sábado, 26 de janeiro de 2019

DISTORCER PARA MANIPULAR

* Honório de Medeiros

Em "On Liberty", de 1859, Sir John Stuart Mill sugere que "A única liberdade que merece esse nome é a de perseguir nosso próprio bem, à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros de seus bens, ou impedir seus esforços para alcançá-los... O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma correta sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir o mal aos outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificativa suficiente." 

Não é preciso salientar a importância dessa obra para a construção do pensamento liberal. Mas é preciso ressaltar que esse ideário é um dos mitos fundantes do Estado contemporâneo fulcrado em uma Democracia tal qual encontrada nos países ocidentais. 

Tampouco há necessidade de enumerar as críticas existentes a essa Democracia nos moldes ocidentais. São muitas. Algumas corretas. Entretanto vale a pena lembrar Sir Winston Churchill, e sua famosa "boutade": "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas."Também vale a pena lembrar os países ocidentais como aqueles que detêm os melhores índices de desenvolvimento humano. 

As elites políticas sequiosas de obtenção e manutenção do Poder já compreenderam, de há muito, o ponto fraco na argumentação de Sir John Stuart Mill, e o distorceram para manipularem e manterem seu "status quo" de dominação. A chave é "impedir o mal aos outros"

Hoje em dia esse argumento retórico foi substituído por outro mais sofisticado e condizente com os tempos atuais: "a predominância do público sobre o privado".

Ou seja, tudo quanto for oriundo do Estado (daqueles que detêm os aparelhos do Estado em suas mãos) deve ser respeitado e obedecido, já que implica, necessariamente, no interesse do predomínio do público sobre o privado. E a prevalência do público sobre o privado existe única e exclusivamente no intuito de impedir (que se faça) o mal aos outros. 

O que está por trás dessa concepção, quando não se trata única e exclusivamente de BANDITISMO, é a crença que as elites dirigente têm em sua capacidade de saber o que é o certo e o melhor para todos.

As elites dirigentes creem ser, para isso, ungidas pelos deuses, ou pelo conhecimento, ou pelo destino, para imporem, aos comuns dos mortais, as regras que estes devem seguir em Sociedade. 

Nada mais autoritário. Nada mais arcaico. Nada mais atual.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

QUANTO AO ATIVISMO JUDICIAL

* Honório de Medeiros                                                                

Um dos mitos fundantes da nossa concepção de Estado é a do contrato social. Por este, nós cedemos nossa liberdade para que o Estado nos impeça de nos destruirmos uns aos outros. Tal noção, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):

"De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, 'uma garantia mútua de direitos', incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer".

E muito embora um estudioso "outsider" do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

"Bellum omnium contra omnes", guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorre se impera a liberdade absoluta, diz-nos Hobbes no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social - e não houver a criação de um artefato – o Estado –, assegurando-se, assim, a sobrevivência dos homens quando estiverem em contato uns com os outros, pois haverá a submissão da vontade de todos à vontade de um só ou de um grupo, e esta atuará em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz comum.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente a Revolução Americana e Francesa, bem como a ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual surge o Estado, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se mais uma vez, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Há algo de estranho, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal. 

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, na sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição, conforme pregação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, e a atividade judicante de meramente preencher uma “possível” lacuna legal ou mudar o sentido de uma norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença, baseando-se em princípios difusos e indeterminados da Constituição Federal, estratégia empregada na Itália, Alemanha e pelo próprio STF.

“Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos”, diz, arrogantemente, o Ministro do STF Gilmar Mendes.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração a doutrina exposta acima, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

Em que se basearia, qual seria o fulcro dessa atividade de invasão da competência do legislativo ao se criar normas jurídicas através de sentenças, ou modificar o sentido de outras por meio de interpretações? Seria, como deixa transparecer o presidente do STF em suas entrevistas, por que a Constituição Federal tem um “espírito” e somente os integrantes daquela Casa, em última instância, conseguem enxergá-lo em sua essência última?

Que espírito é esse? O mesmo ao qual se refere São Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica”?

Autoritário, tal argumento. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do mito platônico das formas e ideias cuja contemplação é privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia a serviço de uma estratégia de Poder, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no comando, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o certo e o errado, o bom e o mal, o justo e o injusto.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia.

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

JOGOS POLÍTICOS TÁTICOS

* Honório de Medeiros

Tratativas no âmbito das elites políticas, feitas por políticos disputando o Poder, são jogos táticos sendo urdidos a partir de estratégias ocultas das quais, a maioria das vezes, não temos o menor conhecimento.