Mostrando postagens com marcador HONÓRIO DE MEDEIROS; CRÔNICA; TUDO É IGUAL DE MANEIRA DIFERENTE;. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador HONÓRIO DE MEDEIROS; CRÔNICA; TUDO É IGUAL DE MANEIRA DIFERENTE;. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

TUDO É IGUAL DE MANEIRA DIFERENTE

 

A Pedra da Boca

* Honório de Medeiros         


No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, derreados por sobre a cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde.

Sertão.

A mão esquerda controla a nobre cabeça do animal. A direita, terminando no dedo indicador esticado, os quartos, o "motor". Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no crepúsculo. Ouvem-se as cigarras. Os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar deixando seu registro sonoro.

Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco no qual um idoso "sensei" de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado por todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles. Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios e gritos?

"Uma questão de sinergia", disse-me ele, depois, quando já era noite. "A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados."

Percebo, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. Algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, é o fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

As sequências começam. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, aquelas mesmas onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. As imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real.

O Claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos seus olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe uma leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens...

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de "Go Rin No Sho", o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura...

Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há. Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a mesma estratégia para combater dez mil.

Entretanto, essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada. O nada...

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Myiamoto Musashi, ele me dissera: "tudo é igual, de maneira diferente..."

Então nos dispersamos. Dias singulares, aqueles. Cada um de nós percebeu de forma muito diferente a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf? Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessas "maneiras diferentes" de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã seria um outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam.

É hora de ouvir estrelas, o vento, o sussurro das árvores, o canto da suindara ou, quem sabe, da mãe da lua...

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.


honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
Texto extraído de "De Uma Longa e Áspera Caminhada", do autor, Editora Viseu, 2022.