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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE: A ELEIÇÃO DAS PEDRAS EM PAU DOS FERROS

 





* Honório de Medeiros[1]

 

Desde 1856, pelo menos, duelam Fernandes e Rêgos pelo poder em Pau dos Ferros, principal cidade do Alto Oeste potiguar. Cento e sessenta e quatro anos de luta política![2]

Em 2020, assim como em 2024, de um lado tivemos o ex-prefeito Leonardo Nunes Rêgo – o nome já diz tudo – e, do outro, enquanto principal nome da oposição, o ex-prefeito Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo, muito embora sua candidata tenha sido a atual prefeita, Marianna Almeida.

Nilton Figueiredo, como é conhecido, é descendente de Childerico Fernandes de Queirós, que do seu segundo casamento, com Maria Amélia Fernandes (Mãe Marica), teve Umbelina Fernandes da Silveira, mãe de Maria Fernandes de Figueiredo (Dona Lalia), sua avó paterna.[3]

Em 1864, na sessão do dia 23 de dezembro, a ata da Câmara Municipal dá conta de requerimento apresentado por alguns vereadores ao Presidente da Província solicitando fosse-lhes “relevada” a aplicação de algumas multas a eles impostas.

Requeriam a eles, diretamente, alegando que a Câmara não se reunira em outubro e novembro passados, porque seu presidente, Manoel Pereira Leite, aliado dos Rêgos, estava foragido e “perseguido pela força do Delegado de Polícia”.

Assim decorreram os anos subsequentes, afirma o cronista, José Dantas.

No período que vai de 1865 a 1872, os Fernandes dominaram a Câmara Municipal, presidida por Viriato Fernandes e Hemetério Raposo de Melo, casado com Umbelina Fernandes, filha de Childerico Fernandes de Queirós.

No dia 6 de outubro de 1872, houve eleição para juízes de paz dos distritos e vereadores à Câmara Municipal.

Durante quinze dias vieram os eleitores votar, mas não lhes tomaram os votos. A Junta Paroquial, presidida pelo 3º Juiz de Paz, Galdino Procópio do Rêgo, instalou-se na Igreja Matriz, para realizar a eleição, sob o protesto dos Fernandes, que argumentavam acerca da sua incompetência para presidi-la.

A discussão transformou-se em violenta pancadaria dentro da igreja, e, fora, os liderados de ambos os grupos políticos travaram-se em briga corporal, armando-se de paus e pedras.

Muitos foram os feridos, e a Matriz foi seriamente danificada. Cessada a luta, a Junta Paroquial cercou a igreja com um grupo armado, para evitar outra confusão.

Os Fernandes, inconformados, organizaram outra Junta, sob a presidência do 1º Juiz de Paz, Childerico José Fernandes de Queiróz Filho[4], e realizaram outra eleição, na Casa da Câmara.

Submetida a documentação das duas Juntas à apreciação da Câmara Municipal, esta, em 16 de novembro de 1872, sob a presidência do Dr. Hemetério Raposo de Melo decidiu, por unanimidade de votos, a favor da eleição realizada na Casa da Câmara.

Foram, então, diplomados o Tenente Coronel Epiphanio José de Queiróz, Alferes José Alexandre da Costa Nunes, Manoel Francisco do Nascimento Souza, Manoel Queirós de Oliveira e Pedro Lopes Cardoso.

Vários argumentos foram levados em conta para a decisão, dentre eles o de que o eleitorado foi impedido de entrar na Matriz por uma força armada de clavinote, bem como o encerramento da eleição ter ocorrido no Sítio “Logradouro”, de propriedade dos Rêgos quando, à meia-noite, os últimos votos foram recolhidos em um chapéu improvisado de urna.

Entretanto, o Governo da Província não lhes foi simpático, e anulou a eleição realizada na Câmara dos Vereadores e, em 27 de outubro de 1873, por Aviso Ministerial, a Câmara foi cientificada que o Governo Imperial confirmava a eleição promovida pela Junta Paroquial.

Tiveram, assim confirmadas suas diplomações, Galdino Procópio do Rêgo, João Bernardo da Costa Maya, Norberto do Rêgo Leite, Florêncio do Rêgo Leite Gameleira, e João Afonso Batalha.

O povo, que a tudo e todos alcunha quando sua atenção é despertada, não deixou por menos: batizou o episódio de “eleição das pedras”.


[1] Trineto do Capitão Chiderico José Fernandes de Queiróz, por parte do seu primeiro casamento, com Guilhermina Fernandes Maia.

[2] FREIRE, Cônego Manoel Caminha e outros. Revista Comemorativa do Bi-Centenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros. Natal. Sebo Vermelho. Edição fac-similar. 2015.

[3] FERNANDES, João Bosco e FERNANDES, Antônio Mousinho. Memorial de Família.Teresina. Halley S/A. 1ª edição. 1994.

[4] Trisavô de Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: A CASA GRANDE DA FAZENDA JOÃO GOMES, EM MARCELINO VEIRA

 

Cônego Bernardino José de Queirós e Sá (1820-1884)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muitos anos depois ao recordar, com a leitura de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, o relato do desaparecimento lento e inexorável da cultura celta na Bretanha do ciclo Arturiano, substituída pela opressiva aliança entre o cristianismo, tal qual o entendia a Igreja católica, e o poderio do Estado romano, associei o sentimento quanto a essa perda à minha própria amargura com a extinção, também impossível de ser detida, da antiga cultura sertaneja nordestina, iniciada no ciclo do gado. 

E recordei quando caminhava, garoto, pelas ruas da minha infância, tangido suavemente por meu pai, a cumprimentar, tímido, os vizinhos, dentre eles um seu colega de trabalho, Francisco Alves Cabral (Seu Chico Cabral), a quem eu conectava imediatamente, por ser filho de Pedro Alves Cabral, com a Casa Grande da Fazenda São João, uma das três ou quatro construídas no “início das eras” naquela Região, o Alto Oeste Potiguar, de onde os Fernandes, todos descendentes do casamento de Mathias Fernandes Ribeiro, filho de portugueses, com a filha de Francisco Martins Roriz, também oriundo da Pátria-Mãe e fundador da cidade de Martins, se espalharam pelo Brasil. 

Pedro Alves Cabral nascera lá, naquela lendária Casa Grande que Lampião recusou atacar, por artes de Massilon, quando invadiu o Rio Grande do Norte se dirigindo a Mossoró, escutara suas histórias e estórias nos serões familiares, testemunhara algumas e era, ele mesmo, o epicentro de uma história contada aos sussurros, entre os adultos Fernandes, mas escutados por meninos de ouvidos ávidos, que atribuía seu nascimento em 1879, no dia de São Pedro, às infidelidades do Capitão Childerico José Fernandes de Queirós e Sá, então proprietário do solar senhorial por casamento com Maria Amélia Fernandes, a Dona Marica do João Gomes, única herdeira de todo o patrimônio do Tenente Coronel Epiphanio José Fernandes de Queirós, conhecido como Major Epiphanio, falecido em 1884, e seu construtor. 

A história de Dona Marica é por si mesma uma lenda na família Fernandes. Consta que Antônio Fernandes da Silveira Queirós (o Major do Exu) teve vários filhos, dentre eles o Major Epiphanio e o Cônego Bernardino José de Queirós e Sá, que foi vigário de Pau dos Ferros de 1849 a 1884. O Major Epiphanio não teve filhos; o Padre, dez a doze, segundo alguns, dezesseis, dizem outros, de várias mulheres, dentre eles Dona Marica, a primogênita, adotada por seu irmão e dele futura e única herdeira. 

Ao assumir João Gomes o Capitão Childerico, ao que consta, segundo as lendas, manteve a tradição inaugurada pelo Cônego Bernardino de povoar os oitões, sótãos e porões da Casa Grande da Fazenda João Gomes, e dele nasceu Pedro Alves Cabral, pai de Seu Chico Cabral, a quem eu sempre associei ao lendário Solar da família e a proteção que recebeu, ao longo da vida, dos Fernandes descendentes do seu avô, bem como lembro, imediatamente, de outras tantas e preciosas histórias/estórias que o pó do tempo insiste em sepultar, e lentamente encaminhar toda uma cultura da qual, hoje, quase não há mais testemunhas vivas, para o desaparecimento.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE: MEADOS DO SÉCULO XIX AO FIM DA REPÚBLICA VELHA (REVOLUÇÃO DE 30)


* Honório de Medeiros

José Augusto Bezerra de Medeiros

Quem critica o Cangaço hostiliza a História e não entende o que é o Poder. 


O Cangaço lança luz sobre a História e o Poder, em intrincada trama com o Coronelismo e o Fanatismo (Misticismo);

São os seguintes os principais cangaceiros que escreveram parte de sua história no Estado do Rio Grande do Norte: José Brilhante de Alencar Souza (o “Cabé”), nascido em Pombal, na Paraíba, em 1824, e morto em Pão de Açúcar, Alagoas, em 1873; Jesuíno Alves de Mello Calado (o “Jesuíno Brilhante”), nascido em Martins, RN, em 1844, e morto em Belém de Brejo do Cruz, novembro/dezembro de 1879; Macilon Leite de Oliveira (o “Massilon”), nascido em Timbaúba dos Mocós, 1897, e morto em Caxias, Maranhão, em 1928; e Virgolino Ferreira da Silva (o “Lampião”), nascido em 4 de junho de 1898, em Serra Talhada, Pernambuco, e morto em 28 de julho de 1938, em Poço Redondo, Sergipe.

O único norte-rio-grandense era Jesuíno Brilhante, o primeiro dos cinco grandes da história do cangaço: Jesuíno, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, eis a ordem cronológica. 

Existe a suspeita de que Virgínio Fortunato da Silva (o “Moderno”), viúvo de uma irmã de Lampião, Angélica Ferreira da Silva, era dos Fortunado de Alexandria, no Rio Grande do Norte, mas isso nunca foi comprovado. 

E são os seguintes os fatos na História do Rio Grande do Norte nos quais Coronelismo e Cangaço estão fortemente entrelaçados: a invasão de Martins por Jesuíno em 1876; a invasão de Apodi por Massilon em 1927; a invasão de Mossoró por Lampião e Massilon em 1927. 

Todos essas atividades cangaceiras estão conectadas com o coronelismo. 

Não houve Coronelismo no Sertão nordestino sem entrelaçamento com o Cangaço; não houve Cangaço sem Coronelismo. Acrescente-se a esses ingredientes o Fanatismo (Messianismo) e teremos um ponto-de-partida para a real história da época dos coronéis e cangaceiros.

Sempre tratamos esses fatos pelo COMO aconteceu, de forma folclórica, no sentido negativo do termo, mas precisamos nos indagar o PORQUÊ factual que os originou.

Tanto o coronelismo quanto o cangaço são expressões particulares do momento histórico específico que caracteriza o fim da República Velha no Sertão nordestino, muito embora seu padrão, enquanto disputa pelo Poder, seja recorrente na história das civilizações, sob outras formas, haja vista, por exemplo, o feudalismo europeu e japonês, e sua semelhança com esse objeto de estudo. 

As invasões de Apodi e Mossoró são indissociáveis, e se constituem em epicentro de um processo político que durou aproximadamente dez anos e dizem respeito a disputas políticas entre famílias senhoriais do Sertão paraibano e potiguar, tendo como fio-condutor, protagonista, o cangaceiro Massilon. 



 Rafael Fernandes Gurjão

Em 1924 José Augusto Bezerra de Medeiros, legítimo representante da fina flor da aristocracia rural algodoeira do Rio Grande do Norte, chegou ao poder. Seu intento, segundo cronistas da época, era construir uma oligarquia semelhante a dos Maranhão.


Em 1927 o Rio Grande do Norte, cujas principais regiões eram Natal, o Oeste e o Seridó, pareciam sob seu controle político, excetuando-se o crescimento político e econômico dos Fernandes cujas raízes estavam fincadas na Região que começava em Mossoró, passava por Pau dos Ferros, e terminava em Luis Gomes, fronteira com a Paraíva. 

Em 1928 Zé Augusto elegeu seu sucessor, o sobrinho-afim Juvenal Lamartine.

Mas em 1930 veio a Revolução que culminou com o golpe político que elevou Getúlio Vargas ao Poder. 

E Getúlio entregou o poder, após uma série de interventores, a Mário Câmara, aliado de Café Filho e dos adversários de Zé Augusto no Estado. 

Zé Augusto reagiu. Driblou as pendengas com os Fernandes, afinal faziam parte da mesma base econômico-política, a aristocracia rural algodoeira que dominava o Seridó e o Oeste, e juntos criaram o Partido Popular para lutar contra a candidatura de Mário Câmara em 1934.

E assim, na mais cruenta eleição que jamais houve no Rio Grande do Norte, o Partido Popular saiu vitorioso, e Rafael Fernandes, o líder da família Fernandes, foi eleito Governador do Estado.

Zé Augusto elegeu-se Deputado Federal.

Durante a campanha foram assassinados o Coronel Chico Pinto, em Apodi, e Otávio Lamartine, filho de Juvenal Lamartine. Espancamentos, ameaças, humilhações, depredações, foram incontáveis.

O Coronel Chico Pinto era ligado aos Fernandes; Otávio Lamartine a Zé Augusto.

À sombra de ambos, tramando contra, outros coronéis; à sombra desses coronéis, os cangaceiros...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A ELEIÇÃO DE 1934-1935 NO RIO GRANDE DO NORTE


* Honório de Medeiros        

Em uma avaliação muito pessoal penso que a década de 20, no Rio Grande do Norte, acabou quando o Partido Popular elegeu o Governador do Estado após a vitoriosa campanha de 1934-1935 e a aristocracia rural cedeu, assim, o Poder à burguesia mercantil/industrial que se instalava em terras potiguares. 

Esse novo Brasil que surgia após a Revolução de 30 – hoje tão esquecida – e se consolidou na Era Vargas, mas cujo ideário “tenentista” pode ser rastreado até o Golpe de 1964, no Rio Grande do Norte encontrou, quando da redemocratização depois aviltada por Getúlio, uma estranha situação política configurada de forma radical no embate político partidário de 34/35: de um lado, liderado por Mário Câmara, união entre cafeístas, que poderiam ser posicionados à esquerda do espectro político, e coronéis do interior do Estado, proprietários de terras e criadores de gado, acostumados ao mando mais absoluto em seus redutos eleitorais; e, do outro, a burguesia mercantil e industrial cuja base maior, surgida a partir do cultivo e beneficiamento de algodão e exploração do sal, era o Oeste e Alto Oeste do Rio Grande do Norte, com epicentro em Mossoró e liderada pela família Fernandes, e o Seridó, grande plantador e fornecedor do denominado “ouro branco”, liderado pelo ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros. 

Não por outra razão, concluído o pleito, foi eleito Governador do Estado, pela Assembleia Legislativa, Rafael Fernandes, líder político no Oeste e Alto Oeste, em detrimento de José Augusto. 

É deprimente constatar a pouca literatura acerca desse período por demais importante da história do Rio Grande do Norte. Excetuando um ou outro opúsculo, desaparecido das vistas dos pesquisadores e somente encontrados, depois de muita luta, em sebos que como é sabido, primam pela desorganização e falta de higiene, três livros, apenas, bastante antagônicos entre si, jogam alguma luz sobre o período aludido: “A HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, de Edgar Barbosa; “VERTENTES”, autobiografia de João Maria Furtado; e “DO SINDICATO AO CATETE, autobiografia de Café Filho. O primeiro, visceralmente ligado aos líderes do Partido Popular; o segundo, cafeísta histórico. 

Aqui não cabe uma incursão na história dos anos vinte e trinta do Rio Grande do Norte. Não é essa a intenção. O que se pretende, aqui, é mostrar o contexto político de exacerbada violência vivida no Estado naquela época, na qual o coronelismo como conhecido, cuja erradicação era uma promessa de campanha da Revolução de 30, vivia seus últimos esgares.

Essa violência, não esqueçamos, na campanha política de 34-35, foi posterior à invasão de Mossoró por Lampião, fato ocorrido em 1927. 

Para se ter uma ideia, o livro de Edgar Barbosa começa com uma página na qual se lê seu oferecimento e indica fielmente o que há de vir pela frente: 

À MEMÓRIA IMPERECÍVEL DOS SACRIFICADOS NA CAMPANHA DE CIVISMO E REDENÇÃO DO RIO GRANDE DO NORTE; A FRANCISCO PINTO, OTÁVIO LAMARTINE, MIGUEL BORGES, JOSÉ DE AQUINO, FRANCISCO BIANOR, MANOEL DOS SANTOS, LUÍS SOARES DE MACEDO E ADALBERTO RIBEIRO DE MELO; às vítimas da covardia dos cangaceiros, aos seviciados pela barbaria policial, a todos os que sofreram humilhações e injúrias, aos perseguidos, aos ameaçados, aos coagidos no seu trabalho e nos seus lares, aos que morreram com fome e sede de liberdade. Homenagem do Partido Popular. 

Dentre os mencionados na homenagem chama a atenção o nome do Coronel Francisco Pinto, parente, compadre e correligionário político do Coronel Rodolpho Fernandes, a aquela altura já assassinado, e que escapara da morte – ainda hoje não se sabe como – quando da invasão de Apodi em 1927 pelo bando de Massilon([1]), e Otávio Lamartine, ninguém mais, ninguém menos que filho do ex-Governador, deposto pela Revolução de 30, Juvenal Lamartine. 

Não se vai entrar nos meandros dos dois assassinatos. Entretanto é inegável que suas mortes somente aconteceram em decorrência da campanha política de 34-35. 

Mesmo aqueles que se posicionaram em lados opostos ao abordar a questão se negariam a contradizer essa afirmação. 

Outro fato que demonstra a exacerbada violência daqueles tempos é pungentemente narrada por Amâncio Leite em carta dirigida a Sandoval Wanderley, diretor de “O Jornal”, em Natal, aos 20 de janeiro de 1937, publicada em forma de opúsculo pela “Coleção Mossoroense”[2]

Nessa carta famosa, à época, Amâncio Leite, eleito deputado estadual pela situação([3]) na campanha de 34-35, protesta por sua prisão e a de seu colega Benedito Saldanha, acusados de “extremismo” e “comunistas”, acusação essa acatada pela Assembleia Legislativa do Estado em sessão do dia 10 de setembro de 1936 na qual todos os deputados do Partido Popular votaram pelo acatamento, em um claro revide aos seus adversários, tão logo chegaram ao Poder. 

O coronel latifundiário Benedito Saldanha acusado de “comunista”. Ironia do destino... 

A presença da violência, portanto, era algo comum na política daqueles anos. O homicídio em decorrência de disputas pelo Poder, também o era. Como negar esse fato se um pouco mais atrás, em 26 de julho de 1930, o assassinato de João Pessoa por João Dantas deflagara a Revolução de 30? 

Muito embora João Dantas tenha morto João Pessoa em decorrência do aviltamento que sofrera com a publicação em jornal oficial de sua correspondência íntima com Anaíde Beiriz, é fato que isso somente ocorrera porque ambos eram fidagais inimigos políticos. 

E da presença da violência ocasionada por disputas políticas não estava livre, naqueles anos 20, o Rio Grande do Norte.

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[1] Consta que as mesmas lideranças políticas que estavam por trás da invasão de Apodi em 1927 também o estavam em 1934, quando do assassinato do Coronel Chico Pinto.

[2] Série B, nº 768.

[3]Aliança Social, liderada por Mário Câmara. 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

UMA HISTÓRIA MARAVILHOSA DA ÉPOCA DOS CORONÉIS

De Laurence Nóbrega, grande amigo meu e do famoso escritor Florentino Vereda, recebi o bilhete abaixo:

"Mando anexo um arquivo em word, com a transcrição que fiz, de uma história contada por Trajano Pires da Nóbrega, no seu estudo da genealogia da família Nóbrega, da qual eu sou um dos menos ilustres membros.

Trata-se da fuga da filha do Capitão Justino Alves da Nóbrega, mais conhecido como Cap. Justino da Salamandra, o mesmo que atacou a cidade de Santa Luzia e libertou o primo Liberato Cavalcanti de Carvalho Nóbrega, preso injustamente por inimigos políticos. Não sei se este é o cangaceiro a quem você se referiu na nossa conversa recente. Caso queira pesquisar mais a respeito dele, consulte as “fotocópias” que lhe enviei ou, se preferir, diretamente no livro de Trajano.

Um bom fim de semana.

Laurence

"Sunila" 

“Ouvi a seguinte história acerca do casamento de Marcionila Bezerra da Nóbrega (Sunila), com Braz Cavalcante, que me foi narrada por Severino Duarte Pinheiro, neto do seu irmão Martinho Alves da Nóbrega. “Marcionila, filha do Cap. Justino Alves da Nóbrega, ou Cap. Justino da Salamandra, chefe do Partido Conservador em Santa Luzia, tinha o gênio forte e voluntarioso como o do pai. Foi pedida em casamento por Brás Cavalcante, rapaz de Sapé que andou em Santa Luzia, pedido que, apesar de ser do seu agrado, foi definitivamente repelido pelo pai. Não se conformando com esta recusa, a moça deliberou fugir, o que chegou ao conhecimento do pai, que logo decretou a sentença de morte da filha, caso pusesse em prática o seu plano de fuga. Nada intimidou a moça, que, seguindo o hábito paterno, usava constantemente pistola e punhal ocultos na própria roupa. 

Sentindo que a filha seria capaz de realizar o seu plano, o Cap. Justino passou a manter constante e ativa vigilância. Como que de propósito, a casa só tinha duas aberturas acessíveis à moça, uma porta e uma janela, esta no oitão da casa. Intensificando a vigilância, o velho admitiu um auxiliar, que era um rapaz de confiança, que sempre mantinha em uma casa na fazenda, à frente da casa grande. Enquanto, à noite, o velho dormia perto da porta, o rapaz dormia perto da janela. 

Não havia outra saída. 

Em uma noite, porém, de grossa invernada com forte trovoada, coincidiu que o rapaz auxiliar da vigilância faltou; mas o velho dobrou o cuidado. A moça, que mantinha secreta correspondência com o noivo, tinha assentado fugir na primeira noite de tempestade que houvesse. Aquela seria a tal. 

Da sala de jantar, ficou observando, ocultamente, os menores movimentos do pai. Viu-o deitar-se, mas sempre atento à chuva. A certa hora o velho levantou-se o foi abrir a porta para olhar a chuva do alpendre. Compreendendo o gesto paterno, a filha a filha abriu a janela no mesmo instante em que o velho abriu a porta, de modo a confundir os dois em um só ruído. E deu certo. O pai não percebeu que a janela tinha sido aberta e que, por ela, sem perder um instante sequer, a moça se passara para fora, saindo para a chuva e a escuridão, não tardando a encontrar-se com o noivo, que a aguardava a pequena distância, com o cavalo de prontidão. Correram até a vila de Santa Luzia, onde chegaram alta madrugada, procurando abrigo na casa de residência do chefe político do Partido Liberal, adversário e inimigo do Cap. Justino. Aí foram guardados, trancados em um quarto, de modo a não serem pressentidos por ninguém, pois o velho Justino era geralmente temido. 

Ao amanhecer o dia, o Cap. Justino foi surpreendido com a realidade. A filha tinha fugido, realizando o plano que tentava frustrar com tanto empenho. E a revolta, na sua alma voluntariosa, que não admitia tal indisciplina, principalmente por uma filha, não teve limite. Determinou imediata perseguição ao casal de fugitivos, até encontrar para matar ambos, sangrados ou fuzilados. Convocou, no mesmo instante, todos os seus homens, e deu ordens severíssimas para saírem em perseguição ao casal, até encontrar e matar. Mas a chuva grossa da noite havia desfeito todos os rastros. Não era possível descobrir o rumo seguido pelos fugitivos. 

Mandou, então, gente em todas as direções; mas nada de notícias, ninguém vira os fugitivos nem deles tivera notícias. Parecia que a terra os havia engolido. 

Depois do terceiro dia, continuando as indagações e as ameaças, cada vez mais terríveis, o chefe da casa que lhes havia dado guarida, temeu pela segurança dos seus e pediu ao rapaz que se retirasse com a moça. Aguardaram a noite e fugiram a cavalo, por volta da meia noite. Tomaram rumo ignorado, o que foi fácil porque ninguém suspeitava que os fugitivos permaneciam em Santa Luzia. 

Cerca de um mês depois chegou a primeira notícia da filha; sem se denunciar onde permanecia oculta, mandou pedir ao pai autorização para casar-se, o que era indispensável na época. Não só recusou o pedido, como intensificou a perseguição, embora sempre improfícua, pela impossibilidade de ser localizado o casal fugitivo. 

Em face desta intransigência do velho pai, a moça passou a fazer vida marital com o noivo, mesmo sem o casamente, o que tinha evitado até aquele dia, com o seu rigoroso senso de honra. Houve diversos filhos desta situação. A perseguição, ou melhor, a ideia de perseguição continuou sem esmorecimento ao longo de 12 anos de vida que ainda teve o Cap. Justino Alves da Nóbrega. Sentindo a proximidade da morte, deixou ao filho mais velho, Martinho, a incumbência de manter a perseguição, por toda a vida. Mas, de ânimo moderado, Martinho Alves da Nóbrega, logo que o velho pai havia desaparecido, relaxou a recomendação, combinando em que a irmã se casasse como desejava. 

O casal veio a residir nas proximidades dos irmãos, perto da Salamandra, da Malhada do Umbuzeiro, da Noruéga, que eram as principais propriedades da família, herdadas do rancoroso pai. Viveram muitos anos. D. Marcionila, já viúva, ainda era viva até há poucos anos, tendo falecido depois de 1950”.

'A FAMÍLIA NÓBREGA' 

Autor: Trajano Pìres da Nóbrega 

1ª edição: 1956 

Pgs. 578 a 580"

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

CANGAÇO , CORONELISMO E FANATISMO SÃO MANIFESTAÇÕES DO PODER

Massilon: ele estava no ataque a Apodi e Mossoró em 1927

Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

O coronelismo e o cangaço, assim como o fanatismo (misticismo) tão característicos de certo período histórico do Sertão nordestino brasileiro, são manifestações do fenômeno do Poder, de como ele é obtido, se instaura  e é mantido em qualquer circunstância.

A forma como o Poder se instaura diz respeito a fatores circunstanciais, mas o conteúdo permanece o mesmo desde que o Homem surgiu na face da terra.

Exemplos que comprovam essa afirmação são quaisquer processos políticos que aconteceram ao longo da história, tais quais os descritos em farta literatura acerca de Atenas, Roma, a Inglaterra vitoriana, ou qualquer outro que seja.

A forma se modifica ao longo do tempo em decorrência do avanço tecnológico, por exemplo. Se antes o Homem combatia com arcos e flechas, hoje usa mísseis teleguiados.

Assim, o coronelismo, o cangaço e o fanatismo são "cases" do fenômeno do Poder próprios de uma determinada circunstância histórica. São semelhantes, em sua estrutura, ao feudalismo europeu e japonês.

As narrativas acerca do coronelismo, cangaço, e fanatismo devem ser estudadas levando-se em consideração o fator de "ocultamento" que é próprio da lógica de atuação dos que detêm o Poder.

Nesse sentido, escrever, omitir, manipular, direcionar os textos, tudo isso e mais, cumprem o papel de impor a lógica dos que podem impor sua percepção das coisas e dos fenômenos.

No Rio Grande do Norte, por exemplo, é difusa, porém persistente, a concepção de que os coronéis da política eram homens afastados da lide com o cangaço, bem como é persistente a concepção de que o cangaço, excetuando a invasão de Mossoró por Lampião, pouca relevância teve no Rio Grande do Norte.

São "esquecidos" José Brilhante, o Cabé; Jesuíno Brilhante; a invasão de Apodi por Massilon; a invasão de Mossoró por Lampião e Massilon; e a morte de Chico Pereira.

Não se estuda, como deveria ser estudado, a invasão de Apodi por Massilon e sua relação com a invasão de Mossoró por Lampião pouco mais de um mês depois. Bem como não se estuda a participação do coronelato da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte no evento.

E perdemos todos pois, na verdade, em essência, o que se deve estudar quando analisamos fatos históricos como esses, é o fenômeno do Poder, tão onipresente quanto a existência do Homem na face da terra.

sábado, 28 de julho de 2018

CHILDERICO FERNANDES, O "GUERREIRO DO YACO"




 * Honório de Medeiros 

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes Queiróz Filho, nascido em Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará. 

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada pelo renomado Major Ephiphanio, o único irmão do sátiro de batina. 

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. 

Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem, conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, de quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência. 

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros, documentos e relatos de muito poucos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história, pelo que se infere. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência. 

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro! 

Assim como valem um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus; a luta armada por Bragança, da qual foi prefeito várias vezes, e Belém, no Pará, esta com Lauro Sodré; a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados! 

Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[1], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[2], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[3] estas se apresentaram federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.” 

No inédito segundo volume – “Chamas do Passado” - da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor da história continua sendo Childerico II. 

Sua saga perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, permitindo-nos perceber a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. 

Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte. 

No “Guerreiro do Yaco” nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, os judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. 

Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo, Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste? 

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes, todas tendo como espinha dorsal a vida de Childerico II, a esperar que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, as resgate do limbo através da fabulosa Coleção Cultura Potiguar, impedindo assim que o pó do tempo sepulte, de vez, o conhecimento, pelos homens e mulheres de hoje, dos feitos e parte da vida dos nossos ancestrais. 

[1] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996.

[2] 7 de maio. 

[3] 8 de junho.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

LAMPIÃO NA FAZENDA "VENEZA". MASSILON. CHILDERICO FERNANDES DE SOUZA.

* Honório de Medeiros

Reportagem do jornal “O Nordeste”, feita a partir dos depoimentos de Bronzeado[1], nos dá uma idéia acerca do temperamento de Massilon: "Em Bálsamo[2], juntaram-se mais 4 indivíduos de nome: Vicente Brilhante; outro que este chamava de primo; Vicente de tal e mais um morador de Décio[3]. Este acompanhou o bando até 3 léguas, voltando a exigências de Massilon, que presenciou a aflicção em que ficara a mulher[4] de Décio, que chorava e pedia não violassem as famílias."

Sérgio Dantas relata o que foi a passagem do bando de Lampião pelo povoado de São Sebastião, atual Governador Dix-Sept Rosado, um pouco antes de entrarem em Mossoró: algazarra, surras, depredação, saques, fogo, violações. "Massilon retornava da malsucedida tentativa de tomar a cidade de Apodi[5]. Impressionou-se com a quebradeira. Repreendeu, áspero, o cangaceiro Jararaca e culpou-lhe pela destruição do povoado. Entabulou-se ríspida discussão entre os dois. A contenda, entretanto, foi breve. Lampião interveio enérgico. Evitou maiores desdobramentos do ‘imbróglio doméstico’[6]."

  Mas o maior depoimento que se pode dar acerca do temperamento de Massilon está nas páginas que tratam de sua conduta na Fazenda Veneza, quando da fuga de Mossoró para Limoeiro, escritas por Raul Fernandes[7]. Nelas se expõe o drama pelo qual passou Childerico Fernandes de Souza[8], administrador da propriedade do seu parente Alfredo Fernandes[9], e sua esposa Felisbela (Dna. Bebela) Rodrigues Fernandes. Também estão expostos alguns episódios que dão a natureza do temperamento de Massilon. Em um deles Sabino começa a se vangloriar de que tinham entrando em Mossoró sem dificuldades, tomado o Banco do Brasil, a casa do Prefeito, quando é interrompido por Massilon, que diz: "Nada disso é verdade. Eles não entraram em Mossoró. Receberam balas do céu e da torre da igreja."

Em outro episódio, Raul Fernandes relata que enquanto o almoço era preparado por Dna. Bebela, os cabras aguardavam fora da casa impacientes. "Soada a hora, acorreram à cozinha, em turbulência, atravancando a passagem. Foi preciso Massilon chamá-los à ordem, obrigando-os a formarem fila."

Na hora da sesta, continua o escritor, "alguns cangaceiros bocejavam deitados à sombra de uma árvore, próxima a casa, procurando tirar uma soneca. De súbito são perturbados pelo choro ininterrupto de criança. Era o menino Ney Fernandes, de dois anos. Ralhações não conseguiram moderar o berreiro incontrolável.

Serra D’Umã, mestiço, alto, de compleição franzina, serviçal ordinário, resolveu dar mostras do que era capaz. Em bárbara ostentação, levantou-se, arrastou a lâmina de aço e engrolou:

- Vou calar aquela pestinha[10].

Caminhou, a passos tardos, desengonçado, à casa-grande.

Os companheiros foram incapazes de um gesto, para impedir a consumação do mais covarde e hediondo dos crimes.

Um morador avisou à genitora. Novamente, Massilon, interveio. Desmoralizou o cabra, fazendo-o retroceder.

As ameaças continuavam. Não havia sossego na fazenda. Coqueiro pediu a Bebela que lhe costurasse o bornal e como não foi possível, por falta de linha, arrebentou a máquina de costura.

Outro cabra, de punhal em riste, tomou-lhe a aliança. Massilon a acode. Obriga o perverso a devolver a jóia, após séria altercação. Advertiu-o, voz alta, que não permitiria ameaças, desrespeito e palavras malsoantes naquela casa. Voltou à sala, sentou-se ao lado de Childerico e continuou a falar, contrariado:

- Não sou bandido! Quando chegar ao Ceará, deixarei essa gente. Vou cuidar da minha vida.

Percebia-se seu arrependimento por estar ligado a essa corja malsinada. Fora a alma benfazeja em ‘Veneza’[11]."

Em Tabuleiro de Areia, Ceará, agosto de 1927, nos lembra Lauro de Oliveira Lima, já apartado de Lampião, Massilon e seu bando invadem a casa de Santana Gadelha e tomam todas as suas jóias. Santana pediu a Massilon que mandasse um dos cabras devolver sua aliança de casamento, sendo atendida ("mas só a aliança, disse o cangaceiro")[12].

* Excerto do livro "Massilon", do Autor.




[1] “O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE”; PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense; Série “C”; número 1104; Outubro de 1999; p. 70.

[2] Fazenda de Décio Hollanda localizada em Iracema, Ceará, na época pertencente a Pereiro, no mesmo Estado.

[3] Décio Albuquerque, o Décio Hollanda.

[4] Filha de Tylon Gurgel. Sobrinha, portanto, do Cel. Antônio Gurgel, refém de Lampião.

[5] Na verdade retomada. Dias antes ele havia tomado a cidade.

[6] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – GRÁFICA EDITORA; 2005; Natal; RN; Nota 4.

[7] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; FERNANDES, Raul; 2ª. EDIÇÃO; Ed. Universitária – UFRN; 1981; Natal, Rn.

[8] Childerico era filho de Francisca Fernandes de Souza, avó materna da mãe do Autor e irmã do Coronel Adolpho Fernandes.

[9] Filho do Coronel Adolpho Fernandes, então Prefeito de Pau dos Ferros, RN.

[10] Contou-me Francisca Ida Fernandes de Oliveira, tia do Autor, que João Marcelino de Oliveira, irmão de seu esposo José Marcelino de Oliveira, e médico em Mossoró no ano de 1927, bem como responsável pelo atendimento a Jararaca, que este, ao ser por ele indagado se não sentia remorso pelos crimes que cometera, perguntara-lhe o que significava essa palavra.

Ao ser respondido, quedou silencioso por algum tempo e depois respondeu que uma vez jogara uma criança de mais ou menos dois anos para cima e a aparara com um punhal. Desde então, segundo ele, sonhava muito com ela.

Fenelon Almeida em sua obra “JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO” conta que Lauro da Escóssia testemunhou a negativa veemente de Jararaca a uma pergunta a esse respeito, de bate-pronto, feita por uma popular.

A verdade é que provavelmente Jararaca contou a história a Dr. João Marcelino de Oliveira que a repassou para a frente e a conseqüência foi a pergunta da popular.

Provavelmente preocupado com a repercussão da história entre as pessoas que estavam em sua frente Jararaca desmentiu, categoricamente, aquilo que contara privadamente a Dr. João Marcelino de Oliveira, a quem devia não lhe ter sido amputado, covardemente, por um soldado da comitiva do Sargento Kelé, um dedo no qual luzia, reluzente, um anel de ouro.

[11] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; FERNANDES, Raul; 2ª. EDIÇÃO; Ed. Universitária – UFRN; 1981; Natal, Rn.

[12] “NA RIBEIRA DO RIO DAS ONÇAS (LIMOEIRO DO NORTE); LIMA, Lauro de Oliveira; p. 463; Gráficae Editora Assis Almeida; Fortaleza; Ceará.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ FILHO



* Honório de Medeiros

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes de Queiróz Filho, nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, aos quinze anos de idade, portanto em 1880, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura, durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará.

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada por seu único irmão[1], o renomado Major Ephiphanio.

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência.

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência.

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro!

Assim como vale um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus, e assim por diante. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[2], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[3], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[4] estas apresentaram-se, federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.”

Ou a luta por Bragança, no Pará, da qual foi Prefeito várias vezes. E a luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias Martins. Assim como a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados!

Em – “Chamas do Passado” - segundo volume inédito da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua sendo Childerico II. Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, de Caraúbas, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.

Nesse segundo volume nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção Cultura Potiguar. Por esse trabalho, pela Coleção, para a obra a ser apresentada ao público leitor, viriam todos nossos aplausos.

[1] Do padre.

[2] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996. 

[3] 7 de maio. 

[4] 8 de junho.