Um mendigo que lê
Honório de Medeiros
Em frente a um dos cinzentos prédios da Sorbonne, onde há uma torre que deve ter sido, em tempos idos, um observatório astronômico – tanto o foi que, por trás, desponta outra menor cujo topo é aquele tipo de cúpula próprio para perscrutar os céus – encontro, na Rue Granelle, sentado sobre um grosso pano cinza, costas apoiadas na parede, as pernas separadas formando ângulos agudos contra o chão e dando suporte aos braços que seguram um livro, um mendigo e, à sua frente, a esperada tigela de metal na qual repousam algumas moedas.
Um mendigo que não olha os passantes, não lhes estende as mãos súplices, não lhes dá, enfim, qualquer atenção, sequer se incomoda com o que se passa em seu entorno. Sua aparência não é andrajosa ou suja, pelo contrário. Muito embora suas roupas sejam bastante usadas, revelam pobreza, não miséria. Não é ele novo, tampouco velho – um cinqüentão, talvez, derruído pelo tempo e circunstâncias, aureolado por uma densa massa de cabelos longos caindo sobre os ombros e completamente grisalhos, barba por fazer.
Após algum tempo, resolvi chamar sua atenção. Antes, pedira que lhe fotografassem, sem que percebesse. De passagem por onde ele estava sentado, coloquei uma quantidade inusual de moedas na tigela. Recebi um olhar breve, mas intenso, e um “merci”, após o que a leitura foi imediatamente retomada. Não foi possível ver a capa do livro que tanto lhe prendia a atenção. Minhas perguntas a lhe serem feitas foram contidas pela percepção do seu alheamento.
Ao meu lado alguns poucos turistas fotografavam os prédios da Sorbonne. Tínhamos ido em busca do mais antigo restaurante de Paris, onde François Miterrand construíra, nos seus tempos de jovem, sua barricada. Lá almoçáramos, observáramos a fauna parisiense, o que sobrara da arquitetura do século XVII, os garçons a balbuciarem algumas palavras de português – homenagem aos tempos de “real” forte.
Nada, entretanto, fora tão interessante quanto aquele retrato de Paris ao vivo e à cores: um mendigo entregue à leitura.
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