sábado, 5 de dezembro de 2020

TEMPO: UMA CERTA FOTOGRAFIA NA PAREDE

 

American Girl in Italy (Ruth Orkin, 1951)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava, mas ela já parecia estar muito cansada. 

Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. Melhor não, disse aos meus botões. 

A fotografia - melhor dizendo, a reprodução em preto e branco dividia, com outras, a atenção dos frequentadores. 

“É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra. 

Olhei novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinquenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. 

Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas, há algo de aflitivo no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. 

Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Não houvera produção: exceto a ideia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo. 

Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficaremos com o passar dos anos”. 

A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. 

Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha, a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. 

Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava. 

“Você não se preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?”, indagou. “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”. 

“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns mil, fora as gorjetas”. 

As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a rede social e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cem por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês. 

A conta chega. 

“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. 

“Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. 

Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente. 

Desci a escada e ganhei a rua. Procurei o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente, Sidarta, de Herman Hesse. 

Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, enquanto contemplavam as águas de um rio. 

Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a procura do oceano, o rio continua no mesmo lugar. 

A vida passa, mas está. O homem vai, mas a humanidade permanece. 

Fim de noite. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

FÉ: DE UM AMIGO QUE ENCONTROU A FÉ

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Certo amigo meu, até recentemente ateu, me contou acerca de sua conversão. 

Disse-me ele que na meia-idade do conhecimento, na qual chegou por caminhos tortuosos, após perambulações de toda a ordem no universo dos livros, deu-se conta que era o momento de fazer um balanço em regra de sua vida passada e fazer um planejamento, mesmo que capenga, para o resto dos seus dias. 

Um assunto, em especial, assim pensava ele, clamava por atenção: sua relação com a Fé. 

Após esse primeiro ponto firmado, pôs-se a examinar o tema por um viés, digamos assim, oblíquo: entendeu que o importante era pensar acerca do mundo tal qual o estava encontrando, naquele momento. Colocou as mãos à obra. 

Em sua procura, olhando para os lados, para trás e em frente, por todos os ângulos, de todas as formas, somente encontrou o horror, a escuridão mais negra, uma história de sangue e dor, excetuando-se um ou outro ponto de luz a sobreviver sabe-se lá como, nem por quê. 

Explicou-me fazendo um paralelo: imagine, disse ele, o milagre da sobrevivência da Igreja no auge da Alta Idade Média, após a queda de Roma, quando iniciou o período que os historiadores antigos chamavam de "Idade das Trevas". 

O mundo se transformara, então, em um caos. Mas a Igreja sobreviveu graças aos monges irlandeses, que no silêncio e na solidão de seus monastérios, copistas que eram, crentes integrais, legaram ao futuro a doutrina de Cristo. 

É como se hoje em dia vivêssemos um período semelhante. Horror e escuridão, novamente, ou sempre, e o mal lutando com unhas-e-dentes para dominar, para ser hegemônico. Guerras, genocídios, estupros, roubos, torturas, infanticídios... A lista é infindável. 

Se há o mal, disse-me ele, à guisa de conclusão, então há o Bem. Se há o Bem, então há Deus. 

E, assim, por intermédio dessa estranha conclusão, de forma alguma absurda, ele chegou à Fé. 

Deus o tenha.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

ESCRITORES: À MEMÓRIA DOS ESCRITORES ESQUECIDOS

 

Reflexo, na água, do Templo Expiatório da Sagrada Família, obra de Antoni Gaudi, Barcelona. Por Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar histórias abandonadas pela humanidade. 

Da mesma forma, por outro ângulo, na Barcelona gótica (Barri Gòtic), o “Cemitério dos Livros Esquecidos”, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón na bela tetralogia A Sombra do Vento, arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade dos homens ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças. 

Também alberga essa missão a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em Ficções, de 1944, que nos fala do mundo constituído por uma biblioteca sem fim, que abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis, e que somente o gênio do argentino foi capaz de nos persuadir de que sua existência é fictícia. 

São histórias abandonadas tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton em Nos Mínimos Detalhes

“Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas”. 

É a vida, tal como é.