Honório de Medeiros
Um
dos mitos fundantes que norteiam a nossa concepção liberal de Estado é a do
contrato social. Por esse mito cedemos a liberdade que supostamente nos é
inerente para que o Estado impeça que nos destruamos uns aos outros.
Homo homini lupus, escreveu Thomas Hobbes, o homem é o lobo do homem, o primeiro dos grandes
contratualistas. Frase de Plauto, em “Asinaria”, textualmente Lupus est homo homini non homo, expõe a causa-síntese,
a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social: em o assegurando, a
sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica,
assim, assegurada a sobrevivência da
espécie.
Caso não aconteça o pacto social, bellum
omnium contra omnes,
guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o
que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens,
diz-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII -
recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de
Abdera, a se crer em Platão.
Essa noção, de pacto ou contrato social, até onde sabemos,
foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como
podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):
De outro modo, a
sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na
extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna
um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, “uma garantia
mútua de direitos”, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que
o Estado deve fazer.
E
muito embora um estudioso outsider do
legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do
contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas
relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à
hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os
Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.
Entretanto
é com Jean Jacques Rousseau, após Hobbes e John Locke, que se firma o mito fundante
do contrato social, influenciando diretamente as revoluções Americana e
Francesa, bem como o surgimento da idéia de Estado conforme a concebemos ainda
hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual emana
o Estado após o pacto social, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito,
fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e
uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.
Quanto
a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del
Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao
povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato
social, detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.
As
leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau:
são atos da vontade geral, exclusivamente;
“é unicamente à lei que todos os homens
devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a
elas”.
O
ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da
vontade geral do povo, que detém a soberania - pode ser encontrado em obras
muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de
2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes
e outros. Às páginas 37 do Curso, lê-se:
Por isso, quando hoje em
dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão,
não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado
do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente
estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes
exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade
geral; (...)
Assim
como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na
Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu
artigo 1º:
Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição.
Ou
seja, o exercício do poder é do povo, que em não o exercendo diretamente, o faz
por intermédio de representantes seus eleitos. Eleitos, sublinhe-se. De onde se
infere algo absolutamente trivial: enquanto, digamos assim, os parlamentares
são o povo, os juízes são servidores do Estado, essa emanação da Sociedade.
Há
algo de absurdo, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja
célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal
Federal.
Entenda-se,
aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo,
reelaborando e reinterpretando continuamente a Constituição, conforme afirmação
sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, criando
normas jurídicas, seja através da “mutação constitucional”, na qual a forma
permanece, mas o conteúdo é modificado, seja por intermédio da identificação de
lacunas inexistentes no Ordenamento Jurídico, sempre, em ambos os casos, com
fulcro em uma onisciência jurídica que expressa um vaidoso e preocupante
subjetivismo, formalizada via uma retórica calcada em princípios abstrusos,
confusos e difusos, indeterminados e nada concretos, da nossa Constituição
Federal.
Não é por razões
ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos
traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes
mais amplos, disse,
arrogantemente, o então presidente do STF Gilmar Mendes, supondo que fora do
“habitat” jurídico, estreito por nascimento e vocação, aqueles que têm alguma
formação filosófica possam aceitar que em pleno século XXI a Corte
Constitucional seja, para os cidadãos, o que a Igreja foi na Idade Média,
quando se atribuiu o papel de intérprete do pensamento e da vontade de Deus.
Pergunta-se:
teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração o que acima se
expõe, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do
povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas
(criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando,
via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF
para tanto?
É
autoritário o cerne do argumento que norteia o ativismo judicial. Sob o véu de
fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado
segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do
verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do “mito platônico das formas e
idéias” cuja contemplação e apreensão é privilégio dos Reis-Filósofos.
É
a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos
espertos, com sua gnosiologia, a eterna possibilidade de enganar os incautos
lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história,
que somente “alguns”, os que estão no lugar certo, e na hora certa, podem
encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o bom e o mal, o justo e o injusto, o
certo e o errado.
O
mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por
séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra
ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam
interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia, como nos
lembra Marilena Chauí em “Convite à Filosofia”:
A autoridade apostólica
não se limita ao batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o
poder para ligar os homens a Deus e Dele desliga-los, quando lhes disse,
através de Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e
as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do
Reino: o que ligares na Terra, será ligado no Céu, o que desligares na Terra
será desligado no Céu’. Essa passagem do Evangelho de Mateus será conhecida
como ‘princípio petríneo das Chaves’ e com ela está fundada a Igreja como
instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte
é o próprio Deus (é o Filho quem dá poder a Pedro); e é superior ao poder
político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível,
criado por sedução demoníaca (idem).
E,
assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma
norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro
“espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última,
mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao
autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos
ativistas judiciais.
OBSERVAÇÃO:
acerca da instrumentalização política da interpretação jurídica
constitucional, indico o meu “PODER POLÍTICO E DIREITO”; A.S. EDITORES; 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário