sexta-feira, 16 de julho de 2021

VOA, MINHA PASSARINHA, VOA...

 

By @diogomizael

* Honório de Medeiros    

Quando nossa filha finalmente chegou em Montreal com o esposo e seus poucos vinte e três anos, depois de uma longa e cansativa viagem, lá a esperava seu irmão, hoje praticamente cidadão canadense.

Mas não foi possível abraça-lo, até mesmo vê-lo. Cumprindo as regras impostas para o combate contra a pandemia, primeiro foi confinada, por três dias, em um hotel determinado pelo Governo.

Exame de saúde feito, resultado favorável, mudou-se para o apartamento do irmão, que o desocupara, para novo período de confinamento, dessa vez por doze dias.

Impossibilitados de se abraçarem, conversarem, o irmão não hesitou: combinaram postarem-se defronte à janela do apartamento, um dentro e o outro fora, ela afastou a cortina, sorriu, acenaram um para o outro, beijos foram enviados, e o instante foi registrado.

Muito foi dito ali naquele momento, sem uma palavra sequer, e a escrita não consegue expressar!

Se isso não é amor, eu não sei o que isso é.

Voa, minha passarinha, voa...

* O irmão escreveu, abaixo da imagem:
They say:
There is always behind a window
You just need to open it
And I can't wait for that
Love u sis.

domingo, 11 de julho de 2021

DIÁRIO DE VIAGEM: CABACEIRAS, PARAÍBA.

* Honório de Medeiros   

Um templo no meio do nada que é um tudo       

Seu Neco é um herói.

Em 2007, quando tinha quarenta e dois anos, durante mais de cinco horas, madrugada de um sábado para o domingo, precisamente das três às oito e meia da manhã, em Puxinanã, na Paraíba, sozinho, de joelhos, travou uma luta desesperada para não morrer.

Enquanto lutava, ia rezando incontáveis terços, fumando um cigarro após o outro, lembrando-se da família e tapando o buraco do braço arrancado por uma esteira de distribuir ração para galinhas, de onde o sangue vertia feito água de chuva forte, aguardando a chegada de alguém para lhe socorrer.

Manhã alta, chegou o homem que apanhava os ovos postos pelas galinhas, e acionou o corpo de bombeiros.

A máquina levou parte do seu braço. A gangrena, fruto perverso da ração que impedira a saída do sangue, e também lhe envenenou, depois comeu o resto no hospital, mas não dobrou seu espírito. Nem quando saiu do lugar do acidente, entregou os pontos: os bombeiros quiseram leva-lo em uma maca e ele se recusou; foi a pé, segurando o coto.

Depois, começou uma luta medonha que lhe feriu o espírito, tanto quanto o corpo fatigado: obter seus direitos, receber uma indenização, aposentar-se. Foi uma saga inenarrável, misto de desprezo e injustiça.

Quando a narrativa chegou ao fim, ambos estamos soturnos. Pousei o caderno de notas e a caneta. Lá fora, a tarde caia. Ouvi o canto da Seriema longe, bem longe. Eu, por querer assimilar a história em todos seus desdobramentos; ele, por perder-se em recordações ainda bastante dolorosas.

Nosso silêncio foi rompido com uma frase dita muito mais para si, do que para mim, de cabeça baixa, lentamente: “era as galinhas comendo a ração, e a máquina comendo meu braço...”

Estamos em Cabaceiras, no meio do nada, como diziam os antigos das bandas do litoral, onde ficavam as cidades grandes, quando se referiam à Região, ou do tudo, esse infinito delimitado que é o Sertão nordestino profundo, ainda arcaico, no coração dos Cariris Velhos, Paraíba, terra de gente que, em sua maioria, descende de antigos e heroicos homens e mulheres que a desbravaram na época do ciclo do couro.

Aqui, preponderam os carrascais, matacões, algarobas, facheiros, juremas, uma ou outra quixabeira, canafístulas, mussambês, angicos, pinhões, muito xique-xique, palmatória, mandacaru, e ainda reinam, no chão pedregoso, a seriema, o mocó, a jararaca, e, quem sabe, uma ou outra rara onça perdida. Um bioma único, inigualável.

No céu, quase sempre limpo de nuvens, de dia voam os urubus, e os gaviões-de-pé-de-serra, secundados pela passarinhada canora; de noite, voam as rasga-mortalhas amedrontadoras anunciando que, em algum lugar, alguém foi prestar contas de sua vida terrena a São Pedro.

Quando escurece, um mar de estrelas agasalha a terra ressequida e seu povo bom, simpático e educado, pleno daquela gentileza sertaneja nordestina que os tempos atuais parece considerar insultuosa ou mesmo um sinal de fraqueza, quando na verdade é resquício de uma educação fidalga muito antiga, que veio de além-mar.

Até onde a vista alcança, mato e serrotes se estendem à nossa frente pontilhados por uma única ilha destoante, o pequeno e solitário templo religioso que faz contraponto à capela consagrada a São Bento, localizada no extremo oposto do nosso campo visual e construída para esconjurar uma peste de cobras peçonhentas que assolou a região em tempos passados.

A capela consagrada à São Bento

Quando perguntei à zeladora da capela se surtira efeito o ato de devoção, ela respondeu que sim, “as cobras que rastejam foram embora, entretanto ficaram as que tinham pernas, muito mais perigosas...”

Antônio Silvino, cronologicamente o segundo dos grandes cangaceiros – o primeiro foi Jesuíno Brilhante - andou por aqui, mais de uma vez, no começo do século passado, fazendo danação.

Cercado pela polícia, escondeu seu ouro em um buraco, para ser desenterrado quando saísse do aperreio. Preso, cumpriu longa pena, até que foi indultado por Getúlio Vargas. Correu até onde tinha deixado dinheiro, mas o bolso dos homens em quem confiara estavam vazios, e as botijas tinham sido arrancadas e feito a felicidade de quem com elas sonhara.

De outra vez, arrombou as portas da prisão de Cabaceiras e libertou todos, principalmente os dois rapazes que tinham mandado propor a ele um acordo singular: uma vez livres, iriam fazer parte do seu bando. E lá se foram os dois rapazes, Sertão adentro e afora, livres da cadeia de Cabaceiras, mas presos pela palavra dada a um homem temível!

A Região é cheia de lendas, mistérios, segredos, guardados pelo povo e apresentados somente no geral, sem que se consiga descobrir maiores detalhes acerca dos fatos e personagens que os viveram. No máximo vislumbramos alguns indícios, cuidadosamente espalhados ao léu. Todo cuidado é pouco para eles quando conversam, e a sabedoria sertaneja abre as portas da cozinha, mas fecha as portas dos quartos.

Discos Voadores, por exemplo, de vez em quando dão o ar de sua graça, nas noites estreladas, bailando no céu do Sertão profundo e amedrontando os raros passantes, nas horas tardias, transeuntes das veredas que ligam um sítio ao outro.

Houve casos de abdução, mas Noberto Castro, nosso guia, homem lido, misterioso, versado em plantas medicinais, orações fortes e história da Região, além de escritor, avaro em palavras e carnes, nega de pés juntos que isso jamais tenha acontecido.

Norberto Castro, um homem sábio

Daniel, rapaz simpático e atencioso que nos atendeu em um restaurante de comida honesta, farta e legitimamente sertaneja de uma prima de Norberto – todos são parentes entre si, basta cavar um pouquinho - enquanto almoçamos confirma a história, em seguida a nega, mas volta a confirmar, piscando um olho para os ouvintes, por certo para não contraria Noberto.

O que Noberto não esperava era que o Prefeito da cidade, também seu primo, a quem abordamos de supetão, em sua pequena casa na interessante Ribeira, distrito de Cabaceiras, e que nos recebeu com imensa simpatia, confirmasse tudo, nos dando detalhes e nomes, enquanto ria...

O Prefeito, Tiago Castro, por si somente, é um fenômeno: candidato à reeleição em Cabaceiras, teve 93 por cento dos votos possíveis. Seu adversário amargou míseros 7 por cento. Um verdadeiro massacre.

Do Distrito da Ribeira, nos separava, para que nela entrássemos, no fim de uma estrada carroçável, dois cruéis mata-burros, um atrás do outro, uma plantação de palma do lado direito de quem entra, e o leito seco do Rio Taperoá que nos remeteu à lembrança de Ariano Suassuna. Nada mais bucólico.

Na Ribeira, primeiro vimos a arte no couro de Timotinho, que nos recebeu no português cantado dos Ribeirenses, enquanto seus primos, descendentes, como ele, de algum holandês que se aventurou pelos sertões paraibanos, trabalhavam o couro curtido. Todos brancos leitosos, de cabelo liso e olhos azuis, além de longilíneos. Depois, veio a simpatia do “Mano”, tão agradável quanto deliciosa é sua comida puramente nativa, a começar pelo pirão de mocotó de boi.

O melhor pirão de mocotó do mundo!

Depois de gastar muita conversa com Mano, voltamos à “Matuto Sonhador”, um encanto. Deus a conserve assim. Lá, à beira da fogueira, um conjunto formado por sanfoneiro, zabumbeiro e triangulista, este último afinadíssimo e perspicaz, além de gozador, voz de barítono, prometeu ao dono da pousada casar com a bela mulher estátua que pastorava, com olhos arregalados e fixos, suas performances musicais no jardim, enquanto o forró nos embalava a dança. Ficamos de voltar para o casório.

Tempo de ir, começo do tempo de voltar.

Cabaceiras, PB, 25 a 29 de junho de 2021.