sandoval Wanderley, diretor de “O Jornal”, em Natal, aos 20 de janeiro de 1937, publicada em forma de opúsculo pela “Coleção Mossoroense”[2]

Nessa carta famosa, à época, Amâncio Leite, eleito deputado estadual pela situação([3]) na campanha de 34-35, protesta por sua prisão e a de seu colega Benedito Saldanha, acusados de “extremismo” e “comunistas”, acusação essa acatada pela Assembleia Legislativa do Estado em sessão do dia 10 de setembro de 1936 na qual todos os deputados do Partido Popular votaram pelo acatamento, em um claro revide aos seus adversários, tão logo chegaram ao Poder. 

O coronel latifundiário Benedito Saldanha acusado de “comunista”. Ironia do destino... 

A presença da violência, portanto, era algo comum na política daqueles anos. O homicídio em decorrência de disputas pelo Poder, também o era. Como negar esse fato se um pouco mais atrás, em 26 de julho de 1930, o assassinato de João Pessoa por João Dantas deflagara a Revolução de 30? 

Muito embora João Dantas tenha morto João Pessoa em decorrência do aviltamento que sofrera com a publicação em jornal oficial de sua correspondência íntima com Anaíde Beiriz, é fato que isso somente ocorrera porque ambos eram fidagais inimigos políticos. 

E da presença da violência ocasionada por disputas políticas não estava livre, naqueles anos 20, o Rio Grande do Norte.

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[1] Consta que as mesmas lideranças políticas que estavam por trás da invasão de Apodi em 1927 também o estavam em 1934, quando do assassinato do Coronel Chico Pinto.

[2] Série B, nº 768.

[3]Aliança Social, liderada por Mário Câmara. 

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

EXERCÍCIO DO PODER

* Honório de Medeiros

Salvo raríssimas e honrosas exceções, todos no exercício do Poder são iguais. Alguns ainda mais que outros.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A ESTRANHA PEREIRO

* Honório de Medeiros

No pequeno cemitério localizado no centro da cidade – o antigo – de Pereiro, cidade duas vezes secular que se estende ao comprido e preguiçosamente entre serras, passeei entre os túmulos, as árvores e as flores com sua guardiã, Dona Maria, procurando o jazigo perpétuo de Décio Hollanda, aquele mesmo que quis tomar Apodi, no Rio Grande do Norte, pelas armas, através da valentia de Massilon, no final dos anos 20 do século passado. 

Ela aponta os túmulos dos Hollanda: “são três; aqueles dois lá e este aqui, mas eu não sei quem é essa pessoa que o senhor está procurando”. 

Voltamos para a entrada naquele caminhar desconexo de quem anda nos cemitérios antigos de cidades pequenas, tomando cuidado para não pisar em algum montículo inesperado que guarde os restos mortais de alguém. 

Eu lhe elogio a limpeza, a arborização, as flores do cemitério. “Obrigada”, diz. “Já faz vinte e cinco anos que estou aqui. Antes de mim era uma senhora com quem aprendi tudo e que também passou vinte e cinco anos.” 

“É muito tempo”, falo quase que para mim mesmo. “Para eles, não”, responde, fazendo um arco amplo com o braço e envolvendo toda a área do cemitério. 

Dona Maria é baixinha, moreno-clara, entroncada. Sexagenária, eu diria. Muito limpa e bem arrumada, nela não há sinal de desmazelo. Os cabelos não guardam qualquer fio branco. Seria pintura? Não, observo de perto. Filhos, netos, todos foram criados através do seu labor contínuo e obscuro entres velas, flores frescas ou murchas e os túmulos de seus conterrâneos. 

“Qual o fato mais estranho que a senhora presenciou neste cemitério?” Ela para. Não hesita ao responder. Talvez a mesma história já tenha sido contada muitas vezes. 

“Uma viúva” – começa, esboçando um olhar distante, “que chega sempre toda de preto para rezar naquele túmulo muito antigo encostado à parede. Ninguém sabe de quem ele é. O tempo já apagou, há muito, suas inscrições. Não temos qualquer documento a respeito. Eu mesma já pesquisei. Ela somente aparece quando não tem ninguém, além de mim, no cemitério. Passa por mim, eu dou bom dia ou boa tarde, respondido com um aceno de cabeça que intimida a gente, vai até o túmulo e reza em pé mesmo. Aí sempre acontece alguma coisa que me distrai e quando olho novamente ela já não está presente.” 

“Alguém mais a viu?” 

“Não, somente eu.” 

Chegamos à entrada. “Espere”, diz. Desaparece por trás de algumas árvores e volta logo depois com uma flor branca entre os dedos. “Tome, é para o senhor”. “Ah, um bogari (jasminumsambac)!” “O senhor conhece?” “Era a flor predileta de minha mãe”. 

Eu agradeço, tocado. Ela nota a minha emoção. Vou me afastando, a flor próxima ao nariz, linda, pura, perfumada. Depois, no mesmo dia, eu a ofereci à Castelã da Casa-Grande da Fazenda Trigueiro, onde Frei Damião procedeu ao ritual exorcista próprio para afastar almas penadas, mas isso é outra história... 

Do final do século XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, diz-nos Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”. 

Peço à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, dará uma noção do tamanho da janela – bem maior que a cozinheira, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Quase o dobro. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais. 

Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida da Suíça na época da construção. 

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem por que, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos. 

“Naquela época”, diz-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia ‘Campo Santo’ (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.”. 

Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, é uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. E o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios”... 

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis?”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, digo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.” 

“Frei Damião esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.” 

“Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado acima. “Ficou tudo resolvido?”, pergunto. “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio, era o canto mais limpo.” 

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da “Fazenda Trigueiro”. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda “Sabe Muito”, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, salvo engano. Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela, tronco ancestral da família Fernandes do Rio Grande do Norte, que se espraiou pelo Alto Oeste, em um sentido, Mossoró, depois Natal, em outro. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

DE VELHICE

* Honório de Medeiros

Dia desses olhei para você e me vi. Um reflexo do outro recortado em cores contra o escuro. Cores que esmaecem, tingidas de prata. Sépia. Como passaram rápidas os dias e as horas! Abismo de tempo, vidas que fluíram. Agora somos silêncio, quase. Ponte para um infinito. Agora nos compreendemos.