Honorio de Medeiros
Minha amada
gosta das cidades grandes, do bulício das ruas elegantes nas manhãs de sol
pálido que não lhe agrida a pele muito branca, quando se dedica às compras
“virtuais” e compõe mentalmente, enquanto deambula, várias toilettes com as peças à mostra, da rotina dos cafés ao entardecer
que são promessas de noite e despedidas do dia, das noites suavemente embaladas
por uma discreta taça de vinho, à qual seguem, como um coroamento de um dia
feliz, un dessert, e um sono
tranqüilo, embalado pela confortante presença próxima do seu ateliê, onde se
dedica à requintada arte do “scrap”, no qual obras de arte feitas à mão
disputam espaço com as marcas sutis de sua presença diária.
Já
lhe ponderei, diversas vezes, acerca das maravilhosas manhãs na Serra, quando a
neblina propõe, aos transeuntes, um véu opaco com o qual os envolve enquanto o
silêncio, companheiro de nossas caminhadas, somente é perturbado pelo ir-e-vir
dos pássaros e o balançar dos ramos e galhos das árvores tangidas pelo vento
matinal, e, também, das tardes pungentes tão típicas e plenas de uma profusão
de cores cambiantes que esmaecem lentamente anunciando a noite, ah!, a noite, e
o imenso céu estrelado, límpido, misterioso, inigualável, do Sertão...
Eu
lhe prometi um espaço somente seu, amplo, no qual cada laivo de sua imaginação
criadora tenha a condição de se transformar em realidade, separado do chalé com
o qual sonho por um caminho margeado pelas flores das quais tanto gosta e pelas
árvores das quais sou tão próximo, onde ela poderia receber as pessoas que a
procurassem lhes oferecendo um café feito na hora a ser servido nas delicadas e
herdadas xícaras onde despontam motivos florais finamente estampados,
acompanhado de biscoitos da terra, de gosto suave, que facilmente se dissolvem
na boca, ou, quem sabe, nos frios dias de julho, uma taça de chocolate quente
enquanto a conversa fluísse animada.
Receio
não lhe ter convencido, posto que o prosaico da vida sempre interfere nos
sonhos de cada um: é a rotina do trabalho, a rotina dos filhos, a rotina dos
compromissos que exigem nossa presença diária e nos impõem atividades que não
gostamos, deveres que nos assoberbam, atenções que nos impedem de nos
entregarmos plenamente à vida que passa tão rápida enquanto desperdiçamos nosso
tempo a ranger os dentes de raiva pelo trânsito que não flui, a nos eriçarmos
para o combate com nossos estressados semelhantes, a nos debater com a
melancolia que nos assoma no final-do-dia pelo muito que é perdido quando
constatamos que nada mais somos que apenas outra peça da engrenagem.
Quantos
de nós, envelhecidos, eu não observo enquanto me desloco: são tão poucos os que
sorriem! Será que neles há o fastio do acúmulo das horas inúteis, a consciência
do tempo perdido com coisas vãs? Será que esse balanço de final-de-vida, quase
sempre negativo, é que lhes colocou nos rostos esse olhar vazio, tão distante?
Será que essa entrega derradeira, o abandono da condição de controle do próprio
destino, é que constitui o caldo de suas amarguras?
Como
saber? Enquanto penso dou razão à minha amada e me conformo, mas não perco a
esperança. Enquanto espero, e os dias rolam na minha vida como as contas de um
terço rolam nas mãos daqueles que rezam, escapo para o último andar do prédio
onde moro, prédio entre prédios, subo a escada que conduz ao topo, e lá,
derramo meu olhar descontente por sobre a cidade febril enquanto gulosamente
sinto, sobre mim, o infinito do céu no qual os limites existente são o vôo dos
pássaros e de um ou outro avião.
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