sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

"É PRECISO DUVIDAR DE TUDO"

 

Kierkegaard

* Honório de Medeiros


“Na cidade de H... viveu, há alguns anos, um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.

Assim começa Johannes Climacus, ou É preciso duvidar de tudo, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, considerado o pai do Existencialismo, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico excêntrico pensador do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da "Breves Encontros”, Martins Fontes, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, e outros menos conhecidos, tal qual o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.

O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e ao leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge, com tradução de Sílvia Saviano Sampaio, professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese A subjetividade existencial em Kierkegaard, membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.

É preciso duvidar de tudo é dividido em três partes: "Introdução", "Pars Prima" e "Pars Secunda".

A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard nomina-a interrogando: “O que é duvidar?”

A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, essência do Capítulo II, da "Pars Prima". A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Climacus, é de que essa proposição se situa fora da filosofia e a ela é uma preparação. 

Perfeito.

No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão em seu Teeteto, que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez existam diferenças sutis entre os dois termos que não valham a pena serem esmiuçadas, na justa medida em que não alteram o que é mais importante.

Muito mais recentemente Sir Karl Raymund Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começa por problemas.

Tais problemas surgiriam a partir do conhecimento antigo, ou seja, da expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem.

Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas surgindo, então, um ou vários problemas a serem solucionados.

Elaboramos uma nova teoria que tenta explicar esse "algo" e, assim, surge o conhecimento novo. 

Podemos ler mais acerca dessa questão em suas obras Conjecturas e Refutações; A Lógica da Pesquisa Científica; Conhecimento Objetivo...

Gaston Bachelard diz tudo isso de forma profunda e elegante, lançando o repto: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão". 

Observe-se que tais teorias pressupõem a existência de um conhecimento inato, referendado pela Teoria da Seleção Natural, de Darwin. Pressupõe, ainda, dando-se razão a Immanuel Kant, que a ideia antecede a ação.

Em certo sentido, não há como deixar de dizer que estão certos não somente os gregos, assim como Kiekergaard, Bachelard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.

Cabe também observar que Johannes Climacus é um típico caso de personagem acometido da Síndrome de Bartleby, algo que, com certeza, interessaria bastante à Enrique Vila-Matas, referência contemporânea do romance-ensaio.

honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

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