sábado, 12 de janeiro de 2019

A NOÇÃO DE "ESTRANHAMENTO"

* Honório de Medeiros


Camus, em seu "Diário de Viagem" (Record), lá para as tantas escreve o seguinte acerca de uma cena por ele presenciada no navio em que viajava para o Rio de Janeiro:

"Mais uma vez observo entre eles uma mulher já grisalha, mas de uma classe soberba, um belo rosto altivo e suave, (...) e uma postura sem par. Sempre seguida pelo marido, homem alto e louro, taciturno. Colho algumas informações, ela está fugindo da Polônia e dos russos para exilar-se na América do Sul. É pobre. Mas, ao vê-la, penso nas matronas bem vestidas que ocupam alguns camarotes de primeira classe."

Fico fascinado com esse olhar que distingue, o olhar de Camus, mas não me deixo seduzir pelo fascínio da primeira sensação, a da percepção de um estranhamento que separa, de um lado, a soberba elegância de uma imigrante e, do outro, o trivial, o comum, o banal: as matronas da primeira classe.

Deixo-me seduzir, isso sim, ao constatar que o olhar é o instrumento que permite as ideias apreenderem essa distinção. A ideia é anterior ao olhar. Se assim não fosse o olhar nada constataria dessa distinção que Camus percebeu.

Em outro lugar, escrevi:

"Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento”, um primeiro passo, que passamos a compreender os objetos, as coisas, as ideias, o Ser, enfim."

E o que seria o “estranhamento”? Eis algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual em uma arte marcial refinada, na literatura ou pintura, por exemplo, tornar-se hábil em captar essa desarmonia que extrapola o lugar-comum demanda contínuo exercitar-se até o limite do impossível.

O "estranhamento" antecede o processo de distinção que racionaliza o percebido. Mas somente é possível o "estranhamento" se, em quem observa, existem ideias acerca do que se percebe, uma expectativa de normalidade que não se realiza, que se fragmenta. 

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa, meticulosa  e peculiar da biblioteca de alguém chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “perceber” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer algumas inferências, ou elaborar algumas hipóteses, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norte americana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. A sensação de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, também, essa sensação de estranhamento."

Essa capacidade de sentir a sensação de "estranhamento", e, em seguida, abstraí-la, racionaliza-la, é, penso eu, a base do trabalho, dentre outros dos artistas, filósofos e cientistas.

Outro exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." (O Tango da Velha Guarda; Arturo Pérez-Reverte).

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

PRESTAR ATENÇÃO NO DIFERENTE PARA ENTENDER AS COISAS


* Honório de Medeiros

João de Antônio de Luzia me contou uma história de seu pai que vale a pena relatar. 

Eu me encontrara com ele nas imediações do mercado de Martins, onde fora tomar uma cana velha e tirar o gosto com seriguela no bar de João Catingueira. 

Perguntei por seu pai. “Tá por lá, pastorando o tempo”. Ri. “Alguma história nova?” Ele coçou a cabeça. Sabia quanto eu gostava das coisas do velho. 

“Dias desses me lembrei do senhor", disse, "porque na calçada falaram de uma eleição para prefeito bem antiga.” 

E foi contando: “O povo da calçada todo apoiava um candidato, médico, desmantelado que só ele, tomador de cana braba, caçador de peba, que andava de chinela japonesa, camisa aberta no peito, bucho pela goela, o consultório era um prédio velho e pequeno perto da zona, sujo e caindo aos pedaços, atendia quem o procurava no meio da rua, catando um papel no chão e puxando uma caneta velha do bolso que só escrevia por que Deus tem pena de quem faz caridade, para escrever a receita. Bom médico, por sinal.” 

“Todo dia era a mesma coisa. O povo da calçada dando a eleição como certa, elogiando o médico, falando mal do outro candidato, inventando estórias, fofocando, um disse-me-disse danado, o senhor sabe como é.” 

“Meu pai não dizia uma palavra, como sempre. Um dia, vendo todo aquele silêncio, depois que o povo saiu perguntei a ele: o senhor não vai votar no candidato do pessoal? Ele ficou calado um pedaço e depois me disse que o candidato ia ganhar, mas não ia dar certo como prefeito.” 

“Como é o que o senhor sabe?” 

“Seis meses depois da eleição me pergunte que eu lhe digo.” 

“Pois muito bem, o homem ganhou e menos de um mês depois de eleito todo mundo viu que a coisa ia ser um mal-arrumado de perder de vista, como de fato foi. Nada funcionava. Ele mandava na prefeitura como se ela fosse uma bodega, e ruim.” 

“Deixei o tempo passar, me mordendo de curiosidade. Queria porque queria perguntar ao velho, mas não tinha coragem. Sabia que ele nem responderia, antes da hora certa.” 

“Quando chegou o fim dos seis meses, fui a ele: e aquele negócio que o senhor ficou de me dizer seis meses depois da eleição?” 

“Pois é. Eu lhe pergunto: como é que ele ia cuidar das coisas dos outros que prestasse, se nem das coisas dele, ele cuida? Veja como é que ele anda, atende as pessoas, e o consultório.” 

“E como o senhor chegou a esse entendimento?” 

“As pessoas olham, mas não enxergam. É preciso prestar atenção no que é diferente. É prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.” 

João recusou meu convite para tomar uma, adentrou o mercado e me deixou coçando a cabeça, e lembrando de uma passagem de um conto de Conan Doyle e seu genial personagem Sherlock Holmes. 

Em episódio bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu, à noite. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”. 

Seu Antônio de Luzia tem razão, é prestando atenção no diferente que a gente entende as coisas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

DAS PESSOAS QUE SE OFENDEM COM O SILÊNCIO

* Honório de Medeiros

No rumo do remanso na beira da Serra das Almas, passei por Martins para dois dedos de prosa com Seu Antônio de Luzia, que Deus o mantenha tal qual está.

Perguntei como iam as coisas, e ele, naquela voz arrastada e grave, me disse que "do mesmo jeito, só que mais velhas".

Era um final de tarde meio quente, no Sítio Canto. Só vez por outra alguém passava e arriscava um dedo de prosa.

E nós dois, como outras vezes, café tomado, calados, cabeça pousada por inteiro no espaldar das cadeiras de balanço, nos entregávamos à quietude e ao canto dos passarinhos.

Lá para as tantas uma vizinha distante encostou e se danou a falar, contando o caso de uma sobrinha solteira que embuchara pelas bandas dos Cariris Velhos.

Falou, falou, falou tanto que espantou os sabiás que cantavam nos cajueiros do terreno em frente.

Quando se foi seu Antônio, sem olhar para mim, sentenciou: "essa mulher se ofende com o silêncio".

E mais não disse até a hora da coalhada, à boca da noite.

domingo, 6 de janeiro de 2019

CARTA ABERTA À GOVERNADORA FÁTIMA BEZERRA

* Do Blog de Gustavo Negreiros

Carta Aberta à Governadora Fátima Bezerra: “que o sonho jamais se transforme em um pesadelo”

"06.01.2019

Carta aberta do Auditor Fiscal José Arnaldo Fiuza Lima para a governadora Fátima Bezerra.

Nesta primeira semana em que a gestão do governo do RN está nas mãos de uma professora, ex-sindicalista e fundadora do Fórum dos Servidores Públicos do Estado, um forte sentimento de angústia e aflição vem tomando conta de uma parcela significativa do eleitorado potiguar, que sem o seu apoio, certamente, o resultado das eleições de 2018 seria outro e Fátima Bezerra continuaria exercendo funções parlamentares na Câmara Alta, em Brasília.

Tais exordiais sensações advém de declarações não muito felizes e tecnicamente equivocadas de membros do primeiro escalão da nova gestão, entre as quais a que proferiu o próprio Vice-Governador, inferindo, em entrevista, que “… Em 2019, com as receitas administradas pelo novo governo, nós passamos, nós já possamos sinalizar um pagamento que, claro, não será possível corrigir todo o passivo. Este passivo pertence a um outro governo…”.

Ora, não se pode confundir nunca governante com governo, pois o passivo salarial existente perante os servidores do Estado é obrigação a ser adimplida pelo governo do RN, sendo irrelevante juridicamente o fato de que tal dívida, de caráter alimentar, tenha sido contraída no fim da gestão anterior ou já na nova, pois não é um débito pessoal do governante, mas institucional do Estado, no qual o governo (organização que conduz e administra o ente estatal), seja quem for o gestor, deve honrar cronologicamente, i.e, na sequência temporal em que cada um deles foi se constituindo, e não, afrontando aos princípios da continuidade da administração pública e da impessoalidade e ao talante pessoal do governante de plantão, escolher o que deseja inicialmente pagar, os de seu mandato, com recursos ordinários, em menoscabo dos débitos precedentes, e que, erroneamente, ora parece se pretender quitar, exclusivamente, com recursos extraordinários e antecipatórios.

Nas mesmas pegadas tortuosas, o novo Secretário do Planejamento, conforme noticia o Jornal Tribuna do Norte e diversos outros meios de comunicação, afirmou, durante a cerimônia de posse do atual secretariado, que, na próxima semana, vai se definir como se fazer o pagamento de janeiro, “mas sem essas definições de calendário de pagamento e todo o passivo atrasado”.

Vejam, e daí se origina, já nos primórdios da gestão de Fátima Bezerra, uma tensão muito forte com aqueles que são historicamente seus companheiros de luta e que foram imprescindíveis para sua vitória eleitoral, pois o que está sendo construído pela sua equipe econômica nada mais é do que uma praxe velha de se fazer política, onde se constrói uma maqueada imagem, distante da realidade subjacente, ao se pagar em dia os salários da novel gestão e só posteriormente os contraídos sob a batuta do governante predecessor, sem que exista nenhuma justificativa minimamente razoável para tanto, nem jurídica, nem contábil, muito pelo contrário, mas que busca passar à sociedade uma pseudoaparência de normalidade, de “arrumação da casa” e de resolução de um gravíssimo problema pelo qual vivem os servidores públicos, hoje por demais penalizados com até 4 (quatro) salários em aberto, caso de alguns aposentados e pensionistas, e, caso tal infeliz ideia seja adotada, mais ainda sofrerão, com seus bolsos vazios e suas dívidas se multiplicando, numa crescente decepção, agravada ainda mais quando, comparativamente, se remete a era Robinson Farias, de tristes recordações para o funcionalismo, que, mesmo com a intempestividade no pagamento de salários que reinou pelos últimos 36 (trinta e seis) meses, jamais sequer cogitou usar tal artifício, o de iniciar um novo ano pagando salários deste e pulando os dos derradeiros meses do exercício findo, sem buscar quitar com precedência os mais antigos, implementando assim, nobre governadora, já no nascedouro de seu mandato, uma medida absurda, que, indubitavelmente, fomentará revolta nos funcionários do Executivo e instaurará um estado de animosidade entre o governo e o seu corpo funcional, indesejável por ambos.

Dito isto, sem explanar sobre a precedência jurídica do pagamento de salários em relação com as demais dívidas do Estado do RN, em virtude disto ser de cognição da governadora e de toda sua equipe, ou ser irresponsável em cobrar imediata solução para os atrasos salariais, pois todos sabem da impossibilidade fática disto ocorrer a curtíssimo prazo, inobstante, e aí reside o apelo que ora se faz, e já nas pegadas do decidido, de forma unânime, nesta semana, pelas diversas lideranças sindicais que estiveram presentes na reunião do Fórum dos Servidores Públicos do Estado, entidade na qual nossa hodierna governante é uma das fundadoras, que se honre, com a máxima brevidade financeiramente possível, sequencialmente e na medida da entrada de recursos ordinários e extraordinários, o restante do décimo terceiro sálario de 2017, no montante de cerca de R$ 42 milhões, o que falta dos salários de novembro de 2018, de cerca de R$ 96 milhões, quitando, em seguida, o décimo terceiro de 2018 e a remuneração de dezembro de 2018, para só então se pagar a folha salarial de janeiro de 2019, e que também se respeite o Princípio da Isonomia quanto à data de pagamento entre todas as categorias e entre ativos e inativos, pois é inadmissível que se mantenha a odiosa discriminação que vem sofrendo os aposentados e pensionistas do Estado, de serem os últimos a perceber os seus proventos, quando pela avançada idade e suas consequências naturais carecem mais de recursos financeiros para fazer frente às despesas elevadas relacionadas à manutenção da saúde.

Para tanto, como o orçamento do presente exercício ainda está fechado, elidindo-se a possibilidade do governo de fazer pagamento de certas despesas, e inexistindo qualquer razoabilidade em se deixar parado nas contas do Erário o dinheiro que está sendo arrecadado, enquanto os servidores públicos estão passando sérias dificuldades financeiras, e analisando o cronograma e a previsão de receitas do RN, urge trazer ao seu conhecimento e da população potiguar que resta possível que o primeiro pagamento, quanto às pendências salariais apontadas, já possa ser feito agora, entre os dias 07 e 08, com a entrada de recursos próprios na ordem de R$ 115 milhões, que excluída a parte referente ao FUNDEB e aos municípios ainda sobrariam, em caixa, cerca de R$ 77 milhões. O segundo e o início do terceiro pagamento já podem ocorrer até o dia 14, com a entrada da primeira parcela do FPE e de recursos próprios, que até tal data importariam, em valores líquidos, de cerca de R$ 260 milhões, e que, com outras receitas que advirão até o fim deste mês, mesmo com as deduções constitucionais e o repasse dos duodécimos aos Poderes e órgãos com autonomia financeira, possa ser continuado tal pagamento e reduzido, em parte, o montante do atraso salarial, dando esperança, desta forma, a todos os servidores, que a promessa firmada no transcorrer da campanha eleitoral será fielmente cumprida desde os primeiros dias do seu mandato.

Claramente, há esperança nos mais de 100 (cem) mil servidores ativos, aposentados, pensionistas e em todos os seus familiares de que o direito trabalhista à percepção tempestiva de suas remunerações será enfim respeitado, e, para tanto, imprescinde que a nova gestão do Governo do RN, sob a titularidade de uma professora, já nestes primeiros dias do ano, envide todos os esforços possíveis para, urgentemente, minimizar e, no menor tempo possível, pôr um fim nestes reiterados atrasos salariais, efetuando os pagamentos remuneratórios à medida que for entrando recursos no Erário e sem que se desrespeite a cronologia e a isonomia, na forma alhures mencionada.

Por fim, finca-se o sincero desejo de que possam, governo e servidores, caminhar unidos e em harmonia pelos anos da gestão que se inicia, para que o outrora sonho, transmutado hoje em esperança, de um lado, e angústia e aflição por certas declarações emitidas na imprensa, do outro, jamais se transforme em um pesadelo, e assim, coloquem, juntos, finalmente, o Estado do Rio Grande do Norte no patamar econômico e social que a sociedade potiguar almeja e merece.”