Barnabé
Por Honório de Medeiros
Há uma nítida distinção, em termos ontológicos, entre serviço público e iniciativa privada. No primeiro caso, o paradigma que norteia a ação pública (iniciativa pública) é cumprir expectativas da sociedade, definidas constitucionalmente, enquanto, no segundo, a ação privada é impulsionada pelo objetivo do lucro.
A própria Constituição Federal, embora estabeleça como princípio constitucional a livre iniciativa e o modelo capitalista de organização da economia ressalvam o caráter social da propriedade. Essa característica, segundo a melhor hermenêutica, referenda o primado de que o público está acima do privado, como de fato a própria legislação infraconstitucional o prevê: trata-se das previsões de intervenção do Estado na Ordem Econômica sem, entretanto, anatemizar-se o lucro.
Quando tratamos de ações voltadas para a sociedade, do primado do público sobre o privado, temos que convir que dada a especificidade da demanda de natureza essencialmente complexa, não somente quanto ao aspecto ético, político e social, mas, também, quanto a quantidade (a sociedade), esta necessariamente é, no mínimo, de médio prazo, inobstante demandas emergenciais, enquanto as ações privadas, muito embora carentes de planejamento de longo curso, por serem pautadas pelo lucro são, essencialmente, instáveis e voláteis.
Se a ação pública desenvolve-se, o mais das vezes, a médio e longo prazo, torna-se fundamental a preservação da sua memória, qual seja o recurso humano nela envolvida e a conseqüente experiência advinda no trato com a questão trabalhada. Sem a preservação dessa memória, não é possível continuidade de políticas públicas, e o resultado é o comprometimento do paradigma que fulcra sua iniciativa. E por que essas políticas públicas – aquelas consistentes – demandam tempo para serem implementadas? Por que envolvem parcela significativa da sociedade durante um longo tempo. É o caso, por exemplo, da erradicação do analfabetismo. E somente é possível a preservação da memória aludida com o respeito ao serviço público, servidor público e a sua carreira diferenciada, assegurando-se-lhe o direito de ser credor do investimento de Estado em sua vida profissional, através de aposentadoria distinta, remuneração razoável e estabilidade na carreira. Ou seja, o serviço e o servidor público deve ser um investimento do Estado, dadas as peculiaridades do exercício da função pública, que exige sacrifícios indiscutíveis.
As ações públicas que ao longo do tempo efetivamente originaram melhoria na qualidade de vida da sociedade foram desenvolvidas sob o prisma da permanência, para além dos humores político-partidários. Podemos comprovar essa afirmação analisando-se o segmento da Saúde e Educação em países comprovadamente desenvolvidos. Acresça-se outra assertiva: o desenvolvimento – não o econômico, mas, sim, o de qualidade de vida - desses países foi decorrente de políticas públicas, nunca privadas (lembremos a Escandinávia). Mesmo no Brasil, onde faltam políticas de Estado, embora abunde as de Governo, muitos avanços foram obtidos graças a políticas públicas permanentes. Na área de saúde, por exemplo, o Brasil é referência mundial não somente no que concerne a erradicação definitiva de algumas moléstias como, também, em relação ao combate preventivo a AIDS.
Parece óbvio que, no caso do Brasil, os parâmetros estabelecidos pelo Consenso de Washington e que originaram o cânone neoliberal encontraram solo fértil na tradicional ojeriza da sociedade esclarecida à utilização do serviço público e burocracia como instrumentos de obtenção e manutenção de privilégios de classe. É certo, também, que faz parte da cultura brasileira – embora a raiz possa ser rastreada até Portugal, como lembra Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” – a construção dessa histórica instrumentalização do aparelho estatal por parte do estamento burocrático. É certo que o capital internacional considera a presença do Estado na economia como um obstáculo à sua desenvoltura, bem como anatematiza a concepção de desenvolvimento econômico por ele impulsionado. O corolário, portanto, é a crença de que o servidor e o serviço público são alavancas do atraso.
Entretanto, a verdade é bem outra. Se não podemos desconsiderar o diagnóstico apresentado pelo senso comum da sociedade e teóricos do neoliberalismo em relação ao serviço público brasileiro naquilo que é apreensível de imediato, podemos e devemos criticar veementemente a causa por eles encontrada desses descaminhos. O Estado não é um mal em si mesmo. Com efeito, condenar o serviço e o servidor público na sua totalidade, por seus desacertos, seria como propor igual condenação do Capital pelas falências e concordatas inerentes à iniciativa privada.
Contra esse ideário quase consensual que se tornou lugar comum no Ocidente, e que nos legou a Argentina e a permanente fragilidade de nossas instituições financeiras, e a favor da compreensão do papel fundamental do serviço e servidor público na obtenção do bem-estar social almejado pela Sociedade, lembra-nos Jânio de Freitas, em seu artigo intitulado “O Bolso e a Vida”, publicado na Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2003:
“A iniciativa privada não faz um país, no sentido de vida social e econômica organizada. Só o serviço público pode fazê-lo. Os estudos sobre a recuperação da Europa, da devastação do pós-guerra ao bem-estar de hoje, sem igual no mudo, demonstram que o êxito não se explica pelo Plano Marshall, mas pelo papel decisivo do serviço público e pela função atribuída ao Estado naqueles novos ou restaurados regimes democráticos”.
Não levar em consideração esse postulado pode levar-nos a passarmos por cima do legado histórico de políticas públicas que foram extremamente úteis à sociedade brasileira e que, com certeza, não poderiam ser implementadas pela iniciativa privada: um exemplo banal é a informatização das eleições no Brasil. Essas políticas públicas foram possíveis graças à preservação, governo após governo, qualquer que tivesse sido seu matiz, da memória da instituição. Esta somente é possível quando o servidor público tem respeitado sua diferença com o privado, como por exemplo, a exclusividade de sua atribuição, ou seja, não poder trabalhar em nada além daquilo para o qual foi investido, e que é uma garantia de Estado.
Por fim, da mesma forma como deve ter acontecido ao longo do processo histórico pelo qual passaram países altamente desenvolvidos e nos quais a participação do Estado foi fundamental, como a Dinamarca, Suécia, Canadá, França, para que o serviço e o servidor público sejam devidamente respeitados, necessário é combater a burocracia, a corrupção, e a ineficiência no Brasil. Em o fazendo, asseguramos um passaporte para um futuro melhor, capitaneados por um Estado que reflita os anseios da Sociedade.
Pois, afinal, o Estado não é um mal em si mesmo.