sábado, 30 de agosto de 2025

MANOELITO PEREIRA, OU DA ARTE DE APRISIONAR UM INSTANTE

 


Manoelito Pereira

* Honório de medeiros

Alguns anos atrás o antigo Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito Pereira.

Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes.

E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse, talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor expunham sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos, como o querem alguns filósofos, ditam a forma - jamais o contrário.

Embora seja compreensível a razão do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros de antigas famílias da cidade para o evento, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. 

No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias expostas.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas imagens.

Um fato no mínimo curioso, para um evento aberto ao público para homenagear a arte - embora também a memória por ele construída - de um artista finalmente e justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor, do acontecimento, foi chamar a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado por sua família a Mossoró.

Não é à-toa a importância que estudiosos de grandes universidades do sul dão ao acervo.

Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que se perdeu, ao longo do tempo.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico.

Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinquenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva acadêmica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Entender como Mossoró avançou no tempo é entender aspectos da história das cidades, do Sertão, Nordeste, Brasil, enfim, de nós mesmos.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do estudioso, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos.

Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram outros sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida.

E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era solicitado o aprisionamento de um instante específico através de uma fotografia.

Ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em arte.

Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento.

Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - de que somente artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)


* Honório de Medeiros


Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários 

Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade. 

Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções. 

Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas. 

Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens. 

Qual a decisão de vocês?”. 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então, eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado "Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas". 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em "Subliminar", Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade”. 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de "Retórica", aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em "A Nova Retórica". 

A resposta acerca de como os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela "Sociologia" e "Antropologia" a partir da "Teoria da Seleção Natural": 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.

Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo. 

Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso "in-group".

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem demostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, acerca da "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder", que contamina as decisões do aparelho judiciário.

Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, pensam os marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista, marxista, ou darwinista, basta Gaetano Mosca, autor de "The Ruling Class", "A Teoria da Classe Política", que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência!


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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A BUSCA POR MASSILON

 


* Honório de Medeiros


Sempre me perguntam como me encaminhei para o estudo do cangaço. Eis a resposta...

As férias de minha meninice, excetuando quando ia para o Sertão do Alto Oeste Potiguar, nos meses chuvosos de julho, foram passadas na Praia de Tibau (do Norte).

As noites eram típicas do nosso verão litorâneo, com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se fizessem as horas, todas à luz do lampião de gás no alpendre que nos agasalhava, e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.

Para lá eu ia como companhia oficial de minha tia, a dona da casa, tão logo chegassem os primeiros dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido por Tio Ezequiel[1], irmão de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os padrões de então.

Ele era o principal acionista de Alfredo Fernandes Indústria e Comércio, uma empresa com sede em Mossoró e que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão.

Nele me impressionava o distanciamento que sabia impor, sem elevar, a voz e seu vagão de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório central da empresa, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, em suas férias anuais, mês de julho, na Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por ancestrais comuns[2].

Era, então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3], passar o final-de-semana.

Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo: a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a noite sempre terminava com alguma história antiga da família Fernandes, principalmente os episódios vividos por Childerico, o "Novo", que se fora para a Amazônia entre menino e rapaz, mais precisamente o Acre, ou pelo outro Childerico, sobrinho daquele, que tivera o bando de Lampião, por angustiantes momentos, na propriedade rural que ele administrava, quando de sua fuga de Mossoró[4].

Naquela época Tio Childerico, o que se fora, já era lenda aqui e na Amazônia. As histórias que se contavam a seu respeito, boa parte por Calazans Fernandes em sua obra "O Guerreiro do Yaco", diziam respeito a anos passados no meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e perdidas em um passe de mágica.

O "Guerreiro do Yaco" foi o primeiro volume de uma trilogia romanceada, jamais acabada, de sua vida[5].

Quanto ao outro Childerico, sua história era mais recente: dizia respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró, pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a Alfredo Fernandes, seu primo legítimo.

Dizia respeito, também, à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de quem Tia Bebela, esposa de Childerico, se valera para proteger seus filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas das quais era ameaçado por não conter seu choro.

Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu “anjo-da-guarda”. Por essa razão, até morrer, todo ano mandava celebrar uma missa em sua intenção e em ação de graças pelo salvamento de seus filhos.

Ainda por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre.

Na mesma rua onde nasci e me criei e onde moraram meus pais até que os levasse os desígnios de Deus, no seu final, número 85, ali onde a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai para o bairro da Paraíba e com a Igreja de São Vicente a sua esquerda, ficava a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram resistência armada aos invasores[6].

Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros.

Em 1977, ano do cinquentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro ainda vivo: Asa Branca.

Mas somente anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados, resolvi sair em busca de Massilon.

O primeiro deles foi uma conversa em tom de brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo, escrito por Aléxis Gurgel, que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, e que inovava quanto ao suposto motivo real que levara Massilon a empreender seu projeto relativo à Mossoró[7].

O segundo foi conhecer e me tornar amigo de Paulo Gastão, o Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, e Kydelmir Dantas, um dos maiores pesquisadores do tema, no Brasil.

A essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha avaliação, desde a história dos Fernandes do Alto Oeste potiguar, à resistência oposta por Rodolpho Fernandes à Lampião[8], passando antes pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9] na revolução de 1817, as aventuras de Childerico Fernandes, o "Guerreiro do Yaco", na Amazônia, a história política do interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz, relacionados com os acontecimentos de 1927 em Mossoró.

Agregou-se também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de Mossoró.

Por todos esses motivos surgiu o livro "Massilon: Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins".

[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel, que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca em Mossoró.

[2] Em 1742 Francisco Martins Roriz, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, que daria origem ao povoado que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr., em "Martins, a Cidade e a Serra", que a origem da Capela à margem da Lagoa dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu, está envolta em lenda: reza a tradição que a esposa de Francisco Martins desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta – mandaria construir, no local, uma capela em honra daquela santa. Logo mais seria localizada, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando erigir a capela ali mesmo. 

[3] Francisco Fernandes de Sena (Chico Sena) estava na trincheira de seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua terra natal, Pau dos Ferros, RN.

[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de 1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza em "Os Fernandes de Souza", que depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe.

[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de 1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e esclareceu porque tantos “Childericos” na família Fernandes: "Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em 1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do esforço inextinguível. O “Guerreiro do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.

[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro, Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô materno Ezequiel Fernandes de Souza, além de outros.

[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.

[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel Rodrigues de Melo, em seu Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, informa que "A República, de 28 de junho de 1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade, sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr. Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal 'A República' seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do Desembargador Ferreira Chaves".

[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes, em "Memorial de Família": "quando o Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no dia 30 de abril de 1926. Ver "História do Rio Grande do Norte", de Tavares de Lyra.

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domingo, 24 de agosto de 2025

O GUERREIRO DO YACO

 


* Honório de Medeiros


Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes Queiróz Filho, nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, aos quinze anos de idade, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, nas quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará.

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados voltassem definitivamente à mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”[1], que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada por seu irmão[2], o renomado Major Ephiphanio.

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II, Tenente-Coronel da Guarda Nacional desde os idos de 1808, trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro.

Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor do primeiro e do segundo volume de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência.

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia, Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência.

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Belém e Manaus, por si só valem um livro. E que livro!

Assim como a história das batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[3], de Hernâni Donato:

“8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[4], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[5] estas apresentaram-se, federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos”.

A luta por Bragança, no Pará, da qual foi Prefeito várias vezes. A luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias Martins. A luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados!

No segundo volume – “Chamas do Passado” – inédito da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua sendo Childerico II.

Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, como disse Cascudo, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.

Nele nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, os judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo, Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes, que a Fundação José Augusto poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção Cultura Potiguar.


[1] E recordei enquanto caminhava, garoto, pelas ruas da minha infância, tangido suavemente por meu pai, a cumprimentar, tímido, os vizinhos, dentre eles um seu colega de trabalho, Francisco Alves Cabral (Chico Cabral), a quem eu relacionava imediatamente, por ser filho de Pedro Alves Cabral, com a Casa Grande da Fazenda São João, uma das três ou quatro construídas no “início das eras” naquela Região, o Alto Oeste Potiguar, de onde os Fernandes, todos descendentes de Mathias Fernandes Ribeiro, filho de um português oriundo da Vila de Faral, cidade do Porto, Região do Douro, e de uma filha de outro português, se espalharam pelo Brasil. Pedro Alves Cabral nascera lá, naquela mítica Casa Grande que Lampião recusou atacar, por arte de Massilon, quando invadiu o Rio Grande do Norte se dirigindo a Mossoró, escutara suas histórias e estórias nos serões familiares, testemunhara algumas e era, ele mesmo, o epicentro de uma história contada aos sussurros, entre os adultos Fernandes, mas escutados por meninos de ouvidos ávidos, que atribuía seu nascimento em 1879, no dia de São Pedro, às infidelidades do Capitão Childerico José Fernandes de Queirós e Sá, então proprietário do solar senhorial por casamento com Maria Amélia Fernandes, a Dona Marica do João Gomes, única herdeira de todo o patrimônio do Tenente Coronel Epiphanio José Fernandes de Queirós, conhecido como Major Epiphanio, falecido em 1884, e seu construtor.

A história de Dona Marica é por si mesma uma lenda na família Fernandes. Consta que Antônio Fernandes da Silveira Queirós (o Major do Exu) teve vários filhos, dentre eles o Major Epiphanio e o Cônego Bernardino José de Queirós e Sá, que foi vigário de Pau dos Ferros de 1849 a 1884. O Major Epiphanio não teve filhos; o Padre, dez a doze, segundo alguns, dezesseis, dizem outros, de várias mulheres, dentre eles Dona Marica, primogênita, adotada por seu irmão e dele futura e única herdeira.

[2] Do padre.

[3] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996.

[4] 7 de maio.

[5] 8 de junho.