quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

"ATÉ QUE TUDO CESSE, NÓS NÃO CESSAREMOS"

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Em 1979, entrei no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 

Vinha do Curso de Matemática, pois, a mim, faltara vocação. 

Ainda estávamos em plena ditadura militar. Críticas ao Governo eram feitas com muito receio. Não fazia muito tempo que a repressão implicava em tortura e desaparecimento. 

No Planalto, o Presidente João Figueiredo iria substituir Ernesto Geisel e continuar a “abertura política lenta e gradual”, timidamente iniciada por seu antecessor, sob a batuta do General Golbery do Couto e Silva. 

O Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, do Curso de Direito, cujo grito de guerra era “até que tudo cesse, nós não cessaremos” fora extinto em anos anteriores, assim como todos os outros, substituídos por Diretórios Acadêmicos que representavam cada Centro Universitário. 

A razão era óbvia: era muito mais fácil os órgãos de repressão controlarem diretórios acadêmicos, em bem menor número, que centros acadêmicos, um por cada curso existente na Universidade. 

Nos corredores do curso um grupo de estudantes, do qual eu fazia parte, se reunia habitualmente para discutir política, principalmente a participação no processo de democratização que se desenrolava à conta-gotas Brasil adentro, e livros, muitos livros. 

Tínhamos em comum o hábito da leitura, o amor pela discussão, o interesse pela política. 

Em certo momento, logo no começo do curso, resolvemos dar um passo além: refundarmos o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, de tantas e gloriosas tradições. 

Realizamos duas notáveis Assembleias Extraordinárias para as quais todos os alunos do curso de Direito foram convidados e compareceram em massa. 

Contávamos, também, com a simpatia de alguns poucos professores do curso, principalmente o Professor Jales Costa, de saudosa memória pelo exemplo, cultura e empatia com seus alunos. 

Aprovada a proposta por unanimidade, ressurgiu, então, o Centro Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu primeiro presidente, eleito pela última Assembleia, foi João Hélder Dantas Cavalcanti. Tive a honra de ser o segundo, dessa vez com disputa eleitoral. 

O Centro Acadêmico protagonizaria momentos impressionantes, logo após seu retorno às atividades: fizemos o primeiro debate, no Brasil, nos estertores da ditadura, entre candidatos a Governador do Estado, em pleno auditório da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cedido, para nosso espanto, pelo Reitor à época, professor Diógenes da Cunha Lima, justiça lhe seja feita. 

O evento foi noticiado pela grande imprensa brasileira. Em noite memorável, Aluízio Alves e José Agripino Maia debateram, sob a mediação do Professor Jales Costa, acerca dos destinos políticos do Brasil e do Rio Grande do Norte naquela que seria a primeira eleição direta para Governador do Estado após 1964. 

Aqui ressalvo a conduta do então Prefeito de Natal, por eleição indireta, José Agripino Maia. Eu e João Helder fomos a sua residência para convidá-lo. Sabíamos que toda seu “entourage” era contra sua ida ao debate. 

Fizemos o convite, ponderando acerca de quão ruim seria para sua imagem as fotos de sua cadeira vazia em pleno auditório lotado, bem como quão ruim seria para a democracia que estava ressurgindo sua negativa em participar. 

Jussier Santos, um dos seus secretários municipais, fez uso da palavra se colocando contra a participação de José Agripino, alegando que toda a plateia presente seria, com certeza, claque de Aluísio Alves. 

José Agripino, entretanto, não hesitou e confirmou sua presença. Ponto para ele, nós e a democracia. 

Não paramos. Dias depois colocamos para debater entre si, sob minha mediação, os dois candidatos principais, no mesmo pleito, ao Senado da República pelo Rio Grande do Norte: Roberto Furtado, pela oposição, e Carlos Alberto de Souza, pela situação. 

Carlos Alberto levou uma claque disciplinada para aplaudi-lo, liderada por Eri Varela, um seu assessor. A noite foi tumultuada, mas tudo terminou acontecendo da melhor forma possível. 

Continuando o exercício de ousadia, realizamos vários encontros nos quais foi discutida abertamente, com a presença maciça de estudantes e professores, a relação entre marxismo e Direito. 

Para um desses debates foi convidado, especialmente, o ex-Governador Cortez Pereira, naquele momento ainda cassado em seus direitos políticos. Cortez Pereira uma vez me disse que tinha sido sua primeira manifestação pública desde a cassação! 

Por fim, e não menos importante, fizemos também o primeiro debate, no Brasil, entre os candidatos a Reitor à sucessão do Professor Diógenes da Cunha Lima, mesmo que o pleito viesse a ser, como de fato o foi realizado de forma indireta. Todos concorrentes compareceram. Lá estiveram Pedro Simões, Dalton Melo, Jales Costa, Genibaldo Barros e Lauro Bezerra. 

Resgato essas lembranças graças sob o impacto das manifestações que estão ocorrendo no Brasil e que, segundo minha avaliação, são muito importantes politicamente. Desejo ardentemente que o povo enseje as mudanças que o Brasil precisa, principalmente no que diz respeito ao combate feroz e determinado contra a corrupção. 

E tendo resgatado essas lembranças aproveito para homenagear meus companheiros de luta daquela época: João Hélder Dantas Cavalcanti, Evandro Borges e Rossana Sudário, em nome dos quais abraço todos quanto estiveram conosco naquelas gloriosas manhãs na sala F1 do Setor V, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, gritando, juntos, felizes, ansiosos para mudar o Brasil, “até que tudo cesse, nós não cessaremos”.

domingo, 10 de janeiro de 2021

CANGAÇO: POR QUE LAMPIÃO INVADIU MOSSORÓ (UM MISTÉRIO QUASE CENTENÁRIO, CAPÍTULO I)

Texto original no livro História de Cangaceiros e Coronéis, do autor

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 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Em dias do início do mês de junho do ano da graça de 1927, pelas terras do Rio Grande do Norte que confrontam com as da Paraíba, lá no alto Sertão desses estados, mais precisamente aquelas que ficam entre as cidades de Uiraúna, PB, e Luis Gomes, RN, vindos de Aurora, no Ceará, da Região do Cariri Novos de Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, os cangaceiros, entraram no território potiguar. 

Era uma horda selvagem com aproximadamente cinquenta a setenta homens, para o mais ou para menos, imundos e bestiais, a cavalo, fortemente armados, portando rifles, fuzis, revólveres, pistolas, punhais longos e curtos, e farta munição. Vinham ébrios, ferozes, e sedentos de violência, sem qualquer outro propósito – assim supõe o senso comum - que não a rapinagem, pura e simples. 

E assim entraram. 

Durante os oitocentos quilômetros e quatro dias que durou a epopeia, saindo e voltando à Aurora, Ceará, após alcançarem Mossoró, desenharam, com a ponta dos cascos dos cavalos ou a face externa das alpargatas com as quais pisavam o chão potiguar, como que um movimento em pinça cujos contornos lembram o de uma flor de mofumbo, sendo as laterais as margens da Serra de Luis Gomes e do Martins, por um lado, e, pelo outro, aquelas do serrame do Pereiro, limites com o Jaguaribe, Ceará adentro. 

Espalharam o terror por onde passaram. 

Humilharam, surraram, feriram, extorquiram, sequestraram, furtaram, roubaram, mataram... 

Em toda a história do cangaço, complexa e específica por si mesma, nada há igual. Mesmo quanto à história do banditismo rural universal o feito chama a atenção. 

Não foi um ataque qualquer a um arruado, vila ou povoação. Nem mesmo a uma cidade pequena. 

Foi um ataque a uma cidade de grande porte para os padrões da época, bem dizer litorânea, a segunda maior do Rio Grande do Norte, com quatro igrejas, três jornais, agência do Banco do Brasil, população que rivalizava com a da capital do Estado, um comércio rico e pujante, funcionando como centro para o qual convergiam paraibanos, norte-rio-grandenses e cearenses, e, por intermédio do porto de Areia Branca, ao qual se chegava pelo Rio Mossoró ou Apodi, caso necessário, o Brasil todo. 

Mossoró não acreditava que tal ataque pudesse se concretizar. O Governo do Estado do Rio Grande do Norte também não. Era inconcebível. O Brasil, representado por sua capital, o Rio de Janeiro, quedou perplexo. 

Tanto anos depois seria possível acrescentar algo novo quanto às causas que levaram Lampião a empreender esse ataque?

De antemão, que se diga: não é consenso haver mistério quanto às causas do ataque de Lampião a Mossoró. 

Ao contrário. Excetuando-se algumas vozes isoladas aqui e ali, faladas aos sussurros em Mossoró e outros recantos desse mundaréu de Deus Nosso Senhor, é prática corrente atribuir-se à ganância de Lampião, Isaías Arruda e Massilon – este com papel secundário, a existência do episódio ([1]). 

Entretanto, ao estudarmos com atenção redobrada, até mesmo com obstinação, o acervo do qual dispõem os pesquisadores atualmente, constatamos a existência de dúvidas, perplexidades, contradições, mistérios que insistem em aparecer desafiando o passar dos anos e a natural inércia originada das versões consumadas pelo tempo e descuido dos homens. 

Levando-se em consideração essas questões, após tê-las colhido e estudado, assim é que, a seguir, dando-lhes um tratamento mais racional e factual possível, buscando a isenção necessária à qual se deve ater quem busca encontrar a melhor explicação entre várias concorrentes – tal é o método que nos impõe a ciência, são elas elencadas, analisadas e colocadas à disposição do leitor, para que este possa fazer seu próprio julgamento ou, se não for o caso, meramente ser colocado a par de suas existências. 

Há, portanto, e basicamente, quatro hipóteses acerca das causas do ataque de Lampião a Mossoró: 

(i) teria resultado da ganância do Coronel Isaías Arruda e de Lampião, no que foram secundados por Massilon; 

(ii) resultou unicamente da ganância de Massilon; 

(iii) foi consequência da paixão de Massilon por Julieta, filha de Rodolpho Fernandes; 

(iv) decorreu de um plano político. 

Qual dessas hipóteses é a verdadeira? 

O tempo dirá?

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[1] Notável exceção é o pesquisador Marcos Pinto, voz solitária e tonitruante, autor de DATAS E NOTAS PARA A HISTÓRIA DE APODY, natural de Apodi, RN, e integrante da
Academia Apodiense de Letras-AAPOL, mas residente há muitos anos em Mossoró.