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sexta-feira, 7 de setembro de 2018

CANGAÇO , CORONELISMO E FANATISMO SÃO MANIFESTAÇÕES DO PODER

Massilon: ele estava no ataque a Apodi e Mossoró em 1927

Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

O coronelismo e o cangaço, assim como o fanatismo (misticismo) tão característicos de certo período histórico do Sertão nordestino brasileiro, são manifestações do fenômeno do Poder, de como ele é obtido, se instaura  e é mantido em qualquer circunstância.

A forma como o Poder se instaura diz respeito a fatores circunstanciais, mas o conteúdo permanece o mesmo desde que o Homem surgiu na face da terra.

Exemplos que comprovam essa afirmação são quaisquer processos políticos que aconteceram ao longo da história, tais quais os descritos em farta literatura acerca de Atenas, Roma, a Inglaterra vitoriana, ou qualquer outro que seja.

A forma se modifica ao longo do tempo em decorrência do avanço tecnológico, por exemplo. Se antes o Homem combatia com arcos e flechas, hoje usa mísseis teleguiados.

Assim, o coronelismo, o cangaço e o fanatismo são "cases" do fenômeno do Poder próprios de uma determinada circunstância histórica. São semelhantes, em sua estrutura, ao feudalismo europeu e japonês.

As narrativas acerca do coronelismo, cangaço, e fanatismo devem ser estudadas levando-se em consideração o fator de "ocultamento" que é próprio da lógica de atuação dos que detêm o Poder.

Nesse sentido, escrever, omitir, manipular, direcionar os textos, tudo isso e mais, cumprem o papel de impor a lógica dos que podem impor sua percepção das coisas e dos fenômenos.

No Rio Grande do Norte, por exemplo, é difusa, porém persistente, a concepção de que os coronéis da política eram homens afastados da lide com o cangaço, bem como é persistente a concepção de que o cangaço, excetuando a invasão de Mossoró por Lampião, pouca relevância teve no Rio Grande do Norte.

São "esquecidos" José Brilhante, o Cabé; Jesuíno Brilhante; a invasão de Apodi por Massilon; a invasão de Mossoró por Lampião e Massilon; e a morte de Chico Pereira.

Não se estuda, como deveria ser estudado, a invasão de Apodi por Massilon e sua relação com a invasão de Mossoró por Lampião pouco mais de um mês depois. Bem como não se estuda a participação do coronelato da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte no evento.

E perdemos todos pois, na verdade, em essência, o que se deve estudar quando analisamos fatos históricos como esses, é o fenômeno do Poder, tão onipresente quanto a existência do Homem na face da terra.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

MISSÃO VELHA: O TEMPO PASSADO E O TEMPO PRESENTE


Missão Velha, Ceará, Sertão profundo

Por Honório de Medeiros

A memória de Isaías Arruda insiste em vencer o tempo e a apatia geral do brasileiro com sua história, e aos poucos se transforma em mito na cidade que tomou pelas armas e onde exerceu seu poder de senhor feudal até a morte viesse buscá-lo da mesma forma como viveu: violentamente. Continuo relatando para Antônio Gomes o resultado da viagem ao Cariri. “Estamos em Missão Velha”, continuo. “Enquanto vagávamos no entorno da pequena praça principal fomos abordados e depois apadrinhados por Esly Almeida Melo, da velha aristocracia rural caririense e sua tradicional atenção sertaneja. Seu Esly, aposentado, filhos criados e no mundo, descia ou subia – depende do referencial – a pé, limpo, perfumado, barba feira, cabelos na brilhantina, bem vestido, em busca da Matriz para ‘puxar um terço’. Simpático, conversador, piadista, tornou-se nosso cicerone e historiador informal e foi o maior responsável pela obtenção, quase milagrosa, através das mãos da professora e escritora Célia Magalhães, de uma fotografia dos anos 20 onde Isaías Arruda, ao lado de vários outros, todos de paletó claro, diferencia-se pela altura, a trigueirice e o porte altivo. Ali estava aquele que foi, juntamente com Massilon Leite, o responsável pela invasão de Mossoró por Lampião.

Célia Magalhães é bem jovem, foi Secretária de Educação de Missão Velha e escreveu acerca dos ex-prefeitos da cidade. Ela e seu Esly levam-nos até a senhorial residência de Luís Jucá Arraes Maia, primo de ex-governador de Pernambuco já falecido, Miguel Arraes. Luis Maia é considerado o “intelectual” de Missão Velha. Já quase não fala e anda em decorrência de uma trombose. Mostra-nos sua coleção de selos e moedas antigas avaliada, por baixo, em mais de seiscentos mil reais. Já foi procurado por colecionadores do mundo inteiro. Enquanto ele se comunica precariamente com o Professor Pereira, que nos acompanha desde Cajazeiras, tento invadir com o olhar curioso os segredos daquela casa mais que centenária, ilhada por construções muito antigas – sobrados geminados com janelas avarandadas que se abrem afastando-se cada banda para um lado, e separadas da rua por uma grade de proteção de ferro batido ornamentada com flores-de-lis estilizadas. Não consigo. O sertanejo abre todas as portas de sua casa aos estranhos bem recomendados, mas conservam fechados, a sete chaves, as portas de sua intimidade. Mesmo assim posso compreender até fisicamente a dor da castelã quando me fala que há mais de quarenta anos está desterrada ali, em Missão Velha, longe da família, dos filhos, do bulício da cidade grande, do mar, de tudo quanto ama, pois há o dever de ir, até o fim, no compromisso que assumiu ao pé do altar. ‘A pior fase’, disse-me ela, ‘foram os três anos que passei enterrada no sítio.’ Como não ser capaz de compreender essa sensação que acomete aqueles que condenados ao ritmo lento da cidade pequena – cinza vida cinza – anseia pela febril velocidade da cidade grande?

O verde do Cariri, um verde que se destaca pelo imenso contraste com o semi-árido dos carrascais, poeira, sol-a-pino, grotões que havíamos deixado um pouco antes... A mansão feudal de Isaías Arruda, na qual há, inclusive, sala-de-armas e passagem subterrânea. A estação de trem, palco de tantos episódios históricos. Em uma delas, similar, em Aurora, Isaías tombou ferido de morte após levar, sem reagir, vários tiros desfechados por inimigos políticos seus. O prédio da Prefeitura por ele construída. A misteriosa história acontecida na casa onde hoje funciona a Secretaria de Educação. Os escombros de um passado já longínquo, mas presente, ainda recendendo a pólvora, sangue, baraço e cutelo da aristocracia rural sertaneja firmada em um ancestral código de honra. Os ‘cabras’, os jagunços, os cangaceiros. A Igreja legitimadora e terrena, profana, com seus representantes abençoadores de bastardos e assassinos, semeadores de filhos e ilusões, testemunha engajada da vilania com a qual o povo, deserdado de clima, de poder, de bondade, carrega consigo, como última esperança, o paraíso que lhe foi prometido e do qual não se sabe se realmente vai ser entregue.”

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A MORTE DE CHICO PEREIRA


Chico Pereira
Especial obséquio de Ivanildo Silveira

ADAUTO GUERRA FILHO, em “O SERIDÓ NA MEMÓRIA DE SEU POVO”; Julho de 2001; Editora: Departamento Estadual de Imprensa; Natal, Rn; P. 107:

“Apesar de ser uma história longa e complexa, não é difícil entender a razão de tanta contradição. Em primeiro lugar, levemos em consideração uma informação do livro ‘Vingança, Não’ de F. Pereira Nóbrega, o qual diz que os dois Presidentes de Província, Dr. Juvenal Lamartine, então Presidente do Rio Grande do Norte, e João Suassuna, Presidente da Paraíba, fizeram um pacto de morte no dia 18.08.1928. Isto assim se explica: O Presidente da Paraíba não queria entrar em choque com o recém-eleito Cel. João Pessoa, que dera a Chico garantia de liberdade. Então idealizou uma forma de condená-lo fora do Estado. Ele bem sabia que cangaceiro no Rio Grande do Norte tinha vida curta e, por isso, oportunamente se aproveitou do assalto à casa do Cel. Quincó para idealizar uma forma de incriminar Chico Pereira . Isto aconteceria ao induzir o bandido principal, Antônio Jerônimo, conhecido por Antônio Chofer, a dizer que Chico estava entre eles. Pessoas maliciosas vão mais além, afirmando que o assalto fora programado, tanto é que, logo após a ida de Chico para a detenção, em Natal, Antônio Chofer caiu no desinteresse da Justiça, inclusive sendo solto e ficando no anonimato.

Outro fato curioso que nos induz a pensar que o assalto foi programado é o excessivo interesse de Antônio Suassuna – o Tonho, sobrinho do Presidente da Paraíba, pela ‘liberdade’ de Chico Pereira. Ele próprio hospedou Chico em sua casa, na Fazenda Cajueiro, no município de Catolé do Rocha. Ali chegando, Chico foi alvo de sua atenção, havendo Tonho servido de mediador entre ele e João Pessoa, ao levá-lo à presença do Presidente eleito. Naquela ocasião, Tonho convenceu Chico de que, após o júri em Princesa, nada mais lhe aconteceria. Este fato, aliás, o demoveu da idéias de se retirara para Goiás.

Em Acari, Chico Pereira, sentindo o acre da traição, escreveu a Tonho, fazendo paralelos entre a cadeira e a Fazenda Cajueiro e, na doce ilusão de que um dia seria solto, dizia ao traidor que após ficar livre, não hesitaria em matá-lo.

Ainda com referência ao fato, o Sr. Abdias Pereira Dantas, numa conversa com o autor em Nazarezinho, no dia 04.01.1985, assim falou:

‘Só me queixo da morte do finado Chico, de João Suassuna. Depois que Chico morreu, ele mandou me chamar para conversar. Respondi que, com um bandido da qualidade dele, não queria conversa. Quem fez o assalto à casa do Cel. Quincó foi o sobrinho dele.’

Ainda par tornar mais clara a contradição da Justiça, o Pe. Francisco Pereira Nóbrega falou ao autor em João Pessoa, em 10.01.1985, que, no momento do assalto, seu pai se encontrava no município de Pombal. Ele é também dos que acreditam na hipótese do assalto ter sido programado naquele lugar.

Pelo menos uma coisa não se põe em dúvida: a morte de Chico estava programada. Isto está confirmado no depoimento de um soldado sobrevivente que reproduziu um diálogo entre Juvenal Lamartine e o Tem. Joaquim de Moura. O Presidente solicitou a presença do Tenente em seu gabinete e a ele assim se dirigiu:

- É verdade que aquele cangaceiro da Paraíba vai voltar para Acari?

- É, sim.

- Olhe! Não quero esse homem vivo.

Essa determinação, a priori, até dispensa pesquisadores de fazer exames mais apurados sobre notas de jornais diversos, tais como:

Correio de Campina – 17.12.1928. ‘Teria sido Chico Pereira vitimado mesmo de um desastre de carro? Pessoas residentes no interior do Estado (Rio Grande do Norte) põem dúvida à afirmação. O Presidente potiguar é acusado de mandar fuzilar sumariamente os sertanejos acusados.’ (Livro Vingança, Não, pág. 254).

Diário da Manhã, de Recife (PE) – 02.11.1928. ‘Chico Pereira, preso há pouco, ao ser transportado para a cidade de Acari, onde devia ser julgado, foi morto de ordem superior pelos policiais que o conduziam. Alegou-se que o carro que o conduzia capotou, verificando-se terrível desastre.’ (Livro ‘Vingança, Não’, pág. 254).”



Pág. 102:

“O Sr. José Pereira da Costa, cidadão de Ouro Branco, tabelião da cidade e curioso das histórias da região, assim detalhou o fato, em 09.07.1984:

‘Chico Pereira chegou preso a Santa Luzia na companhia do Ten. Manoel Arruda e alguns soldados. O Ten. Francisco Honorato, de Serra Negra do Norte, foi indicado para recebê-lo. Chico vinha de paletó e gravata e isso provocou censura da parte do Tenente:

- Como se conduz um bandido de paletó e gravata? Isso é um cachorro de fila.

Em seguida, com arrebates, tirou o paletó e a gravata de Chico e autorizou os soldados a lhe colocarem as algemas. O Ten. Francisco Honorato esperava que o matador de Chico fosse ele. Porém a ordem do governo veio para o Ten. Joaquim de Moura. Ele ficou revoltado.’”

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DOS CORONÉIS - XI

CONTINUAÇÃO...

Outros indícios se acumulam quanto à existência de um plano – o de matar o Coronel Rodolpho Fernandes – dentro do plano de Lampião invadir Mossoró em busca de dinheiro. Abaixo esses indícios serão elencados, como perguntas, um por um. Não há resposta para elas. Pelo menos até onde se sabe. E, embora juntas permitam vislumbrar um todo coerente, dispersas, fragmentadas, fora do contexto que lhes dá razoabilidade, são folhas ao vento, só muito remotamente apontando para as árvores de onde caíram.

Por que Massilon, especificamente Massilon, o executor de Brejo do Cruz e Apodi, servindo às mesmas pessoas, escolheu atacar os fundos da casa de Rodolpho Fernandes, enquanto Jararaca distraia os defensores pela frente?

Por que todo o ataque de Lampião se concentrou contra a casa de Rodolpho quando, se de fato os cangaceiros queriam exclusivamente dinheiro, o alvo principal seria a agência do Banco do Brasil, onde até a véspera estavam guardados mais de novecentos contos de réis?

Por que não atacaram a residência do Gerente do Banco do Brasil em busca de resgate, como supostamente queriam fazer com o Prefeito?

Aliás, por que todas as trincheiras importantes visavam proteger a casa de Rodolpho? Tanto a da Estação Ferroviária, quanto a da Igreja de São Vicente eram ocupadas por fiéis amigos do Prefeito e guardavam diretamente sua residência.

Por que o Promotor e o Juiz não abriram processo alusivo à invasão de Mossoró por Lampião? O quê o processo – se aberto – traria à luz? O que se queria ocultar em não o abrindo?

Por que mataram Jararaca na calada da noite? Qual a relação existente entre sua morte e o seu recado mandado para o Coronel Rodolpho Fernandes pedindo para falar com ele?

Por que os executores de Jararaca não foram processados?

O episódio da morte de Jararaca é bastante revelador. Sérgio Dantas nos conta: (...) “no mesmo dia em que fora preso, Jararaca concedera bombástica entrevista ao jornalista Lauro da Escóssia, do noticiário “O Mossoroense”. Não mediu palavras.” Mais a frente, continua o historiador: “Jararaca pisou em terreno minado. Logo percebeu que tornara pública parte de uma teia intocável. Suas incisivas declarações puseram em dúvida a probidade moral de destacados chefes políticos de estados vizinhos. A repercussão das declarações, claro, fora inevitável. Decerto, o bandido temeu pela própria vida. Pressentira algum perigo. Chamou um militar, ainda cedo da tarde. Expressou-lhe o desejo de falar em particular com o Intendente Rodolpho Fernandes. O pedido, no entanto, lhe foi negado sem maiores explicações. A caserna tinha outros planos para o cangaceiro. À surdina, ensaiou conspiração. Tramaram abjeto extermínio e apostaram no sigilo. Sem mais demora executou-se o plano.”

Em tudo e por tudo está certo Sérgio Dantas. Somente errou quando afirma que as declarações de Jararaca puseram em dúvida a probidade moral de chefes políticos de estados vizinhos. Não colocou em dúvida, Jararaca, a probidade moral de ninguém fora dos limites de Mossoró ou cidades vizinhas, como Apodi. Colocou sim, em dúvida, a probidade moral de alguns que estavam próximo, bem próximo. Não seria possível as declarações de Jararaca terem chegado ao Ceará, por exemplo. Naquele tempo não havia sequer telefone. Havia, claro, telégrafo. Quem, no entanto, enviaria informações comprometedoras pelo telégrafo e, através dele, discutiria um plano para a eliminação do cangaceiro, principalmente quando o Chefe do Telégrafo de Mossoró era irmão do Chefe de Polícia do Governador do Estado? Como isso seria possível?

Também não seria possível enviar, a cavalo ou de automóvel, com tempo suficiente, informações alusivas à entrevista de Jararaca para os estados vizinhos. Não. O que Jararaca disse, e o que queria dizer a Rodolpho incomodou alguns que estavam por perto, perto o suficiente para tramar sua morte.
 
Finaliza o pesquisador Sérgio Dantas: “Jararaca sucumbira. Morreu porque sabia demasiado.” Mais a frente: “Findou o terrível salteador nas primeiras horas da manhã. Sua morte, entretanto, já havia sido decretada há dias. O laudo do exame cadavérico, por exemplo, fora assinado ainda na tarde do dia dezoito. E assim foi. Horas antes da execução e sob escuso pretexto de rotina, examinavam-se ferimentos de um corpo, sofridos durante uma batalha. Logo depois se chancelava, com base em conclusões médico-legais, documento de óbito de homem ainda vivo.”

Há, pois, muitas razões para supor que dentro do plano de invadir Mossoró em busca de suas riquezas, havia um outro plano, que teria como objetivo a eliminação do Coronel Rodolpho Fernandes.

E, assim, terminamos esta série de artigos acerca do coronelismo no Rio Grande do Norte comprovando que, ao contrário do que se supõe, esse fenômeno existiu, e nos mesmos moldes dos estados vizinhos, embora em menor escala.

FIM














domingo, 8 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DOS CORONÉIS - X



Pela ordem: Massilon, Lampião e Sabino

CONTINUAÇÃO...

Enquanto isso os planos dos inimigos do Coronel Rodolpho prosseguiam. Não seria possível sua eliminação pura e simples. Seria um escândalo nacional. Mossoró, como visto acima, rivalizava com Natal em tamanho e importância. Era o escoadouro natural para onde desaguavam todos os comerciantes do sertão paraibano e norteriograndense. Boa parcela do Ceará também freqüentava Mossoró. Além disso Mossoró ficava a meio caminho entre Natal e Fortaleza. Uma cidade rica e próspera.
 
“E se conseguirmos embutir o projeto de eliminação de Rodolpho Fernandes em um outro projeto maior, que funcionaria como cortina de fumaça? Em primeiro lugar, invadimos Apodi, saqueamos seus homens de recursos, matamos o Coronel Francisco Pinto; depois, logo depois, antes que a confusão baixe o pó, invadimos Mossoró, saqueamos o que pudermos e, enquanto o ataque acontece, um grupo especialmente preparado invade a casa do Prefeito de Mossoró e o mata. Para essa parte nós precisamos de muitos cangaceiros. Somente Lampião tem liderança e capacidade para comandar essa invasão.”
 
Foi assim que aconteceu? Concretamente não se sabe. Os indícios, entretanto, estão aí, para quem quiser analisá-los, relacioná-los e descobrir o que eles formam. São fortes esses indícios. São como pontos de uma malha, intersecções de uma rede, elementos conectados de um todo, aguardando que alguém consiga tirá-los da sombra e trazê-los para a luz do sol, revelando a verdade que o tempo cada vez mais condena ao esquecimento. Os personagens são citados na literatura acerca do assunto, uns mais, outros menos. O Coronel Rodolpho Fernandes; O Coronel Francisco Pinto; o jagunço Massilon Benevides; Lampião, o rei do cangaço; o Coronel Isaías Arruda; o misterioso Júlio Porto; os adversários políticos dos coronéis citados acima, cuja liderança vem de Brejo do Cruz, passando por Apodi, até chegar em Mossoró.
 
Para que seja possível a teoria de que a invasão de Mossoró por Lampião ocultava o projeto de matar Rodolpho Fernandes, é preciso que essa trama tenha sido anterior à entrada, nele, do rei do Cangaço, do Coronel Isaías Arruda e do próprio Massilon Leite. Haveria indícios que isso seria possível? Haveria. O primeiro indício, já apontado acima, seria o interesse político em descartar Rodolpho Fernandes de sua liderança no Oeste e Alto Oeste Potiguar. A prova desse interesse é a o menosprezo e a agressividade com a qual o Prefeito é tratado quando expõe a possibilidade de invasão da cidade; outra é o permanente trabalho de intriga contra si realizado junto a José Augusto Bezerra de Medeiros, governador do Estado, já relatado.
 
Cabe lembrar que o Prefeito de Pau dos Ferros, em 1927, Coronel Adolpho Fernandes, era adversário político de José Augusto. Este destronara os Maranhão do poder e, assim, lançara na oposição, em Pau dos Ferros, os seus aliados naquela região. Aliados que receberam todo o suporte de Ferreira Chaves, o último da oligarquia Maranhão a governar o Estado, para promover a tomada, pela força das armas, contra o Coronel Joaquim Correia, em Pau dos Ferros. Mágoas antigas, mal curadas, que redundaram no descaso proposital com que José Augusto lidou com o pedido de socorro que Rodolpho Fernandes lhe enviou, como nos conta Raul Fernandes : “Apelaram ao Governador do Estado. (...) ‘Desiludidos de qualquer providência do Governo Estadual’, os mossoroenses compreenderam que teriam de contar com os próprios recursos.”
 
Que Lampião não sabia acerca do que se tramava pensando em usá-lo, nos deu conta Jararaca, em depoimento já transcrito, mas que vale a pena relembrar: “Lampião nunca tencionara penetrar nesse Estado porque não tinha aqui nenhum inimigo e se por acaso, para evitar qualquer encontro com forças de outros Estados, tivesse que passar por qualquer ponto do Rio Grande do Norte, o faria sem roubar ou ofender qualquer pessoa, desde que não o perseguissem.” E quanto ao Coronel Isaías Arruda? Teria sido de sua lavra o plano maquiavélico? É bem possível. Mas como toda essa história chegou a ele? Por que Isaías Arruda resolveu planejar toda a operação contra Apodi e Mossoró, e, dissimuladamente, um plano dentro do plano, contra Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes?

É agora que entra em cena o misterioso Júlio Porto. Este personagem era de Aurora, no Ceará, mesma cidade onde nascera e exercia enorme influência o Coronel Isaías Arruda. Em 1927 tem vinte e três anos de idade. Júlio Porto não era Porto. Seu verdadeiro nome era Júlio Sant’anna de Mello. O Porto viera de sua estreita ligação com Martiniano Porto. Este, por sua vez, fidalgote nas terras do Apodi, era inimigo sangue-a-fogo do Coronel Francisco Pinto. Já o conhecemos do episódio do assassinato do Coronel. Ligado por laços de interesse recíprocos, a Tylon Gurgel e Benedito Saldanha, futuro prefeito da cidade, outros fidalgotes ferrenhos opositores de Francisco Pinto. Tylon Gurgel, sogro de Décio Albuquerque, e Benedito Saldanha , protetor de Massilon Leite, que se considerava “afilhado” de seu irmão, o Coronel Quincas Saldanha.

Júlio Porto deve ter sido o elo de ligação entre os inimigos políticos de Francisco Pinto, Rodolpho Fernandes, e Isaías Arruda (quando invadiram Apodi os cangaceiros deixaram claro que iriam invadir Mossoró). Está presente em todos os momentos cruciais ligados à invasão de Apodi e Mossoró. Sendo de Aurora, Ceará, com certeza conhece José Cardoso, proprietário da Fazenda “Ipueiras”, parente do Coronel Isaías Arruda. A ele apresenta Décio Albuquerque, genro de Tylon Gurgel, por sua vez amigo de Martiniano Porto. Dissera a Décio, representante do consórcio contrário a Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, talvez, que José Cardoso era o homem certo para se chegar ao Coronel Isaías Arruda e, através dele, a Lampião. Brejo do Cruz; Apodi; Aurora. A malha se fecha, mas se expande. Reforça-se.

O segundo indício do projeto oculto de matar Rodolpho Fernandes quando da invasão de Mossoró é que não foi o Coronel Isaías Arruda o idealizador do ataque à cidade. Ele planejou, obviamente, e deu apoio logístico, mas a idéia lhe foi trazida de fora. Décio Holanda a levou. Foi o emissário e era um dos beneficiários, na medida em que o ataque a Apodi eliminaria Francisco Pinto, seu e do seu sogro, inimigo pessoal e político.

Isaías Arruda foi convencido por Décio. Com a mentalidade rapace da qual era possuidor, percebeu que sairia ganhando de qualquer forma: aceitou planejar a empreitada, atrair Lampião, fornecer armas e munição por que nada tinha a perder. Com certeza, ao tomar conhecimento do plano dentro do plano, deve ter cobrado um “por fora”. E pôs mãos a obra. Sérgio Dantas nos conta: “Em dias de abril daquele ano , o sinistro caudilho recebera importante solicitação. Décio Holanda – destacado fazendeiro do município de Pereiro, no Ceará – pediu-lhe que colocasse a “cabroeira” particular a seu serviço, posto que planejava tomar de assalto a cidade de Apodi, no Estado vizinho.”

CONTINUA...









sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NOS TEMPOS DOS CORONÉIS - IX

CONTINUAÇÃO...
 
Estamos em 1927. O Coronel Rodolpho Fernandes é o Prefeito de Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte. Mossoró rivaliza com Natal, a capital. Sua população, incluindo a do município, era de 20.300 habitantes. Natal alcançava 30.600, nos diz Raul Fernandes em “A Marcha de Lampião”; Editora universitária; Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 1981; 2ª edição; Natal, Rn. A ascensão ao poder do Coronel revela o predomínio político que sua família, descendente de um português casado com uma filha do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, adquirira ao longo do tempo, e que se baseava, fundamentalmente, na exploração industrial da cultura do algodão.
 
Aqueles eram novos tempos, o Coronel o pressentia. O Sertão, através de José Augusto Bezerra de Medeiros granjeara, para si, o poder que os Maranhão, ricos usineiros do açúcar, entregaram lentamente aos coronéis proprietários de terra onde o algodão brotava e enriquecia. Mas esse mesmo poder, calcado na terra, cedia, agora, pro sua vez, espaço a uma burguesia que se firmava por intermédio da industrialização e do comércio em larga escala. Os Fernandes estavam à frente desse processo de mudança e iriam viver seu apogeu logo mais, após a vitoriosa campanha do Partido Popular contra Mário Câmara, com a eleição do médico Rafael Fernandes para dirigir os destinos do Rio Grande do Norte.
 
Enquanto não se consolidava de vez o poder nas mãos dos Fernandes, na capital seguidores de José Augusto olhavam com preocupação esse avanço político da família alto-oestana em Mossoró, líder inconteste do Oeste Potiguar, sob o comando de Rodolpho, e no Alto Oeste, cuja cidade principal, Pau dos Ferros, já era dominada pelo Coronel Adolpho Fernandes, seu primo. De Mossoró para dentro, até a fronteira com a Paraíba, portanto de Martins a Luis Gomes, os Fernandes dominavam. Em Apodi, embora o Coronel Chico Pinto não fosse Fernandes, era correligionário e amigo pessoal do Prefeito de Mossoró.
 
A oposição não descansava, era aguerrida e chegava até os salões do Palácio do Governo, onde auxiliares diretos de José Augusto o intrigavam junto a Rodolpho Fernandes e vice-versa. Em carta dirigida ao escritor Nertan Macedo, Paulo Fernandes, filho de Rodolpho, chega a ser enfático quanto a essa intriga entre os dois líderes políticos: “O Governador do Rio Grande do Norte, Doutor José Augusto Bezerra de Medeiros e o seu chefe de polícia, Desembargador Manoel Benício de Melo, estavam à época, em franco dissídio com o prefeito de Mossoró (meu pai); O Sr. Mirabeau Melo, chefe da repartição do telégrafo em Mosssoró era irmão do chefe de polícia, e atuava como informante das coisas locais e porta voz do governo era um medíocre intrigante, inadequado para a missão que o destino lhe reservou pois tanto o governador do estado e seu chefe de polícia como o prefeito de Mossoró eram homens de bem e do mesmo partido político de modo só se compreende o dissídio entre eles em torno do problema de interesse público em virtude da ação maléfica de mexeriqueiros ” (...).
 
Tal oposição chegou ao cúmulo de tentar levar o Coronel Rodolpho, um homem sério, respeitado, ao ridículo, como nos lembra Paulo Fernandes na mesma carta: “As advertências à população e providências tomadas por meu pai eram exploradas pela oposição até com o ridículo. Chamavam-no, por exemplo, de velho medroso, por se preocupar com um possível ataque de Lampião à cidade” (...). Raul Fernandes confirma: “Adversários políticos e maledicentes desfrutavam, com vantagem, o receio do Prefeito.”
 
A par dessa situação política tensa, na qual vivia o Prefeito, o futuro parecia promissor: sua liderança em Mossoró era inconteste, a cidade crescia a olhos vistos sob sua administração, dois dos seus três filhos homens faziam medicina fora e voltariam, brevemente, para dar continuidade a seu legado político, e sua família era, naquele período, uma das mais ricas do Estado.
 
Mesmo assim o Coronel Rodolpho não descuidava. Conhecia bem os meandros da política interiorana. Não saía de sua lembrança a forma violenta através da qual seus parentes de Pau dos Ferros tomaram o poder naquela cidade. As histórias acerca do cangaço corriam de boca-em-boca pelas praças e ruas da cidade, sempre envolvendo coronéis e disputas políticas como pano-de-fundo. Notícias vindas do Acre davam conta das aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, irmão do Coronel Adolpho Fernandes, repletas de violência. O Coronel Chico Pinto lhe punha a par dos desmandos de seus adversários que iriam redundar na invasão da cidade por Massilon e em seu assassinato anos depois. As estripulias de Massilon em Brejo do Cruz, agindo a mando de pessoas que também tinham interesses políticos em Apodi; as histórias oriundas do Cariri cearense, de deposição de Coronéis por outros Coronéis através das armas, tudo isso lhe trazia profunda preocupação.
 
Assim, pareceu-lhe particularmente preocupante algumas informações que pessoas a si ligadas por laços comerciais e afetivos lhe fizeram chegar aos ouvidos por aqueles dias do começo do ano de 1927. É como nos diz seu filho Raul Fernandes, na obra mencionada acima: “Na última quinzena de abril, de 27, a notícia veio à luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal , escreveu ao compadre Rodolpho Fernandes sobre a pretensão dos chefes de bandidos. Dos remotos sertões de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa empreitada.”
 
Raul Fernandes diz mais a frente, em nota: “Ouvi de meu pai referências à missiva”. Quem agenciava essa empreitada? A mando de quem? Com qual objetivo oculto, escondido por trás da cortina de fumaça que era a invasão da cidade em busca de suas riquezas, agiam seus autores intelectuais? Com certeza Lampião não sabia do que se tramava contra Mossoró ou contra o Coronel Rodolpho Fernandes. Sérgio Dantas, em “Lampião e o Rio Grande do Norte”; Cartgraf Gráfica Editora; 1ª edição; 2005; Natal, Rn, é enfático quanto a isso, transcrevendo testemunho de Jararaca que ouvira as conversas do cangaceiro com o Coronel Isaías Arruda acerca do plano de invasão de Mossoró: “Lampião nunca tencionara penetrar nesse Estado porque não tinha aqui nenhum inimigo e se por acaso, para evitar qualquer encontro com forças de outros Estados, tivesse que passar por qualquer ponto do Rio Grande do Norte, o faria sem roubar ou ofender qualquer pessoa, desde que não o perseguissem.”
 
O Coronel Rodolpho Fernandes sabia mais que deixou transparecer naquele momento. Não falou a seus filhos acerca de tudo quanto estava por trás desse agenciamento que acontecia no Sertão paraibano e cearense; tampouco disse qualquer coisa a seus interlocutores, nas reuniões onde expôs a possibilidade de invasão da cidade por Lampião e os convocou para a defesa, que tenha sido registrado para a história. Pressentia, entretanto, que o ataque à cidade, se viesse a acontecer, ocultava outro plano, cujo objetivo era ele. Que outra explicação pode ser dada, se não essa, para a excessiva concentração de forças defensoras no entorno de sua residência, quando era sabido que ele, individualmente, jamais teria, consigo, dinheiro suficiente para qualquer resgate que valesse a empreitada do ataque a Mossoró?
 
CONTINUA...












quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DO CORONELISMO - VIII

O ATAQUE A MOSSORÓ

Continuação...

Começo de 1926. Como em todos os finais-de-tarde em Brejo do Cruz, no Sertão paraibano, formar-se-ia uma roda na calçada na frente da casa de Antônio Dutra de Almeida. Doutor Joca Dutra (João Minervino de Almeida), Paulino Dutra de Morais, José Targino, Doutor Francisco Augusto de Resende (Juiz Distrital) se fariam presentes. As cadeiras, dispostas dia-a-dia nos mesmos lugares, eram, pelo hábito, marcadas: receberiam sempre os mesmos ocupantes. Em certo momento daquela tarde José Targino e Doutor Joca Dutra, que já haviam chegado, levantam-se e vão tomar água no interior da casa. Nas cadeiras nas quais eles estavam sentados, inexplicavelmente sentam-se Paulino Dutra de Morais e Doutor Francisco Augusto de Resende que acabavam de chegar. Escurece. Um atirador solitário toma posição a alguma distância, do outro lado da rua, e, de rifle, depois de fazer mira cuidadosamente, atira nos ocupantes das duas cadeiras que lhe tinham sido previamente assinaladas, em conversa anterior. Doutor Francisco Augusto de Resende tomba morto. Paulino Dutra de Morais, ferido, faz menção de se levantar. O atirador aproxima-se e desfecha várias facadas em Paulino Dutra. Ao terminar observa atentamente o semblante do homem morto e grita: “matei um inocente”. Recolhe as armas, monta a cavalo, pica o flanco do anima com as esporas e some na escuridão da noite. Era Massilon.
 
Termina, ali, o domínio político dos Dutra. O poder migra para as mãos dos Maias e Saldanha. Massilon, que era comprador/vendedor de gado quando entrou no cangaço, ao voltar do Sítio Japão, para onde o pai emigrara, vindo de Pombal, na Paraíba, matara, em Belém do Brejo do Cruz, um soldado que fora mandado pelo pretendente ricaço de uma moça por quem se enamorara, e que gostava do rapaz claro, de cabelo fino, vaidoso, trabalhador, já conhecido na Região, para lhe tomar a arma e lhe desmoralizar no dia da feira . Essa morte teria sido depois de 1924, talvez 1925, antes de sua família ir para Luis Gomes, o que ocorreu em 1925. Tércia Guedes de Araújo, tia de Massilon, em entrevista gentilmente cedida pelo pesquisador e escritor Sérgio Dantas, afirma tê-lo visto em Pombal, Paraíba, depois do episódio.
Massilon sabia que na Paraíba não havia mais lugar para ele. Dos beneficiários dos seus crimes obteve passaporte e amparo para começar outra vida longe dali. Cortou o território do Alto Oeste potiguar e reapareceu no Ceará, mais precisamente em Alto Santo, sob a proteção de Benedito Saldanha, grande proprietário rural na Região, irmão de Quincas Saldanha, por sua vez latifundiário em Brejo da Cruz e Caraúbas, Rio Grande do Norte.
 
Alexandro Gurgel conta outra versão. Em artigo para o jornal mossoroense “A Gazeta do Oeste” acerca de Massilon, louvando-se em entrevista feita com Pedro Dantas Filho, falecido em 2002 com 88 anos, natural de Belém do Brejo do Cruz, que afirmava ter conhecido o cangaceiro, diz-nos que o Delegado dessa cidade, homem valente e hostil, havia proibido o povo de andar armado. Nada teria acontecido com Massilon se alguém não tivesse ido à polícia denunciá-lo. Cercado por trás da igreja local e segurado por um seu amigo chamado “Mané Forte”, que pretendia convencê-lo a se entregar, mesmo assim Massilon trocou tiros e atingiu um policial matando-o. A partir de então enveredou pelo crime.
 
Raimundo Nonato lembra que Jararaca dissera ter Massilon Leite declarado serem suas as mortes de Brejo do Cruz, o que corrobora o relato feito acima. Sérgio Augusto de Souza Dantas nos lembra que Massilon foi almocreve. É verdade. Entretanto, quando da morte do policial em Belém do Brejo do Cruz já era comprador/vendedor de gado. É o que nos relata o Capitão Viana, bem como os irmãos de Massilon Tércia e Zé Leite, em entrevista que o escritor gentilmente nos cedeu.
 
Fomos em busca de uma “memória viva”, para escrever a saga de Massilon. Quando chegamos à residência do Capitão Viana – Francisco Viana – em Macaíba, Rn, encontramos um velhinho seco de carne e temperamento, vestido com um pijama azul claro à antiga, daqueles cujas camisas são de manga comprida, sentado em uma cadeira de balanço e lendo a Bíblia. Recebeu-nos muito bem e logo mandou servir café. O Capitão Viana tinha, na data da entrevista, noventa e três anos muito bem vividos. Longa prole, alguns poucos bens, saúde saltando à vista, memória fantástica. Durante a entrevista em nenhum momento titubeou quanto as informações prestadas. Ao tentarmos falar acerca de sua atuação como policial em alguns casos mais escabrosos fechou a cara e disse, abruptamente: “isso é segredo de polícia, não posso dizer nada”. Foi delegado, entre outras cidades, de Apodi, Macau, Açu, Caraúbas, Nova Cruz, São Tomé, e Areia Branca.
 
Pois bem, o Capitão Viana, quando menino lá em Alto Santo, então distrito de Limoeiro do Norte, conheceu Massilon – embora de longe, só de vista, como se diz no Sertão. Mas fornece vários dados importantes acerca do cangaceiro: “Massilon, depois do ataque a Apodi, nunca mais voltou lá. Em 1940, quando fui Delegado de Apodi, já não se falava mais nele. Massilon era jagunço de Décio Hollanda, lá de Pereiro, e foi jagunço de Benedito Saldanha. Antes de Apodi Massilon morava com Décio Hollanda, no Pereiro, Fazenda Bálsamo. Ele vivia de comerciar gado, era marchante, não tem cabimento essa história de sapateiro que o cangaceiro Bronzeado que você falou conta. Eu sou testemunha de tudo isso por que morei em Alto Santo até os quinze anos, quando fui para São João do Jaguaribe. Na época da invasão de Apodi eu estava em Taboleiro do Norte. De lá fui para São Paulo. Em 1934 voltei para o Rio Grande do Norte e sentei praça na polícia.”
 
Esse mesmo Massilon que foi apontado pelo Capitão Viana como tendo sido jagunço de Benedito Saldanha, era protegido de Quincas Saldanha, seu irmão, a quem chamava de “Padrinho”, segundo Deusdedite Fernandes Pimente, a quem entrevistei, juntamente com Franklin Jorge e Kydelmir Dantas, em Março de 2009, na sua Caraúbas natal. Conta-nos Franklin em seu “Blog”: “CARAÚBAS – Passei a tarde de sábado em Caraúbas, para onde fui a convite de Honório de Medeiros e Kydelmir Dantas, que iam com a missão de entrevistar Deusdedite Fernandes Pimenta. Ele nos recebeu em sua casa em animada “sessão nostalgia”, quando recordou que estivera nos braços do famoso Massilon Leite, incentivador de Lampião no ataque a Mossoró, fato ocorrido em 1927. Em voz clara e cheia de energia, evocou ainda outras figuras populares de Caraúbas, entre as quais a não menos famosa de Quincas Saldanha que há mais de cinqüenta anos aterrorizou uma vasta região, cuja casa forte, um digno exemplar da arquitetura rural sertaneja, centro político da sua propriedade rural retalhada por seus herdeiros, ainda continua de pé, incorporada já ao perímetro urbano do município. Homem corpulento e cordial, de 83 anos, Deusdedite tinha apenas alguns meses de vida quando a fazenda Timbaúbas, do seu avô Hipólito Fernandes, foi invadida por Massilon que se fazia acompanhar por oito ou dez cabras armados, onde pernoitou e trocou uma sela nova pela velha que trazia. Na saída, vendo-o nos braços da babá, tomou-o nos próprios braços e depois de alguns minutos o devolveu à negra que, assustada, tremia.”
 
Vamos encontrar o rastro de Massilon em São Miguel, Rio Grande do Norte, em 1926, conforme nos conta Zenaide Almeida Costa: “Eram quatro horas da tarde do dia 2 de fevereiro, quando João Grosso chegou correndo, esbaforido. Vinha de cima da serra, na estrada da vila, de onde avistara o mar de gente que se aproximava.”
 
“Na vila os Revoltosos abriram algumas portas de casas comerciais, tirando delas apenas os mantimentos necessários à sua alimentação naquele dia. Saíram à tarde, deixando somente o medo e alguns cavalos estropriados, trocados por cavalos sadios que, apesar de escondidos nas matas dos sítios, com os focinhos amarrados e de cabaça para cima, foram encontrados e surrupiados. Baixaram as águas, mas como sói acontecer, a epidemia chegou no dia seguinte muito cedo e sem aviso! Um marginal, alcunhado de ‘Sargento Preto’, embriagado, desgarrado da Coluna e em companhia de indivíduos da mesma estirpe, arrombou casas comerciais, distribuindo mercadorias com pessoas que estavam regressando à vila, despejando gêneros, tecidos, miudezas e bebidas no meio da rua. Saiu de porta em porta chamando quem ainda não tinha se apresentado (por timidez ou honestidade) para receber seus ‘donativos’. Abriu o cartório e em frente ao prédio, fez uma pilha de todos os livros e documentos, despejou querosene por cima, ateou fogo. Desapareceu depois do saque. Dois dias após chegou outro grupo vestido de mescla azul, com bonés do mesmo pano, dizendo-se ‘patriotas’. novo saque em todas as casas comerciais e de residência. tomaram armas, munições, animais, o que sobrou de víveres, provocaram brigas nas ruas. Era o grupo de Massilon, semelhante ao de Lampião, que imperava naquelas quebradas de serra e nos sertões, armado, fardado, e segundo eles próprios afirmavam, autorizados pelo Padre Cícero Romão Batista, do Juazeiro, a combater a coluna prestes. saíram deixando a desolação, o pânico, tudo depredado, arrasado!”
 
O que uniu Massilon, assassino confesso dos Dutra em Brejo do Cruz; contratado para matar o Coronel Francisco Pinto, de Apodi, Rn; lugar-tenente de Lampião na invasão de Mossoró, quando tentou entrar na casa do Coronel Rodolpho Fernandes pelos fundos; o Coronel Isaías Arruda, financiador da invasão a Mossoró e os Coronéis Quincas e Benedito Saldanha? Que foi Júlio Porto e qual sua participação nesses fatos históricos?

Estamos em 1927. Rodolpho Fernandes é o Prefeito de Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte. Sua ascensão ao poder revela o predomínio político que sua família, descendente de um português casado com uma filha do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, adquirira ao longo do tempo, e que se baseava, fundamentalmente, na exploração industrial da cultura do algodão.
 
Aqueles eram novos tempos. O Sertão, através de José Augusto Bezerra de Medeiros granjeara, para si, o poder que os Maranhão, ricos usineiros do açúcar, entregaram lentamente aos coronéis proprietários de terra onde o algodão brotava e enriquecia. Mas esse mesmo poder, calcado na terra, cedia, agora, espaço a uma burguesia que se firmava por intermédio da industrialização e do comércio. Os Fernandes estavam à frente desse processo de mudança e iriam viver seu apogeu logo mais, após a vitoriosa campanha do Partido Popular contra Mário Câmara, com a eleição de Rafael Fernandes para dirigir os destinos do Rio Grande do Norte.
 
Enquanto não se consolidava de vez o poder nas mãos dos Fernandes, na capital seguidores de José Augusto olhavam com preocupação esse avanço político em Mossoró, líder inconteste do Oeste Potiguar, sob o comando de Rodolpho, e no Alto Oeste, cuja cidade principal, Pau dos Ferros, era dominada pelo Coronel Adolpho Fernandes, seu primo. De Mossoró para dentro, até a fronteira com a Paraíba, portanto de Martins a Luis Gomes, os Fernandes dominavam. Em Apodi, embora o Coronel Chico Pinto não fosse Fernandes, era correligionário e amigo pessoal do Prefeito de Mossoró.
 
A oposição não descansava, era aguerrida e chegava até os salões do Palácio do Governo, onde auxiliares diretos de José Augusto o intrigavam junto a Rodolpho Fernandes. Em carta dirigida ao escritor Nertan Macedo, Paulo Fernandes, filho de Rodolpho, chega a ser enfático em relação a essa intriga entre os dois líderes políticos: “O Governador do Rio Grande do Norte, Doutor José Augusto Bezerra de Medeiros e o seu chefe de polícia, Desembargador Manoel Benício de Melo, estavam à época, em franco dissídio com o prefeito de Mossoró (meu pai); O Sr. Mirabeau Melo, chefe da repartição do telégrafo em Mosssoró era irmão do chefe de polícia, e atuava como informante das coisas locais e porta voz do governo era um medíocre intrigante, inadequado para a missão que o destino lhe reservou pois tanto o governador do estado e seu chefe de polícia como o prefeito de Mossoró eram homens de bem e do mesmo partido político de modo só se compreende o dissídio entre eles em torno do problema de interesse público em virtude da ação maléfica de mexeriqueiros ” (...).
 
Tal oposição chegou ao cúmulo de tentar levar Rodolpho, um homem sério, respeitado, ao ridículo, como nos lembra Paulo Fernandes na mesma carta: “As advertências à população e providências tomadas por meu pai eram exploradas pela oposição até com o ridículo. Chamavam-no, por exemplo, de velho medroso, por se preocupar com um possível ataque de Lampião à cidade” (...).
 
A par dessa situação política tensa, na qual vivia o Coronel Rodolpho Fernandes, o futuro parecia promissor: sua liderança em Mossoró era inconteste, a cidade crescia a olhos vistos sob sua administração, dois dos seus três filhos homens faziam medicina fora e voltariam, brevemente, para dar continuidade a seu legado, e sua família era, naquele período, uma das mais ricas do Estado.
 
Mesmo assim o Coronel Rodolpho não descuidava. Não saía de sua lembrança a forma violenta através da qual seus parentes de Pau dos Ferros tomaram o poder naquela cidade. As histórias acerca do cangaço corriam de boca-em-boca pelas praças e ruas da cidade. Notícias vindas do Acre davam conta das aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, irmão do Coronel Adolpho Fernandes, todas repletas de violência. O Coronel Chico Pinto lhe punha a par dos desmandos de seus adversários que iriam redundar na invasão da cidade por Massilon e em seu assassinato anos depois. As estripulias de Massilon em Brejo do Cruz, agindo a mando de pessoas que tinham interesses políticos em Apodi; as histórias oriundas do Cariri cearense, de deposição de Coronéis por outros Coronéis através das armas, tudo isso lhe trazia profunda preocupação.
 
Assim, pareceu-lhe particularmente preocupante algumas informações que pessoas a si ligadas por laços comerciais e afetivos lhe fizeram chegar aos ouvidos por aqueles dias do começo do ano de 1927.

Continua...




















terça-feira, 3 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DO CORONELISMO - VII

O ATAQUE A MOSSORÓ PELO BANDO DE LAMPIÃO

CONTINUAÇÃO...


Nos anos vinte ocorreram várias mudanças significativas em termos de poder político no Rio Grande do Norte. José Augusto Bezerra de Medeiros, do Seridó, herdeiro político do Coronel José Bernardo de Medeiros, transferiu o centro das decisões para o Sertão, correspondendo, quanto ao econômico, à ascendência da cultura algodoeira no Estado. É o que lemos em “História do Rio Grande do Norte”, de Luiz Eduardo Brandão Suassuna e Marlene da Silva Mariz; Sebo Vermelho; 2ª. Edição revisada; 2005; Natal, Rn.



José Augusto e Juvenal Lamartine de Faria, seu sucessor e herdeiro político, com o apoio do Presidente Artur Bernardes, conseguiram impedir Joaquim Ferreira Chaves, da oligarquia Maranhão, de chegar ao poder pela terceira vez, e, assim, praticamente decretaram seu fim. “A linha política do governo José Augusto insere-se na conjuntura nacional, com a oligarquia local em plena harmonia com a oligarquia que detém a hegemonia nacional. Um exemplo desse entrosamento é a visita de Washington Luis, em 1926 (após ter sido eleito Presidente da República), ao Rio Grande do Norte”, diz-nos Suassuna e Mariz, acima citados. O poder de José Augusto virá a ser bruscamente interrompida pela Revolução de 1930, embora venha a estar no cerne da vitoriosa campanha do Partido Popular contra Mário Câmara, tão cuidadosamente retratada por Edgar Barbosa em “História de Uma Campanha”.



No que diz respeito a Mossoró a historiografia é avara em relação a essa época, excetuando-se as obras de Raul Fernandes e Raimundo Nonato, que tratam do episódio específico da invasão da cidade por Lampião. Não há, como se constata, mesmo quando consultamos “Notas e Documentos para a História de Mossoró”, de Luis da Câmara Cascudo, ou “História de Mossoró”, de Francisco Fausto de Souza, nada alusivo aos anos vinte.



Sabemos, entretanto, com Cascudo, que o começo da ascendência dos Rosados nasce como século XX, como nos mostra a constituição da Intendência Municipal de Mossoró entre 1917 – 1919, “Presidente da Intendência, ou seja, da Câmara dos Vereadores: Jerônimo Rosado; Vice, doutor Antônio Soares Junior. Intendentes: Sebastião Fernandes Gurgel, Francisco Xavier Filho, Francisco Borges de Andrade, Raimundo Leão de Moura e Camilo Porto de Figueiredo”. “Em 1917 a população do município era de cerca de 16.000 pessoas, 13.000 com residência dentro do perímetro urbano ”, prossegue Cascudo. Observe-se a importância de Jerônimo Rosado em Mossoró, na qual chegara em 1890 a convite do Dr. Almir de Almeida Castro, líder político já nos idos de 1917. Em 1920-1922 Jerônimo Rosado foi intendente (vereador).



1926-1928: Presidente, Rodolpho Fernandes de Oliveira Martins; Vice, Hemetério Fernandes de Queiroz. Intendentes: Luís Colombo Ferreira Pinto, Francisco Clemente Freire, Antonio Teodoro Soares Frota, Manuel Amâncio Leite e Francisco Borges de Andrade ”.



Assim descreve Raul Fernandes a Mossoró da segunda metade dos anos vinte:



“Nos idos de 1927, Mossoró competia com a capital do Estado do Rio Grande do Norte. A população, incluindo a do município, somava 20.300 almas. A de Natal alcançava 30.600. (...) Ligada ao litoral por estrada de ferro que se estendia ao Povoado de São Sebastião, atual Dix-Sept Rosado, na direção oeste, percorrendo quarenta e dois quilômetros. Estradas de rodagem convergiam de vários recantos, sulcadas por caminhões que, aos poucos, substituíam as bestas de carga.”


“Possuía o maior parque salineiro do país. Três firmas descaroçavam e prensavam algodão. Centro comprador de peles, algodão e cera de carnaúba. Exportava pelo porto de Areia Branca. Longos comboios de mercadorias chegavam pelo interior da Paraíba e do Ceará. Voltavam levando sal e variados produtos. A energia elétrica alimentava várias indústrias nascentes. Havia repartições públicas federais e estaduais. A agência do Banco do Brasil era o único estabelecimento de crédito da região.”


“Circulavam três jornais: “O Correio do Povo”, o “Nordeste”, e “O Mossoroense”, o mais antigo do município, fundado em 1872. Existiam dois estabelecimentos para ensino secundário – a Escola Normal e a de Comércio. Dois colégios com internato – o Diocesano Santa Luzia para rapazes, e o Sagrado Coração de Mari, dirigido por religiosas franciscanas, portuguesas, para moças.”



“No “Cine-Teatro Almeida Castro”, rodavam filmes mudos, acompanhados ao piano e ao violino. Dois clubes de futebol – Humaitá e Ipiranga – nas suas disputas e festas, apaixonavam e dividiam a cidade. O folclore mantinha presente fatos distanciados que impressionavam a região. A canção Corujinha evocava o lendário e romântico cangaceiro Jesuíno Brilhante, dos idos de 1876. A música mais conhecida era a melodia Vassourinha, com letra adaptada à campanha política contra a oligarquia dos Maranhão .”



Entrevistei, acerca dos anos vinte em Mossoró, Dona Bernadete – Maria Bernadete Leite Duarte – que guarda, aos oitenta e cinco anos, a beleza dos traços que a fotografia – tirada no verdor de sua mocidade - pousada em cima de uma cristaleira antiga, muito bem conservada, revela. Ela nos recebeu a mim, Carlos Duarte e Cleilma Fernandes, estes do jornal mossoroense “Página Certa”, e Paulo Gastão, fundador da Sociedade Brasileira de Estudo do Cangaço – SBEC, em sua residência, no dia 18 de dezembro de 2006, em um final de tarde tipicamente sertanejo, tornado mais fresco pela presença do vento Nordeste e mais agradável pelo lanche com o qual nos brindou após a entrevista. Dona Bernadete é filha de Manoel Duarte, um dos heróis da resistência a Lampião.



“Nasci em Mossoró”, diz-nos ela, “em 1921, e aqui morei até 1950. Quando completei quinze anos fui estudar na Escola Doméstica em Natal. Minha mais antiga lembrança em Mossoró é dos meus pais. Minha infância foi igual à de todas as crianças daquela época: pulei corda, brinquei de roda, de boneca, gostava de bonecas de pano, fazia teatrinhos, aperreava o pavão de Dona Filomena de Seu João Carrilho.”

“Dormíamos cedo, às 19:00 horas. Tomávamos café da manhã às 7:00 horas, almoçávamos às 11:00 e jantávamos às 17:00. Comíamos pão, biscoito, leite de vaca, ovos, cuscuz, coalhada no café da manhã; feijão de arranque temperado com carne, cebola, alho, coentro, cominho, arroz, farofa no almoço; mucunzá, cuscuz, coalhada no jantar. Comíamos frutas e bolachas pretas.”



“Já mocinha escutávamos, enquanto arrodeávamos a praça do Pax, a banda no coreto. Os rapazes ficavam em pé, de frente para a parte interior da praça. Às 21:00 horas todo mundo ia embora. Freqüentávamos o Clube Ipiranga e íamos ao cinema diariamente com meu pai, Manoel Duarte. Eu adorava os musicais. Gostava também muito de ler historinhas, o Tesouro da Juventude.”



“Quando eu estudei em Natal, na Escola Doméstica, saia nos finais-de-semana para a casa da esposa de Rodolpho Fernandes. Lembro-me da passagem do Zeppelin e do Hindenburgo por Natal. O Hindenburgo, que era mais grosso, ficava parado, suspenso no ar e soltava malas para o pessoal da terra.”



“Quando da invasão de Mossoró papai levou a família para Tibau e voltou para participar da resistência. Rodolpho Fernandes era compadre de papai, padrinho de meu irmão Antônio Leite Duarte. Nunca ouvi falar na história de Massilon ser apaixonado por Julieta, filha de Rodolpho. Papai ficou na casa de Rodolpho, na parte de cá (que dava para a Igreja de São Vicente) e havia outros na Igreja. Estes não alcançavam os cangaceiros postados na parede lateral da casa de Alfredo Fernandes, esquina com a Avenida Alberto Maranhão, mas apontaram Colchete que já estava com uma garrafa de querosene na mão para jogar nos fardos de algodão. Papai atirou em Colchete e Jararaca. Muita gente correu da luta.”



Dona Iracema – Iracema de Assis Duarte – com seus oitenta e poucos anos, magra, espigada, alerta, faz coro ao depoimento de Dona Bernadete. Estamos na calçada em frente à casa na qual ela mora sozinha. Não quer sair de lá e render-se ao chamado dos filhos em hipótese alguma. É o dia 19 de dezembro de 2006 e estamos quase ao lado da histórica sede da Prefeitura Municipal de Mossoró, antiga residência de Rodolpho Fernandes, na Avenida Alberto Maranhão, cujo tráfego, mesmo àquela hora crepuscular, não esmorece. Passantes vão e vêm. Não se dão conta de que há setenta e nove anos atrás o movimento, naquela avenida, deu-se por motivos bem diferentes dos habituais.



“A casa em frente à de Alfredo Fernandes era de João Hollanda. Os fundos davam para a casa de João Marcelino – o médico que cuidou de Jararaca. Naquele tempo, no entorno da Igreja de São Vicente havia a casa da esquina da Rua Francisco Ramalho com a Alberto Maranhão do lado de cá (no alinhamento da Igreja); havia a minha casa (várias geminadas vizinhas ao palacete de Rodolpho), a de seu Artur Paula (palacete cuja frente dava para a lateral da casa em frente aos fundos da Igreja) , a casa onde hoje funciona a Escola 13 de Junho, outra de umas catequistas.”


“Não havia pudim, bolo, doces na minha infância. Era rapadura, cocada, pão doce, bolacha preta. Galinha aos domingos. Coalhada de manhã para o pai. Não havia o hábito da verdura. A hora das refeições era essa mesma que Bernadete falou. E as brincadeiras também. Meninos não participavam. As brincadeiras: escravos de Jó, tique, esconde-esconde, teatro infantil (representavam contos de fadas). O cinema era o Almeida Castro, no Grande Hotel. Esse Grande Hotel concentrava a nata da sociedade nos grandes eventos. Os filmes eram mudos.”



“Manoel Duarte, um homem muito sério, achava graça com os retratos dos heróis nas trincheiras. Dizia que a máquina fotográfica era muito boa, pegava fulano e sicrano em Areia Branca... Zé Otávio – o que fotografou as trincheiras – era o fotógrafo da época. Os Fernandes eram os ricos de Mossoró. Dizia-se que Tertuliano era o mais rico.”



É dezembro de 2006. Irmã Aparecida nos recebe, a mim e a Carlos Duarte, em seu gabinete no Colégio Sagrado Coração de Maria – o Colégio das Freiras, onde estudavam as filhas das elites de Mossoró, geração após geração. Tem o mesmo tipo físico de Dona Bernadete e Dona Iracema. Nela, entretanto, o hábito de comandar deixa-se perceber através das frases pontuadas de forma mais incisiva, como a evitar contestações. Irmã Aparecida, apesar da idade, ainda comanda o Colégio. Nada leva a crer, observando-se sua agilidade física e mental, que a aposentadoria esteja próxima.



“Merendávamos às 9:00 horas: coalhada, copo de leite, ovos batidos, fubá de milho com mel, ou gema de ovo com mel de abelha. Almoçávamos às 11:00 horas. Não se conhecia feijão preto e não se comia bode por que fedia. Comia-se melhor no campo que na cidade. Nas refeições, silêncio: era preciso manter-se o respeito.”



“À mãe competia a educação. O pai quase nunca se metia. Os castigos: ficar atrás do guarda-roupa e a palmatória. A educação era feita através da tradição oral: não mentir, por exemplo. Rezava-se o ofício, particularmente, todos os sábados. Mas não se misturava moral com religião.”



“A diversão dos homens era jogar sueca. A dos meninos ir para o terreiro. Líamos, quando muito, os livros didáticos. Assistíamos filmes mudos pelo menos duas vezes por semana.”


“As grandes famílias de Mossoró eram os Fernandes, os Leite, os Duarte. Ainda não havia Rosado. Não se sabia quem eles eram. Os ricos eram Costinha Fernandes, João Marcelino, Miguel Faustino, Tertuliano Fernandes...”



Entretanto nada tão instigante a respeito da Mossoró da década de 20 do século passado quanto a leitura das “Memórias” de Sebastião Gurgel . Em seu diário do ano de 1927, no qual começa, no ano da invasão de Mossoró, escrevendo em Março, alude, desde logo, à inauguração, em 1º de novembro de 1926, ao serviço da estrada de ferro Mossoró/São Sebastião (atual Governador Dix-Sept Rosado). Informa que o inverno está sendo bom e que a estrada de ferro progride até Caraúbas. Em Julho noticia a invasão de Apodi por Massilon, a 10 de maio, e a de Mossoró, a 13 de junho, por Lampião e seu bando. É avaro nas informações e mais ainda na análise do fato. Convém, segundo ele, consignar um voto de louvor “aos srs. Cel. Rodolfo Fernandes, prefeito da cidade, Julio Maia, que melhor que outro qualquer dirigiu a defesa, Mirabeau Melo que como encarregado do telégrafo, prestou enormíssimo serviço, Dr. Gilberto Studard Gurgel, tenente Abdon Nunes, Cornélio Mendes, João Fernandes, etc.”. E acrescenta, irônico: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada.” Ainda em Julho relata um acontecimento “sensacional – o casamento de Monsenhor Almeida Barreto com a senhorita Maria Nazareth de Oliveira”. Imaginemos o impacto que esse acontecimento deve ter ocasionado na provinciana Mossoró do início do século XX!



Somente em Outubro de 1927 Tião Fernandes volta a escrever em seu diário. Critica o governo do Ceará por não tomar providências contra o cangaço. Registra ter deixado suas duas filhas em Natal, para estudarem na Escola Doméstica. Em Dezembro, no dia 4, lembra que “Em virtude de uma lei séria que garante o voto a mulher, nesta semana (passada) requereu o título de eleitora do município, a professora dona Celina Viana, sendo ela a primeira eleitora do Brasil.” E, também, que “Em substituição do presidente da intendência Rodolfo Fernandes que morreu no dia 10 de setembro, foi eleito para o mesmo lugar Luiz Colombo Ferreira Pinto.”



CONTINUA...