Do blog de Ricardo Noblat
Pe. Antônio Vieira
(...) O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do
Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a
mesma conjugação.
Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e
esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a).
Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira
informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por
onde podem abarcar tudo.
Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo
ele aplicam despoticamente às execuções da rapina.
Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que
mandem todos, os que não mandam não são aceitos.
Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando
as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas.
Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o
daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem,
quando menos, meeiros na ganância.
Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes
compram as permissões.
Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo,
e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.
Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do
verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm
indústria e consciência.
Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo)
colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o
futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas
esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e
antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas
mãos.
Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos,
plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram,
furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse.
Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo
verbo: a furtar, para furtar.
E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis
províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes
serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas...
Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do
Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.
Padre Antonio Vieira, sacerdote jesuíta, professor de
retórica, pregador, confessor, embaixador e escritor português. Trecho do Sermão
do Bom Ladrão, escrito em 1655. Proferido na Igreja da Misericórdia de Lisboa
(Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte. O retrato que apresenta o
autor é de Cândido Portinari.
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