sábado, 19 de dezembro de 2009

A ARTE DE CURAR, SEGUNDO MORENO


Leandro Cardoso Fernandes, de camisa branca, entre Aderbal Nogueira e Antônio Amaury

Por Leandro Cardoso Fernandes

No Cariri-Cangaço, realizado em setembro último, ante a iniciativa genial de Manoel Severo, tivemos uma oportunidade ímpar de perfilar os maiores pesquisadores e estudiosos do assunto, e pôr em debate idéias, controvérsias e pontos obscuros desse palpitante tema. Reuniram-se, na região metropolitana do Cariri, pessoas de todos os cantos do Brasil, e com as mais diversas afinidades com o assunto: seja através do cordel, da música, do cinema, da pesquisa, da mera curiosidade ou mesmo a partir de ancestrais ligados às lutas sertanejas, como foi o caso de Paulo Britto, filho de João Bezerra, Neli, filha de Moreno e Durvalina, além do neto de Antonio da Piçarra, o excelente historiador Vilsinho...

Numa das vezes que privei da companhia de Moreno, em sua casa em Belo Horizonte, tive a oportunidade ímpar de uma verdadeira “aula particular” sobre cangaço. Gostaria de compartilhar, nesta oportunidade, uma dessas lições que tive desse homem, que, bem longe de ser um coadjuvante, teve participação importante em vários episódios da historiografia do cangaço, como, por exemplo, a invasão de Piranhas.

Dona Durvinha havia me dito que fora picada por uma Jararaca, e que Seu Moreno é quem a havia curado, através de cuidados improvisados no meio do mato. Eu, como médico, fique muito curioso para saber o que o cangaceiro havia feito, naqueles ermos, para impedir que o veneno letal ceifasse a vida da companheira. Então perguntei:
- Seu Moreno é verdade que Dona Durvinha foi mordida por uma Jararaca?
- É sim, senhor! – Ele respondeu – Ela andou perto de morrer!
- Mas será se era mesmo uma Jararaca, seu Moreno, prá ela ter escapado? – Perguntei, provocando o velho cangaceiro.
Ele me olhou bem nos olhos e falou numa seriedade que me deixou desconcertado.
- Doutor Leandro, o senhor acha que eu não conheço uma Jararaca?
Apressei-me em desfazer a situação:
- Que é isso, seu Moreno? Eu sei que o senhor conhece muito bem. Mas diga-me: o que foi que ela sentiu?
- Ficou desmaiando, botou sangue pela venta, pelos ouvidos pelo local da mordida... – Ele disse.

Nesse momento, tive certeza tratar-se de mordida de Jararaca. Uma das propriedades do veneno botrópico é provocar distúrbios da coagulação sanguínea.
-E o que foi que o senhor fez? – Perguntei entusiasmado.
-Tinha chovido. A terra tava fria. Cavei um buraco no chão e enfiei a perna dela dentro e deixei lá.
-Mas para quê isso, Seu Moreno?
-Meu filho, a terra chupa o veneno. Você não sabia? Ela foi melhorando, melhorando e acabou ficando boa. Depois, na Bahia, paguei uma promessa em Bom Jesus da Lapa, que tinha feito, se ela escapasse...

Fiquei pensando naquela explicação, até perceber nitidamente o bom senso e a sabedoria de Moreno. Mesmo considerando a enorme probabilidade de a cobra ter mordido algum bicho ou um sapo antes de ter atacado Durvinha (e, dessa forma, ter-lhe inoculado pouco veneno), a terra molhada e fria faz com que haja constricção dos vasos no local da picada, diminuindo a absorção da peçonha. E quanto mais se cava, mais fria é a terra, diminuindo a circulação sanguínea e absorção. Isso dá a impressão ao cangaceiro de que é a terra que “chupa” o veneno. Há – é bom que se diga - controvérsias em relação a esse procedimento de restringir a circulação local após picada de animal peçonhento, sob pena da piora local, como necrose e graves sangramentos de extremidades. Mas o importante é que a aguçada inteligência do homem de cangaço funcionou, e somente com base do que tinha a sua disposição, salvou a vida da companheira. Esse rompante intuitivo acertado é o que muitas vezes fazia a diferença entre a vida e a morte na guerra da caatinga. O cangaceiro utilizava tudo aquilo que dispunha a seu redor com bastante perspicácia, para a resolução dos mais variados problemas. Seja ou não levado por superstições, o importante é que o resultado final obtido por Seu Moreno foi satisfatório...

Graças ao Cariri-Cangaço pudemos compartilhar estas e outras histórias, com o enorme prazer da companhia de descendentes dos personagens que participaram destes fatos intrigantes. Eles fizeram do sertão nordestino o palco de nossa história de lutas, que hoje é imensa riqueza artística e nossa verdadeira identidade cultural.
Grande abraço a todos!

Um comentário:

João de Sousa Lima disse...

Só como contribuição ao excelente texto do amigo e escritor Leandro Cardoso, quando ele cita a mordida da jararaca em Durvinha, ela tomou também um soro antiofídico enviado pelo Padre Frederico Araujo, que foi o padre que criou o filho Inacinho, que eles deixaram quando fugiram do cangaço.
o soro era conhecido na época como : contra-veneno.
depois um índio da tribo Pankararú, do Brejo dos Padres, em Tacaratu, Pernambuco, que era vagueiro do padre, ficou levando remédios caseiros para acabar de curar a cangaceira ofendida pela jararaca e assim ela melhorou.