sábado, 28 de julho de 2018

CHILDERICO FERNANDES, O "GUERREIRO DO YACO"




 * Honório de Medeiros 

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes Queiróz Filho, nascido em Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará. 

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada pelo renomado Major Ephiphanio, o único irmão do sátiro de batina. 

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. 

Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem, conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, de quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência. 

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros, documentos e relatos de muito poucos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história, pelo que se infere. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência. 

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro! 

Assim como valem um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus; a luta armada por Bragança, da qual foi prefeito várias vezes, e Belém, no Pará, esta com Lauro Sodré; a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados! 

Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[1], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[2], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[3] estas se apresentaram federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.” 

No inédito segundo volume – “Chamas do Passado” - da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor da história continua sendo Childerico II. 

Sua saga perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, permitindo-nos perceber a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. 

Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte. 

No “Guerreiro do Yaco” nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, os judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. 

Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo, Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste? 

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes, todas tendo como espinha dorsal a vida de Childerico II, a esperar que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, as resgate do limbo através da fabulosa Coleção Cultura Potiguar, impedindo assim que o pó do tempo sepulte, de vez, o conhecimento, pelos homens e mulheres de hoje, dos feitos e parte da vida dos nossos ancestrais. 

[1] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996.

[2] 7 de maio. 

[3] 8 de junho.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

NO QUE SOU FIDALGO

* Honório de Medeiros


Longe de mim o mundo envelhece, mas que importa, meu reino é interior. Não aceito as regras do jogo que corrompe o mundo. No entanto elas, mesmo assim, me fazem, me constroem, dispõem de mim. Sou um seu reflexo, mesmo se e quando busco ignorá-las. 

Mas não aceito. Nisso sou fidalgo.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

DIÁRIO DE VIAGEM: PRIMEIRO DIA

* Honório de Medeiros

O avião da TAP até que foi pontual, contrariando nossas expectativas. Chegou na hora em Lisboa, mas ficamos no chão, esperando ordem para atracar, por um longo tempo.

Então começou o drama das filas. A primeira intimida. É um mar de gente tentando ultrapassar a imigração. 

Senti-me, como sempre, qual um rato correndo em um labirinto formado por cordões de isolamento. 

A fila anda, para, anda, para, vamos cruzando uns com os outros, embora separados por raias, nervosos, tangendo uns aos outros e nossa bagagem de mão.

Depois, outra fila: a máquina de raio-x que vasculha o interior da bagagem. Tiramos casaco, celular, ipad, notebook, mochila, sapato, cinturão, relógio. Quase nus, fomos liberados. Finalmente estamos considerados aptos a entrar na Europa!

Agora uma fila para comer. Depois de um voo noturno de sete horas de duração, isso é fundamental. Ainda falta a fila para pegar o voo até Paris e, depois, a longa espera para recolher as malas. Recolhidas as malas, nova fila para pegar o táxi, e ainda uma última, no hotel, para o check-in.

O voo até que foi bom, não fosse o fedor do casal europeu sentado atrás das nossas poltronas. Cheiro de roupas mal lavadas, suor acumulado, ranço.

Conhecemos um casal de cariocas, ele bem mais novo que ela. Interessantes. Essa era a primeira vez que viajavam juntos para fora do Brasil. Levou tempo até que ele, que gosta de viajar, a convencesse a sair de casa e cruzar os mares no rumo do Velho Mundo. Ela, caseira, ele, bate-perna.

Uma das aeromoças portuguesas era tão bonita que me fez lembrar uma Madonna rafaelita:


 Madonna della seggiola,  Raphael Sanzio, 1513 - 1514.

Tomamos o Hotel Albe Saint Michel, na Rue de La Harpe, no epicentro da muvuca, perto da Notre-Dame e da Shakespeare & Co., a lendária livraria da zona sul da cidade de Paris, aberta por Sylvia Beach em 19 de novembro de 1919.

Depois fomos até o Sena render nossas homenagens ao mais belo dos rios depois do Potengi amado, o mesmo Sena do belo poema "A Ponte Mirabeau", de Guillaume Apollinaire:

"Sob esta ponte passa o rio Sena
e o nosso amor
lembrança tão pequena
sempre o prazer chegava após a pena

Chega a noite a
hora soa
vão-se os dias
vivo à toa

Mãos dadas nós fiquemos face a face
enquanto sob
a ponte dos braços passe
de eternas juras tédio que se enlace

Chega a noite a
hora soa
vão-se os dias
vivo à toa

E vai-se o amor como água corre atenta
e vai-se o amor
ai como a vida é tão lenta
e como só a esperança é violenta

Chega a noite a hora
soa
vão-se os dias vivo à
toa

Dias semanas passam à dezena
nem tempo volta
nem nosso amor nossa pena
sob esta ponte passa o rio Sena

Chega a noite a hora
soa
vão-se os dias vivo à
toa".

Terminamos a noite, muito cansados, jantando no Il Gigolo, na pequena Rue de La Huchette, com apenas dois quarteirões fechados para pedestres, meio kitsche, no centro de Parisonde sempre encontramos de tudo, do jazz à música tradicional italiana.

Nela fica o famoso Clube de jazz  "Le Caveau de la Huchette". E um teatro, o "Théâtre de la Huchette", inaugurado logo após a segunda guerra mundial e que desde então oferece o mesmo programa: todas as noite podemos ver duas peças de Ionesco: "La Cantatrice Chauve" e "La Leçon". Casa cheia, sempre.


A cor das águas do Sena. Nada há igual. Talvez a do Potengi.

domingo, 22 de julho de 2018

A QUESTÃO É MORAL



* Honório de Medeiros
E-mails para honoriodemedeiros@gmail.com


Imagine que você precise de uma segunda via do documento do seu carro.

E dirige-se ao Órgão apropriado para tirá-lo.

Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido.

Pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo.

Seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá.

No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum".

O despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando, nelas, soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um despachante?

E quanto aos que acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que deseja, todas as portas?

Como se percebe facilmente trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro.

Moral, aqui, para além de como deve agir o Estado que, conforme a Constituição Federal deve, por intermédio de seus servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadãos.

É esse o tema do livro de Michel J. Sandel, "O Que O Dinheiro Não Compra", professor em Harvard, professor-visitante na Sorbonne.

Sandel ficou midiático desde que seu curso "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo.

Em 2010 a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro. 

Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização enquanto morrer.

Ou seja: quanto mais cedo o segurado morrer, mais o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo".

E não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja a "extensão do mercado, dos valores do mercado, às esferas da vida com as quais nada têm a ver."

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado.

Mas não concordo.

Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado.

Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado, seu "gen" não teria sobrevivido.

Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última instância, no que concerne a sua instauração (faz com que ela surja), está o Homem ou a Sociedade?

Por outra: a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é ganancioso?

Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.

Fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, é o escândalo do Mensalão, essa nódoa permanente e intransferível na nossa elite política.

Ao invés do mea culpa, mea maxima culpa ao qual temos direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras ao qual sustentamos passivamente ao longo dos anos, bem como à escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas eleitorais.

Querem nos fazer crer que quando o irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios recentes da crônica da corrupção tupiniquim, assim agia porque o sistema não presta.

Faz parte da própria lógica do aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa, a de que o meio cria o Homem - o determinismo social -, a falta de capacidade técnica para compreender aquilo que está em jogo em termos científicos, embora não lhe falte meios que a protejam da luz crua da verdade.

Os defensores de teorias como essas pululam nas redes sociais.

Mas Darwin está aí, basta lê-lo.

Aliás, como a grande, a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo e leitura, ou então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição norte-americana para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as produz (caricatura do positivismo), estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Não compreendem, mas usam.

É mais fácil botar a culpa no Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história, tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, fizeram avançar o processo civilizatório.

Mas que se há de fazer?

Talvez responder à Baronesa Thatcher: "não, você se enganou, a ganância não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem". 
Arte: ip.usp.br